NOTÍCIA
A formação de profissionais passa pela valorização do desenvolvimento da criatividade, seja qual for a carreira
Publicado em 03/11/2022
É 1868. Num acampamento médico, em plena Guerra do Paraguai, a enfermeira Anna Nery pede a um doente que a ajude a cuidar de um ferido. “Era comigo que ela falava, eu respondi balançando a cabeça. Depois me dei conta de que aquela mulher nem existia de verdade”, conta Inês Maciel, professora do Mestrado Profissional – PPGMC/ECO – da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no segmento de narrativas imersivas e Cinematic VR. A cena é do filme Quando nasce uma heroína, a experiência em 360º produzida pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), em 2018.
Em outra oportunidade, Inês está numa sala fechada, coloca os óculos de realidade virtual e percebe que está no interior de uma pirâmide, ou salão de pedra, como nos filmes de Indiana Jones. No início, há um narrador que explica sobre o ambiente e o que precisa ser feito. Inês ouve: “você vai ter de acender uma tocha”. Está lá a pira com o fogo. Inês se aproxima, pega a tocha – é possível pegá-la, vê-la – e a acende. É possível sentir o calor do fogo. Ela vê a montanha, chega até ela, há um caminho estreito e um precipício, e venta demais. “Tenho medo de altura e senti um frio na barriga.” O calor, conta a professora, era proveniente de um aquecedor. E o vento, obviamente, de um ventilador. Ela estava imersa num game produzido por uma empresa brasileira.
A economia criativa se transforma e cada vez mais alavancada pela WEB 3.0, uma nova fase da internet que reúne realidades estendidas, metaverso, tecnologia 5G e internet das coisas. Enorme e variada gama de tecnologias vão sendo introduzidas em múltiplos setores de atividades, das artes em geral ao treinamento de profissionais, de conteúdos educacionais a novas estratégias de marketing. Esses recursos tecnológicos impactam a sociedade e transformam cadeias inteiras de produção e venda de produtos e serviços.
Após os tombos da pandemia, o mercado da economia criativa já começa a se levantar, enquanto outros setores ainda titubeiam. No primeiro trimestre deste ano, houve aumento de 12% no nível de emprego em relação a 2021; na economia como um todo, esse percentual foi de 2%. De acordo com a Unesco, as indústrias criativas geram US$ 2,25 bilhões por ano e 29,5 milhões de postos de trabalho em todo o mundo, e por isso devem ser estrategicamente pensadas.
Gadgets e softwares, cada vez mais, tornam a vida híbrida. O cinema e o marketing foram os primeiros setores a se apropriarem das tecnologias que criam realidades imersivas ou estendidas. Inês cita Fumio Kishino, que desenvolveu o conceito dessas realidades a partir dos níveis de imersão: realidade aumentada, realidade virtual e realidade mista. “Imagine uma piscina com uma escada. Enquanto a água está na altura do peito, é possível ver a realidade física – essa é a realidade aumentada. Um bom exemplo é o jogo Pokemon Go, em que a pessoa está com celular e cria um feature ou, num supermercado, se tiver um conteúdo de realidade aumentada oferecido pelo software, é possível se conectar, por meio de um QR Code, e ver os corredores que estão em promoção. É como se colocassem marcadores e você fosse caçando as promoções.”
Conforme Kishino, na realidade virtual, mais imersiva, a pessoa já mergulhou na água, como na experiência de assistir a um filme 360º. “A melhor forma de perceber esse ambiente é com o óculos de realidade virtual, ou com o cardboard acoplado ao celular, e o headset.” Por fim, a realidade mista, que provoca a imersão total, até o fundo da piscina. “É quando você tem um match entre a realidade física e a virtual.” É bastante utilizada em instalações artísticas ou em games, como o vivenciado por Inês. Nessa experiência, os óculos de realidade virtual precisam estar trackeados ao ambiente, com sensores.
Céline Tricart, especialista em storytelling para novas tecnologias, classificou as experiências com realidades estendidas em três níveis: imersão, presença e embodiment. Na imersão, o espectador sabe que não está onde os fatos acontecem. Inês dá um exemplo: “Assistir a um show do U2 na poltrona de casa com óculos de realidade virtual. Há a apreciação estética, mas em nenhum momento seu cérebro acredita que você está lá”.
No segundo nível, o da presença, é quando a narrativa coloca o espectador na primeira pessoa. Um bom exemplo é o filme sobre a enfermeira Anna Nery. “A narrativa é poderosa e arrasta o espectador. O roteiro e a atriz, Carolina Monte Rosa, são muito bons.” Inês conta que nem todos os atores têm preparo para atuar dessa maneira. Uma das dificuldades é justamente quebrar a quarta parede, ou seja, olhar diretamente para a câmera e falar com ela. A câmera é o espectador. Nessas experiências, como no cinema, o corpo pode reagir primeiro do que a lógica, há uma reação física involuntária.
No nível de embodiment, o usuário começa a ter sensações físicas, como frio na barriga, e a perder completamente a noção da realidade. O cérebro acredita que está lá. Um dos truques narrativos para causar esse nível de envolvimento é poder ver o próprio corpo. “No caso do filme da Anna Nery, assim como no cinema, o espectador não vê seu corpo, pois a sala é escurecida. Se a sala estiver clara na realidade virtual, a primeira coisa que o espectador faz é olhar para baixo e procurar o pé, é uma reação instintiva. No embodiment, o espectador vê o próprio pé, o seu corpo, e interage com outras pessoas. O cérebro acredita que está lá.”
Para além de experimentações, a aplicação dessas tecnologias é vasta. Inês menciona uma delas, o treinamento de profissionais: “Estão sendo feitos a distância, inclusive os perigosos. Imagine treinar para fazer a manutenção de uma torre elétrica de transmissão. Levar uma turma e planejar uma subida, e naquele dia tem uma ventania e não dá para ninguém subir, o treinamento não acontece. Ao invés disso, pode-se usar a realidade mista, pendurar o profissional num rapel, por exemplo. Ele vai aprender numa situação controlada e no final pode até ter uma prova numa situação de risco. Isso reduz muito os custos de treinamento”.
Se parece que, enfim, o futuro chegou, qualquer entusiasmo pede calibragem. Apesar do conselho da Unesco acerca da necessidade de estratégias, o Brasil ainda não tem uma política para a criação dessa indústria e isso empaca o crescimento. A falta de profissionais capacitados a lidar com a profusão de novas tecnologias preocupa, mas é preciso também olhar para a outra ponta: um mercado precisa de usuários e consumidores. “Imagine uma estrada num lugar em que ninguém tem carro”, fala Inês.
Ela explica que na WEB 3.0 a economia criativa não está ligada aos produtores, mas aos financiadores. “E quem está pagando?”, questiona. Os governos têm que financiar o treinamento em toda a cadeia ligada à indústria criativa, como artes, museus, shows e espetáculos, que podem fazer uso da realidade aumentada. Na educação, os exemplos de realidade aumentada pululam: um sistema solar na sala de aula, uma mitocôndria e seus fluxos, o processo da fotossíntese, todos apresentados por meio das novas tecnologias.
“É preciso investir nas empresas, capacitar, dar linhas de financiamento, editais que abracem essa economia criativa, que cria tecnologia o tempo todo, é um sistema de inovação dentro da indústria 4.0”.
Não é de estranhar que faltem profissionais de tecnologia uma vez que sequer há internet em boa parte das escolas públicas. A infraestrutura gerada com a tecnologia 5G, a estrada mencionada por Inês, pode ficar inativa. Por enquanto, ela afirma, “a economia criativa está cavando uma vala”.
Pode não haver incentivos governamentais no Brasil, mas o mercado segue adiante e busca profissionais capacitados. “Na economia criativa há o envelopamento de várias carreiras, onde a criatividade é o grande patrimônio”, fala Patrícia Cardim, diretora-geral do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Por isso, importa educar essa criatividade. Josiane Tonelotto, superintendente acadêmica da Belas Artes, diz que “a grande chave é o que temos de fazer para melhorar o rendimento e a qualidade das pessoas sob o ponto de vista da criatividade. Não é exatamente ser um artista, mas ser criativo. E não é usar essa criatividade de maneira desordenada e isso vale para todos, desde um aluno de artes visuais até aquele que cursa análise de desenvolvimento de sistemas. É preciso educar a criatividade até que o sujeito criativo seja aquele que inova”.
Empreendedor ou não, o profissional ou artista precisa ser dono do seu próprio potencial, afirmam Patrícia e Josiane. Na Belas Artes, semestralmente, acontece o evento BA Creative Collectables, “um funil metodológico”, segundo Patrícia, em que os alunos apresentam o trabalho de conclusão de curso para o mercado. Na última edição pré-pandemia, o evento contou com sete mil visitantes, entre eles, cerca de mil eram avaliadores da indústria, que complementam a nota dos alunos, além da banca acadêmica. “Qualquer aluno que se forma tem que saber dar preço para seu trabalho, saber posicionar seu produto, serviço ou obra de arte, tem que saber quanto custa, se é replicável ou não.”
As realidades estendidas são plataformas em que os artistas podem criar. Inclusive o músico. O sinal sonoro, diz Patrícia, é o primeiro que o cérebro capta e pode direcionar o olhar. “Nós temos o curso de música aqui, esse profissional tem de ser altamente qualificado, e a realidade estendida é mais uma plataforma na qual ele pode trabalhar.” A realidade aumentada pode ser inserida numa obra de arte. O artista Carlos Borsa, aluno formado pela Belas Artes, é o criador de uma pintura a óleo, hiper-realista, que remete à Revolução Francesa: “Ele simplesmente colocou ali um QR Code, que leva a informações acerca da obra”, conta Patrícia.
“O mercado pede por soluções que impactem positivamente os ambientes e que considerem as experiências dos usuários. Neste sentido, o foco deixa de ser apenas técnico e, cada vez mais, teremos que desenvolver múltiplas competências, que colocam o ser humano no centro, em qualquer que seja a área de formação”, fala Danielle Coimbra, diretora do Centro de Ciências e Comunicação e Gestão da Universidade de Fortaleza (Unifor).
Como a Belas Artes, a Unifor oferece cursos mais alinhados ao tema, como Design, Publicidade, Marketing, Arquitetura, entre outros. Ela afirma que o estudante precisa criar seu repertório, ter contato com a arte em suas diversas formas de expressão e com a cultura, possibilitando novos olhares e perspectivas para construir novas visões de mundo. “Nossos cursos têm trabalhado muito neste sentido, conectando a formação com processos diversos de experimentação e desafios do mundo real. O desenvolvimento da criatividade tem abordagem transversal, e entre as competências desenvolvidas estão a capacidade empreendedora, a liderança, o pensamento complexo e, sobretudo, visões diferentes, endereçando soluções inovadoras e sustentáveis.”
Inês afirma que a teoria é fundamental. “Falo para os meus alunos que se eles acham que aprender software é o filé mignon deste conteúdo, estão enganados. Porque amanhã a Adobe pode acabar com o Photoshop, lançar outro programa, e eles terão que aprender tudo de novo no YouTube. O filé mignon do assunto é a parte teórica, e são esses os conteúdos que eles levarão para o resto da vida. Não pode ser só ‘mão na massa’, porque há conteúdos ligados à psicologia, à ergonomia cognitiva, à ótica.” Ela menciona que os conhecimentos que obteve nos anos 80, nos campos da história da arte, da teoria da imagem e da cor, por exemplo, continuam pertinentes. Essa base teórica e o desenvolvimento de habilidades como saber desenhar com o computador ou usar um software se complementam.
A matéria faz parte da edição de outubro da Revista Ensino Superior. Assine.