NOTÍCIA
Apesar de não constituir novidade ao longo da história, a destruição de acervos histórico-culturais como os recentemente dizimados em Palmira, na Síria, representa um pesado baque na ideia de civilidade
Publicado em 05/10/2015
Antes e depois: imagem divulgada pelo Estado Islâmico mostra a destruição do templo de Baalshamin, na Síria |
Maamoun Abdulkarim é diretor-geral de Antiguidades e Museus na Síria e trabalha diariamente no Museu Nacional de Damasco. Em 2012, quando aceitou o desafio de assumir o cargo no ano seguinte ao início da guerra civil que assola o país, impôs como condição a completa evacuação do acervo de todos os museus da Síria. Pesavam em sua memória a destruição e pilhagem ocorridas no Museu de Bagdá, em 2003, quando a invasão do exército americano e a consequente queda do ditador Saddam Hussein empurraram o Iraque para um abismo social.
No Museu Nacional de Damasco, capital da Síria, atualmente só há poeira. Todas as salas estão vazias, sem qualquer vestígio de seu rico acervo. Para Maamoun Abdulkarim, isso é razão de alegria. Em entrevista para o jornal espanhol El País, o diretor-geral conta que cerca de 300 mil peças do museu estão protegidas em um lugar seguro de Damasco.
Apesar de não esconder a satisfação por ter “salvo”, pelo menos até agora, o acervo do museu nacional, Abdulkarim se mostra desolado ao comentar o destino de locais históricos da Síria, como o sítio arqueológico de Palmira, cuja destruição no final de agosto pelos homens do Estado Islâmico chocou o mundo.
Ele confessa não ter meios para evitar a destruição de Palmira e outros centros históricos hoje nas mãos do Estado Islâmico ou da Al Qaeda. Por outro lado, Maamoun Abdulkarim diz estar tendo mais sucesso em outras áreas, graças ao apoio da comunidade local junto a distintos grupos rebeldes, como é o caso de Bosra (famoso pelo anfiteatro romano), de Idlib e partes do território curdo. Nessas regiões, explica o diretor-geral, cerca de 2.500 funcionários do Ministério da Cultura agem como um exército da salvação do patrimônio histórico da Síria e da humanidade.
Ecos do passado
O estarrecedor destino que está sendo dado às ruínas de Palmira não chega a ser novidade na história de humanidade. Por razões diversas, o saque, a pilhagem, a destruição de templos e ídolos ocorre há muitos séculos em distintas partes do planeta. No passado, o ato de vandalismo muitas vezes teve o objetivo de subjugar um povo quando este era dominado por outro. Um jeito cruel de mostrar “quem manda”. Adicione-se a isso a cobiça pura e simples de apropriar-se da riqueza alheia. Na América do Sul conquistada pelos espanhóis afloram exemplos. Talvez o mais significativo deles seja a destruição e o saque do Qoricancha, em Cuzco, o mais importante templo da civilização inca.
Construído por volta do ano 1.200 d.C., o Qoricancha impressionou os espanhóis não apenas pela perfeita arquitetura do templo, sustentado por enormes blocos de pedra perfeitamente encaixados, mas principalmente pela enorme quantidade de ouro ali depositada. Conhecido como o Templo do Sol, suas paredes externas, internas e o piso do prédio eram revestidos de folhas de ouro maciço. No pátio, esculturas de árvores, folhas, flores, animais, pássaros, homens, mulheres e crianças, tudo estava moldado em ouro, prata e pedras preciosas. No interior do Qoricancha, salas revestidas de ouro serviam como locais de adoração da Lua, das estrelas, do trovão e do raio. Em uma delas, um enorme disco de ouro representava o Deus-Sol.
A chegada do conquistador espanhol Francisco Pizarro, em 1532, selou o fim do Qoricancha. Após dominar os incas, Pizarro se apoderou do Templo do Sol e roubou tudo o que podia, enviando boa parte das peças de ouro para a Espanha. O conquistador espanhol então destruiu o templo e cedeu o local para os frades dominicanos que, aproveitando-se da estrutura das paredes de pedra que restaram, construíram em cima a igreja e o convento de São Domingos, ainda hoje abertos à visitação em Cuzco – embora os dominicanos não permitam qualquer tipo de investigação ou exploração arqueológica no local.
A queda de Palmira
Se as atrocidades cometidas em 2015 pelo Estado Islâmico obedecem a outro contexto da época de Francisco Pizarro, algumas razões guardam semelhança, como, por exemplo, a inequívoca intenção de subjugar o povo dominado, com ações de desprezo por sua cultura e tradição, impondo por meio de atos bárbaros a força do conquistador.
Até o início da guerra civil na Síria, em 2011, que já matou cerca de 300 mil pessoas, o sítio arqueológico de Palmira era um dos mais cobiçados destinos turísticos do país, atraindo milhares de visitantes anualmente e considerado patrimônio mundial pela Unesco, definindo o local como um dos centros culturais mais importantes do mundo antigo. Depois de resistir por quase dois mil anos, desde as batalhas do Império Romano e Otomano, as ruínas históricas da cidade agora estão sendo brutalmente explodidas.
Templo do Sol, em Cuzco: saqueado e transformado em convento |
Quando os homens do Estado Islâmico assumiram o controle da cidade, em maio deste ano, a comunidade internacional se pôs em alerta. A atuação feroz do grupo indicava o risco que o sítio arqueológico corria. Entretanto, a tragédia histórica iminente não diminuiu o impacto das imagens que circularam o mundo nas últimas semanas, nas quais é possível ver por fotos aéreas de satélite a dimensão da destruição. Num período de cerca de dez dias, dois templos foram arrasados – o primeiro, de Baalshamin e o mais importante de todos, o templo de Bel.
Datado do século 1º, o templo de Baalshamin era dedicado ao deus fenício das tempestades e das chuvas fertilizantes, enquanto o templo de Bel, conhecido como a “pérola do deserto”, teve sua construção iniciada no ano 32 d.C. e levou mais de um século para ficar pronto. “Combina de forma única a arte oriental e a arte greco-romana. Ainda conserva todos os atributos dos templos antigos, o altar, as colunas. Junto ao templo de Baalbek no Líbano, é o templo mais bonito do Oriente Médio”, disse à imprensa o diretor-geral de Antiguidades e Museus na Síria, Maamoun Abdulkarim, um dia antes da destruição do templo.
Para os combatentes do Estado Islâmico, seguidores de uma interpretação radical do islamismo sunita conhecida como salafismo, a destruição dos templos, estátuas e tumbas se justifica por representarem símbolos da idolatria pagã.
Em solo iraquiano
Com essa justificativa, os membros do grupo cometeram em solo iraquiano as primeiras ações contra obras de arte e cidades históricas. Em março de 2015, a comunidade internacional recebeu com assombro as primeiras notícias sobre a destruição das cidades de Hatra, Nimrud e do Museu da Civilização de Mossul. A primeira aberração veio por meio de um vídeo divulgado pelo próprio Estado Islâmico em que combatentes do grupo aparecem quebrando estátuas e outras obras de arte do museu de Mossul.
Poucos dias depois surge a notícia da destruição da antiga cidade assíria de Nimrud, fundada há mais de 3.300 anos, localizada à margem do rio Tigre e distante 30 km de Mossul, cidade do norte do Iraque controlada pelo Estado Islâmico desde junho de 2014. “Não podemos permanecer em silêncio. A destruição deliberada do patrimônio cultural constitui um crime de guerra. Faço um apelo a todos os dirigentes políticos e religiosos da região para que atuem contra esse novo ato de barbárie”, declarou à época em comunicado à imprensa, Irina Bokova, diretora da Unesco. Durante três séculos, entre 911 e 609 a.C., a Assíria foi uma espécie de superpotência do Oriente Médio, com sua capital, Nínive (situada onde hoje fica Mossul), sendo a maior metrópole de sua época.
Dias depois da destruição de Nimrud houve a notícia de que a cidade de Hatra fora submetida a igual barbárie. Fundada durante o império parta, há mais de dois mil anos, Hatra é também considerada patrimônio mundial pela Unesco. No seu auge, no século 2º a.C., o território do império parta cobria uma região que hoje vai do Paquistão à Síria. Distante em torno de 110 km a sudoeste de Mossul, a cidade fortificada de Hatra resistiu a dois ataques do império romano, nos anos de 116 e 198 d.C., devido às suas muralhas e torres. Em 2015, a histórica cidade sucumbiu pelas mãos do Estado Islâmico com o uso de pás, tratores e retroescavadeiras.
Budas ao chão
Em épocas recentes, ainda antes do Estado Islâmico, o mundo foi assombrado em 2001 pela notícia de que o grupo Taleban havia anunciado a destruição dos gigantescos Budas esculpidos na rocha, no Afeganistão. O anúncio prévio ainda deu tempo para uma série de apelos da comunidade internacional. Todos em vão. Com a sórdida alegação de que os Budas representavam ídolos de “infiéis”, o Taleban atacou as esculturas primeiramente com tiros e pedras, a seguir com bombas e dinamite.
Construídos há cerca de 1.500 anos, os Budas da província de Bamiyan tinham mais de 50 metros de altura e estavam entre os maiores do mundo. Simbolizavam a época em que a região do Afeganistão era um importante centro budista, até a chegada do islamismo, por volta do século 9º.
As fanáticas alegações religiosas do Taleban ou do Estado Islâmico são revestidas de outro componente decisivo: o dinheiro. Autoridades e especialistas indicam que, por trás da destruição dos templos, está também a pilhagem dos museus e obras de arte com o intuito de repassá-los ao mercado negro e assim financiar as atividades do grupo.
Seja por ganância, cobiça ou abjetas razões supostamente religiosas, o fato é que as sociedades, em pleno terceiro milênio, ainda sofrem nas mãos de grupos sem escrúpulos que negam qualquer valor à arte e à vida. Qualquer arte, qualquer vida.