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Arte e Cultura

O que é preciso para contar histórias?

Memória não é decoreba. Não é repetição. Não é e nunca foi tradicionalismo. Memória renova o aprendizado

Publicado em 04/08/2016

por Gabriel Perissé

fotomatéria

fotomatériaContar uma história é sinal evidente de clareza mental. É preciso ter memória, consciência do presente e “projetabilidade” (ou seja, capacidade de projetar o futuro) para fazer um relato.

O “era uma vez” faz empreender uma viagem na linha do tempo. Quem resolve viajar em sua narrativa tem uma fonte e um destino. E tem as pedras do caminho. Tem tudo para partir. E vai chegar.

O caminho pode ser longo. Ou não. A história curta não é menos perigosa. A longa história pode ter uma duração rápida, se prender a atenção de quem a acompanha. O tempo da viagem é um tempo dentro do tempo. Um universo dentro do universo. Pode ser em verso, como as odisseias. Pode ser em prosa, como escrevia Guimarães Rosa.

Com rima ou sem rima, histórias sempre criam um clima, incluindo o inverno do medo, o outono da saudade, o verão da euforia e a primavera da esperança.

A vitória da memória

Sem memória, não há destino. Porque sempre temos de voltar. O herói tem de regressar à sua pátria. O peregrino tem de cumprir a promessa. A Terra é redonda. O viajante vai andando em frente até fazer a volta ao mundo e dar de cara com seu ponto de partida.

Evoluir é regressar ao local de origem. Toda origem é misteriosa e rica. Do útero da Terra viemos e a ele voltaremos. Quem anda sobre a Terra nunca erra. Errar é humano. Não é um lamento, é uma verdade. Por isso, na escola, o zero, essa nota redonda como o planeta, não é o fim do mundo. O zero é da condição humana. Indica apenas que há muito a caminhar.

Memória não é decoreba. Não é repetição. Não é e nunca foi tradicionalismo. Memória renova o aprendizado. Só guardamos na memória, sem esforço, o que aprendemos de verdade. Ninguém esquece uma história que faça sentido. Se todos os professores contassem histórias (mil e uma histórias), incluindo os conteúdos e saberes que pretendem ensinar, fariam de cada aluno um sultão que não quer dormir.

Senso da atualidade

O momento presente é o que há. É o que é. Identidade é o que temos hoje. A vida é o que de melhor temos para hoje. A etimologia de “hoje” não poderia ser mais óbvia. A palavra veio da expressão latina “hoc dies”, “este dia”. O hoje é o hoje, é este dia, sem dúvida. Não é ontem nem amanhã. É aqui e agora.

A história que contamos coloca a realidade diante de nós. Por mais estranha que pareça. Pode ser a Terra do Nunca ou o País das Maravilhas, o Purgatório de Dante ou a Nárnia de C. S. Lewis, Oz ou o Sítio do Picapau Amarelo, Lilliput ou Macondo: será sempre o lugar em que tudo pode acontecer.

A potencialidade do presente é a aula de hoje. A aula de hoje tem de ser a melhor aula possível. Mas tem de ser uma aula atual. Sem referência à realidade das ruas, o conhecimento fica espremido entre quatro paredes. A gramática, a matemática, a química, a geografia que não colocarem os pés no chão real ficarão falando sozinhas.

Volte ontem!

O dono de uma loja de antiguidades colocou na entrada o seguinte cartaz, escrevendo certo com letras tortas:

No futuro, chegaremos ao nosso ponto de partida. Reencontraremos o sentido da história. Nossos princípios e origens. O futuro da história não é o fim. É o reencontro com nossas esperanças e começos. Todo “era uma vez” será uma vez mais.

O final do ano letivo deveria ser marcado pelo reconhecimento de que no trajeto houve altos e baixos, vitórias e derrotas, desvios e recuperações, sustos e alegrias, mas que sempre no final o saldo é positivo: amadurecimento, ampliação da consciência, transformação do erro em aprendizado.
Somos seres “projetivos”, isto é, vivemos para conceber e realizar projetos. Todo começo de ano teria de ser um período de criação de projetos. Projetos de histórias a serem contadas no final. Cada aluno deveria criar seu projeto, estabelecer seus objetivos e lugares a alcançar.

A falta de projetos revela desprezo pelo futuro e, mais ainda, pelo passado. Deixar as coisas acontecerem de qualquer modo é um modo de não deixar coisa alguma acontecer. Projetos são imprescindíveis. A chance da nossa escola reside na crença de que a história de cada aluno merece ser contada e recontada. Isso não é romantismo pedagógico.

É vida real.

A história de cada um de nós, professores, segue o mesmo caminho. Precisamos encontrar o ontem à nossa frente. É um paradoxo que a etimologia nos ajudará a compreender.

A palavra “ontem” veio do latim “ad noctem”, que significa “a noite anterior”. Quando voltamos para casa, no fim do dia, reencontramos a noite. De novo. E tomamos consciência de como tudo começou. E a noite passada nos conta que vai começar um outro dia, um novo “era uma vez”.

 

Autor

Gabriel Perissé


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