NOTÍCIA
Conhecer a realidade escolar antes de conquistar o diploma enriquece a carreira do professor. De olho nessa demanda, universidades apostam nos programas de estágio e nos projetos de residência pedagógica para diminuir o abandono precoce da carreira
Publicado em 31/07/2015
Professores em início de carreira precisam de suporte para se adaptar à realidade das salas de aula |
Um jovem professor consegue uma vaga para lecionar em uma escola da periferia de uma grande cidade brasileira logo após cumprir todos os créditos e estágios da graduação e obter seu diploma. Nos estágios, viu realidades variadas e observou professores tomando atitudes com as quais nem sempre concordou, seja do ponto de vista teórico, seja pelo modo com que lidavam com os alunos. Agora, caberá a ele colocar em prática o que vem burilando mentalmente com cuidado. Suas primeiras aulas, no entanto, escapam-lhe pelos dedos. Intuída pelos alunos, sua insegurança o impede de conduzir as atividades de que gostaria. Com o tempo, torna-se burocrático e recorre aos mesmos artifícios que viu os professores que tinha como espelho negativo utilizarem. Torna-se burocrático, desinteressado, leniente. Em pouco mais de dois anos desiste da docência.
A situação descrita acima não é real, mas talvez não seja muito diferente da que vivem dezenas de jovens docentes nas escolas brasileiras. Ao longo da formação, costumam ouvir ou assistir a muitos debates sobre o que será mais imprescindível à profissão, se os conhecimentos teóricos ou a prática em situações de ensino e aprendizagem. Na realidade, não poderão abrir mão de nenhum dos dois.
Selma Garrido Pimenta, da Universidade de São Paulo (USP), defende que o saber docente é nutrido pelas teses educativas e construído no dia a dia em sala de aula. Ou seja, as duas vivências são indispensáveis para formar bons profissionais. Assumir turmas sem uma experiência prática efetiva pode desencadear as desistências prematuras.
Os números não são nada animadores. Para se ter uma ideia, em sua dissertação de mestrado Sérgio Rykio Kussuda, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), detectou que um em cada quatro professores de física abandonam a profissão quando começam a trabalhar na área. No Rio de Janeiro, a rede estadual registra quatro exonerações por dia e, em São Paulo, o número é ainda maior: oito desistências a cada 24 horas. De acordo com o Ministério da Educação (MEC), o país tem hoje um déficit de pelo menos 150 mil mestres nas áreas de matemática, física, química e biologia.
Apesar de os baixos salários figurarem entre as principais causas, a falta de bagagem prática e o desamparo com que começam na profissão também influenciam esse quadro. “A procura pela profissão é baixa, pois ela está desprestigiada fora da universidade. Quando chega à sala de aula, tal desvalorização reverbera na configuração curricular dos cursos e muitos esquecem de focar a prática”, aponta Adriana Varani, especialista em formação de professores e docente na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Atualmente, o estudante matriculado em pedagogia ou nas licenciaturas deve cumprir uma carga horária mínima de 400 horas de estágio obrigatório. No entanto, essa fórmula é insuficiente. Um dos motivos está na falta de um acompanhamento mais próximo por parte da instituição de ensino, pois o contato dos alunos passa a ser mais intenso com as escolas nas quais trabalham. “Entregar apenas um relatório ao final de cada período não resolve o problema. Eles não têm o retorno de um supervisor acadêmico, o que é indispensável”, comenta Vera Jardim, coordenadora do curso de pedagogia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O ideal seria intensificar a participação das universidades no processo de estágio, com reuniões periódicas para detectar possíveis problemas e corrigi-los a tempo.
Já os chamados programas de iniciação à docência parecem mais perto de cumprir esse papel por aproximarem os estudantes da realidade escolar a partir de uma ação conjunta, que envolve alunos, docentes e a unidade educacional em questão. Batizado geralmente de residência pedagógica, cujo formato é semelhante ao encontrado nos cursos de medicina, tal modelo ainda não é uma unanimidade no ensino superior brasileiro. Uma tentativa de instituir algo semelhante em todo o território nacional está em tramitação no Senado, por meio do Projeto de Lei número 284/2012, de autoria do senador Blairo Maggi (PR-MT), que sugere a implantação da residência para os professores da Educação Básica. Pelo projeto, os recém-formados em pedagogia fariam uma especialização obrigatória de 800 horas (o dobro do que é exigido nos estágios) sob a supervisão de profissionais já atuantes na área. “É uma maneira de complementar a formação inicial, o que é tão necessário quanto a realização de cursos de especialização ou atualização”, diz Virgínia Cardoso, coordenadora dos cursos de licenciatura da Universidade Federal do ABC. À medida que o professor passa a vivenciar a escola por mais tempo, constrói e fortalece laços com estudantes e educadores. Além disso, essa experiência possibilitará uma atuação com maior profundidade em razão da vivência – ao acompanhar as relações e os acontecimentos cotidianos.
A aprovação do projeto, porém, não deveria eliminar a realização dos estágios durante a graduação. “As duas modalidades se complementam. A primeira é fundamental para relacionar o conhecimento teórico com as ações reais do dia a dia. Já a segunda estimula o iniciante a construir os seus conhecimentos práticos de uma forma orientada”, complementa Virgínia. Para que funcionem, ambas precisam ser reconhecidas por todos os envolvidos como mecanismos de formação, além de apresentarem estruturas bem definidas. “Muitos projetos de estágio ou de residência ainda são vistos como uma forma de contratar profissionais a baixo custo, sem parcerias com a universidade na orientação e no acompanhamento desses educandos”, alerta Adriana.
Enquanto o projeto nacional não sai do papel, algumas instituições de ensino se articulam para reforçar programas de estágio existentes ou criar iniciativas semelhantes, com o diferencial de serem realizadas ao longo da graduação. Para Dirce Djanira Pacheco, do Departamento de Ensino e Práticas Culturais da Unicamp, uma solução bem-vinda está nas parcerias firmadas entre as universidades e o sistema público de ensino. “Seria muito importante ver essa relação ampliada. Para tanto, precisamos avançar em termos de políticas públicas e oferecer uma remuneração condizente”, afirma.
Experiência positiva
Um dos exemplos de política bem-sucedida nos últimos anos é o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid). Criado em 2008 pelo Ministério da Educação (MEC) e fomentado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a iniciativa concede bolsas (a partir de R$ 400) a alunos que participam de projetos desenvolvidos pelos professores dos cursos de licenciatura das universidades públicas. Essas atividades didático-pedagógicas são implementadas na rede pelos próprios estudantes, sob a supervisão dos docentes, que participam ativamente do processo de construção das pesquisas, em conjunto com os educadores da unidade de ensino. Entre os objetivos definidos estão inserir os alunos no cotidiano educacional, elevar a formação inicial e contribuir para a articulação entre teoria e prática. “Sempre que a universidade oferece apoio para as escolas, estas abrem as portas para os alunos e todos ganham em termos de aprendizagem”, pontua Onaide Correa de Mendonça, especialista em Práticas de Alfabetização e professora da Faculdade de Educação da Unesp, que acompanha o programa junto aos bolsistas da universidade.
Em 2014, o Pibid ofereceu pouco mais de 90 mil bolsas em todo o Brasil, número considerado baixo mediante a quantidade de alunos cursando as licenciaturas. De acordo com o Censo da Educação Superior, elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2013 foram registradas 437 mil matrículas nos cursos de formação de professores.
Hermanos à frente
Ao mesmo tempo que o país caminha lentamente rumo a um equilíbrio entre a teoria e a prática, em outros lugares do mundo tal formato já está consolidado. E não é preciso ir longe para ver exemplos bem-sucedidos. O Ministério da Educação da Argentina criou em 2007 o Plano Nacional de Formação de Professores, responsável por promover políticas nacionais e formular programas de formação continuada e inicial. Essa movimentação é uma prova de que no país a vivência em sala de aula é cobrada com mais rigor durante a graduação. Tanto que os recém-formados só são liberados para assumir uma turma quando provam o domínio da didática e dos conteúdos exigidos pela função. Quem não for aprovado nesses quesitos não conquistará o diploma e terá de passar por uma reavaliação. Com duração de quatro anos, a formação de nível superior argentina é dividida em dois ciclos: básico comum – de natureza pedagógica – e prático, no qual se encaixam as residências.
Vera Jardim, da Unifesp (ao centro), em atividade de orientação com alunas do curso de pedagogia |
Um bom modelo de formação prática continuada também pode ser visto na França, mais especificamente nos Institutos Universitários de Formação de Mestres, criados em 1989. Tais unidades também apostam em um tipo de residência, porém com uma aparente vantagem: os recém-formados assumem a mesma turma que acompanharam durante o estágio desenvolvido ao longo da graduação. Nesse período, os docentes titulares podem se afastar dos seus cargos para fazer cursos de especialização, o que fomenta a formação continuada. De acordo com um relatório divulgado no ano de inauguração, o objetivo desse formato é assegurar uma formação a partir de um contato estreito com a produção de novos conhecimentos científicos e profissionalizar os docentes, ou seja, constituir competências profissionais.
Já na Coreia do Sul, país com uma das melhores colocações no Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (Pisa), os recém-formados podem lecionar somente depois de concluir o mestrado. Durante a graduação, as aulas acontecem em período integral e incluem estágios feitos em escolas montadas dentro das próprias instituições, trabalho sempre acompanhado de perto por um tutor. “O tempo integral do estudante é a condição ideal para fortalecer a iniciação à prática durante a graduação”, defende Helena Coharik Chamlian, da Faculdade de Educação da USP.
A implementação dessa política, no entanto, só foi possível por uma tomada de atitude da sociedade e dos governos locais, como salienta Paul Morris, do Departamento de Educação da Universidade de Londres. Ele explica que o governo passou a tratar os docentes como profissionais imprescindíveis para a evolução do país. “Eles são valorizados e preparados desde o início da graduação. Todos passam por uma capacitação rigorosa antes de começar a ensinar”, relata. O Brasil ainda está ensaiando esse passo. O termo valorização docente é mencionado de forma recorrente. Mas, como o personagem do início desta reportagem, a valorização em si ainda está no plano da ficção.