NOTÍCIA
Médica desenvolveu técnicas de cuidado para criar uma experiência de vida para as crianças que estimulassem seu desenvolvimento e evitassem as faltas dramáticas provocadas pela ausência dos pais
Publicado em 16/06/2016
A médica Emmi Pikler (1902-1984) atuou como pediatra em Budapeste, na Hungria, a partir dos anos 1930. Desde seus primeiros trabalhos com as famílias, afirmava que a criança pequena era uma pessoa ativa, competente, capaz de tomar iniciativas. Mostrou-se muito atenta à qualidade da relação entre adulto e criança, principalmente nos momentos de cuidados, que, segundo ela, deveriam ser vivenciados de forma íntima e profunda.
Em 1946, na Budapeste profundamente atingida pela Segunda Guerra Mundial, assumiu a direção de uma instituição hoje chamada Instituto Pikler, que tinha a função de acolher crianças órfãs ou abandonadas pelas famílias, sem, no entanto, procurar reproduzir o comportamento maternal – trabalho vão numa instituição. Na mesma linha de seu trabalho com as famílias, Emmi Pikler procurou desenvolver ali técnicas para criar uma experiência de vida para as crianças que estimulassem seu desenvolvimento e evitassem as faltas dramáticas provocadas pela ausência dos pais.
Sua equipe de colaboradoras, coordenada por Judith Falk, oferecia cuidados que permitiam a construção de vínculos fortes entre a criança e sua cuidadora, principalmente em decorrência de uma atenção exclusiva oferecida a cada uma durante os cuidados cotidianos – banho, troca de roupa, alimentação –, de uma rotina coerente e respeitosa com a criança, de uma estabilidade dos adultos e de respostas justamente adaptadas às necessidades individuais. Como consequência, graças a essa atenção e a essa sustentação, a criança se percebia como competente, digna de atenção e reconhecida em sua individualidade.
Emmi Pikler dirigiu esse instituto até 1979, alguns anos antes de sua morte. Ainda hoje, mais de cem anos após o nascimento da médica, as técnicas desenvolvidas ali continuam sendo referência de atenção à criança, iluminando experiências, principalmente europeias, de educação em creches e escolas infantis.
Muitas ideias da psicanálise foram utilizadas para o desenvolvimento desses procedimentos com a criança e com a equipe cuidadora. Uma das ações centrais das profissionais do Instituto Pikler é a narratividade, que constrói um espaço de trocas verbais entre o cuidador e a criança, em que ambos são convocados mais a compreender do que a sentir. A criança e seu cuidador compartilham experiências em sintonia afetiva, mas compreendidas por ambos. A narração das ações realizadas pelo adulto cuidador evita a tensão aniquiladora, vivida pela criança como intrusiva e invasiva.
Para o psicanalista Didier Anzieu, que desenvolveu o conceito de eu-pele, a palavra, o som da voz apaziguadora do adulto, é uma espécie de envelope narcísico, que serve de apoio ao eu da criança durante suas fases precoces de desenvolvimento. Esse envelope inclui também o estímulo à parte sensorial, com o toque respeitoso, o olhar atento, ao lado das palavras descritivas das ações que estão sendo realizadas.
Um exemplo de cuidado respeitoso está na narração detalhada e afetuosa pelo adulto de como será sua atuação com a criança: “Agora vou tomar você em meus braços. Vou acomodar bem a sua cabecinha para trocarmos a sua camiseta. Vou levantar um pouco esse braço, para retirar essa manga. Vamos ao outro braço?”. Também é importante convocar delicadamente a criança a interagir com o adulto cuidador: “Você está confortável? Vamos esperar um pouco antes de retirar suas meias? Obrigada por colaborar com esse momento tão gostoso…”.
*Myriam Chinalli é psicanalista e escritora. Participa do Grupo Acesso, que realiza estudos, intervenções e pesquisas sobre adoção na Clínica do Instituto Sedes Sapientiae. É consultora de ONGs ligadas à defesa dos direitos humanos e autora de livros infantis e juvenis voltados à formação da cidadania.