NOTÍCIA

Edição 220

O realismo exaustivo

Reproduzir o mundo como ele é não passa de uma armadilha conceitual

O público diante de uma das esculturas de Ron Muek: tamanho das obras usado para escancarar noção de realismo

Para definir o Realismo Literário seria preciso primeiro definir o que é a realidade. Se os filósofos ainda não chegaram a um acordo sobre esta, não podemos esperar muita coisa em relação àquele. Jorge Luis Borges dizia que as literaturas de todos os povos em todos os tempos tinham uma tendência para o fantástico, e o realismo é “uma excentricidade recente”.

O chamado realismo evoluiu nos séculos 18, 19 e 20, principalmente no que se refere a técnicas de observação e descrição, ao uso do ponto de vista (pela técnica do autor, o leitor “vê” o que o personagem vê, mas é capaz de deduzir coisas que o personagem não percebe ou compreende), à naturalidade do diálogo (que aos poucos passa a incorporar a fala cotidiana e o monólogo interior, e não depender apenas da retórica escrita), à percepção das forças econômicas, políticas, ideológicas que se exprimem pelas ações dos personagens, e assim por diante.

Ao mesmo tempo, o realismo foi vítima da ânsia de reproduzir na página o mundo como ele realmente é, o que não passa de uma armadilha conceitual. Para alguns autores, o realismo consiste em contar tudo, mostrar tudo, incluir tudo. É o que eu chamo de realismo exaustivo, e que foi ironizado por Borges em seu microconto sobre a arte da cartografia, em que os cartógrafos conseguiram produzir um mapa perfeito do reino – o único problema é que o mapa era do tamanho do próprio reino.

Dizer tudo

Esse problema foi colocado por H. L. Mencken, que, num artigo de 1917, Theodore Dreiser, criticou com severidade os romances de seu amigo, o autor de Uma tragédia americana (1925) e outras obras classificadas como realistas ou naturalistas.

Mencken critica a exaustiva enumeração de pequenos fatos dos livros de Dreiser. Analisando The “genius” (1915), ele se queixa de que o longuíssimo romance de Dreiser bombardeia o leitor com uma “listagem exasperante de fatos sem relevância”, um “furioso acúmulo de trivialidades”, porque o autor parece possuído por “uma inabalável determinação de dizer tudo”.

Mencken exemplifica, a partir de uma cena por volta da página 700, os detalhes supérfluos descritos por Dreiser: uma casa “de desenho convencional”, “uma área espaçosa” entre as duas alas, que são de “tijolos cor de creme”, que a entrada é “protegida por uma bela porta de ferro trabalhado”, que de cada lado da porta há “um pedestal de lâmpada elétrica de belo desenho”, que em cada pedestal há “belos globos elétricos cor de creme, emitindo um brilho suave”, que depois disso vê-se “o costumeiro saguão” e depois dele “o costumeiro elevador” e dentro dele “o ascensorista negro uniformizado”, que se mostra “indiferente e impertinente”…

Autores com poder de observação e escrita fluente costumam cair nesse buraco e nunca mais sair. Para eles, ver tudo, lembrar de tudo e colocar tudo no papel parece muito fácil. E com isso têm aquela sensação um tanto eufórica de quem está transpondo o mundo para a página, o que por definição é impossível.

A crítica de Mencken é de 1917, e basta isto para mostrar a importância desta discussão. A tendência para escrever assim não é algo “antigo”, algo que pudesse ter sido cancelado pelo simples aparecimento de escritores de prosa mais seca, mais descarnada (de

Hemingway a Dalton Trevisan). Cada autor, quando começa, é forçado a percorrer corredores milenares de descobertas até chegar à sua própria época. Todo escritor tem de reinventar a sua pólvora, a sua bússola, o seu zero.

Intensidade da ilusão

Wayne C. Booth (The rhetoric of fiction, 1961) recorre, para contrapor a essa tendência, à teoria e prática de Henry James, que procura “a intensidade da ilusão” mais do que “a ilusória realidade propriamente dita”. Diz Booth:

“A intensidade da ilusão (…) é o teste-limite. A mera ilusão de realidade em si não é bastante; a realidade é muitas coisas, tantas que não compensa reproduzir a todas com a mesma intensidade. (…) (Na literatura,) qualquer intensidade que se obtenha deve ser uma intensidade da ilusão de que a vida verdadeira foi representada. O começo de tudo é nossa experiência, que é sem limites, e sempre em expansão; ”produzir a imagem e o sentido de certas coisas” é apenas metade do problema. Mas produzir isto com intensidade, fazer com que o retrato imaginado da realidade brilhe com uma luz mais do que mortiça, requer do artista seus poderes de composição mais refinados”.

O trabalho literário consiste em mostrar a parte pelo todo, porque o todo, por definição, é inalcançável. O excesso de minúcias nas descrições pode se dever ao fato de que o autor tenha facilidade para aquilo e procure se concentrar no que sabe fazer melhor, ou com menos esforço. Pode ser também um projeto de espírito quase etnográfico, como se vê muitas vezes na literatura regional: o autor quer salvar do esquecimento modos de falar, de pensar, de agir; quer registrar a natureza, a cultura, a culinária, o vestuário, a arquitetura etc.  Isso dá um valor extraliterário a sua obra; sabemos muito sobre lugares ou tempos remotos porque eles foram preservados em textos com pouca qualidade literária, mas foram salvos pelo seu poder de observação.

O desafio de Henry James, no entanto, continua de pé: como mostrar partes da realidade tão bem escolhidas e reveladas com tal intensidade que deem ao leitor a sensação do todo.

Autor

Braulio Tavares, da revista Língua Portuguesa


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