NOTÍCIA
Na luta contra as mudanças climáticas, devemos garantir que as soluções não sobrecarreguem indevidamente mulheres e meninas
Publicado em 24/02/2023
Por James Morrissey, Sherilyn MacGregor e Seema Arora-Jonsson*: A 66ª sessão da Comissão sobre a Situação das Mulheres (CSW, na sigla em inglês) das Nações Unidas, cujo tema foi “Mudanças Climáticas, Meio Ambiente, Redução do Risco de Desastres”, terminou em março de 2022. O encontro reconheceu o dano desproporcional que mulheres e meninas vão sofrer a partir das mudanças no clima, bem como o papel central que desempenharão na conquista do desenvolvimento sustentável.
Embora as declarações pronunciadas sejam verdadeiras e importantes, um novo relatório da Oxfam argumenta que, se nessa agenda não houver foco central no trabalho de cuidado, os esforços voltados para a relação entre mudanças climáticas e gênero podem acabar aprofundando as desigualdades nesse âmbito, em vez de enfrentá-las.
“Trabalho de cuidado” se refere ao trabalho cotidiano e geracional que os seres humanos empreendem para renovar e sustentar a vida, as sociedades e os ambientes. Inclui trabalho remunerado e não remunerado no atendimento direto às pessoas (por exemplo, banho, alimentação e apoio ao bem-estar psicológico), assim como as atividades indiretas, que fornecem as condições necessárias para a prestação do cuidado (cozinhar, limpar, fazer compras, entre outras). O trabalho de cuidado é em grande parte invisível quando comparado com os aspectos “produtivos” do trabalho, em geral monetizáveis, que tendem a dominar as políticas públicas. Há poucas fronteiras entre ambos, e as mesmas pessoas se envolvem nos dois.
O cuidado tende a ser realizado de forma desproporcional por mulheres e meninas em todo o mundo. Dados de pesquisas indicam que elas costumam trabalhar mais horas totais do que os homens por causa da responsabilidade adicional que assumem com tarefas desse tipo. E como o trabalho de cuidado é desvalorizado, as mulheres veem limitadas suas chances de alcançar igualdade econômica e política. Falta-lhes tempo para se envolver em geração de renda ou em atividades como educação, participação cívica e lazer.
As privações que resultam dessas questões constituem a “crise de cuidados”, segundo pesquisadores, organizações feministas e um número crescente de instituições que inclui Nações Unidas e o Banco Mundial. Embora algumas evidências indiquem que a atual distribuição desigual do trabalho de cuidado dentro das sociedades e famílias esteja melhorando, as mudanças climáticas devem agravar a crise existente.
Os impactos das mudanças climáticas na crise de cuidados vão se manifestar por três vias: aumento da necessidade por atividades de cuidado, maior dificuldade na prestação desse trabalho e agravamento das injustiças que já existem em torno da responsabilidade desigual de trabalhadores de cuidado.
Considere os cenários que explicam essas vias: com eventos climáticos extremos mais frequentes, crescem ferimentos, doenças, desnutrição e sofrimento psíquico, o que ampliará a demanda por atividades de cuidado; cuidadores que enfrentarem fome, doenças, dor física, ou estresse psicológico, serão menos capazes de exercer seu ofício e terão dificuldade caso a infraestrutura que sustenta esse trabalho (por exemplo, escolas, hospitais, água e saneamento) for afetada por eventos climáticos mais frequentes; por fim, caso a crise do clima implique a necessidade de percorrer distâncias mais longas para acessar água e combustível, por exemplo, haverá o agravamento do risco de violência de gênero com mulheres se expondo a mais riscos de abuso.
O papel das mudanças climáticas no agravamento da crise de cuidados pode ser mais agudo entre as cerca de 2 bilhões de pessoas que vivem em países de baixa renda e estão envolvidas com a agricultura de subsistência. Com menos acesso à infraestrutura de prestação de cuidados, essas populações também devem assumir tarefas adicionais na forma de cuidados ambientais – por exemplo, cuidar de hortas comunitárias ou manter os recursos florestais. Os impactos nocivos da mudança climática tornam as tarefas de cuidado mais difíceis.
Enquanto a crise do clima vai seguir agravando a de cuidados, os esforços para enfrentar as mudanças climáticas podem ter, paradoxalmente, o mesmo efeito. Os esforços de mitigação e adaptação que alteram o acesso aos recursos ou exigem mudanças de comportamento acabam por influenciar a prestação de trabalho de cuidados e podem aprofundar a desigualdade de gênero.
Da mesma forma, muitas iniciativas climáticas envolvem programas de educação ou conscientização que demandam dedicação intensiva e podem sobrecarregar ainda mais aqueles com maiores responsabilidades de cuidado. Até mesmo programas de empoderamento econômico dirigidos às mulheres têm ignorado as normas sociais que determinam a responsabilidade pelo trabalho de cuidado, o que resulta em mais demandas no tempo das mulheres.
Esforços para enfrentar as mudanças climáticas que ignorarem as dinâmicas de cuidados estão fadados a sofrer um de dois destinos. Em situações em que as inovações requererem mudanças de comportamento ou a adoção de novas tecnologias, estas simplesmente serão ignoradas se significarem carga adicional no tempo das pessoas. Por outro lado, se tais intervenções forem inevitáveis, evidências passadas sugerem que, frequentemente, a situação das mulheres fica pior do que era antes da intervenção.
Não podemos adiar ou diminuir nossas ambições na luta global contra as mudanças no clima e cabe aos países industrializados, que carregam a maior responsabilidade pelas mudanças climáticas e que têm maior capacidade para enfrentá-las, esforços agressivos de mitigação e de financiamento climático para apoiar os países mais pobres e vulneráveis.
Esses esforços, no entanto, devem tornar-se sensíveis à forma como o trabalho de cuidado é feito atualmente em diferentes sociedades. É preciso conceber iniciativas de clima que abordem as necessidades de adaptação e de mitigação e enfrentem as forças sistêmicas que modelam a distribuição desigual do trabalho de cuidado. Infelizmente, é improvável alcançar esse duplo objetivo se apenas ajustarmos as iniciativas climáticas para aparentar serem “responsivas às questões de gênero”. Os fatores estruturais que moldam a distribuição do trabalho de cuidado são altamente específicos de cada contexto, enraizados em diferentes conjuntos de normas e relações de gênero, bem como na interação com questões de classe, raça, etnia e orientação sexual.
Acrescenta-se a esse complicado quadro a cautela que se deve ter a respeito de como são caracterizadas as injustiças em torno do cuidado. Embora seja verdade que a responsabilidade desproporcional das mulheres pelo trabalho de cuidado impulsiona desigualdades estruturais de gênero, o engajamento nesse tipo de ofício muitas vezes se revela uma importante fonte de significado e status social.
Iniciativas climáticas devem avaliar de que forma as responsabilidades moldam os meios de subsistência e o bem-estar individual. Esse requisito demanda a centralização das vozes e perspectivas dos cuidadores na concepção, implementação e avaliação das ações relacionadas ao clima. Para garantir que suas necessidades sejam consideradas, recomendamos a estrutura de 5Rs que se origina no trabalho da cientista social Diane Elson e do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas:
1) reconhecer a importância do trabalho de cuidado na sociedade e as injustiças associadas com a responsabilidade desproporcional das mulheres para realizá-lo; 2) reduzir a carga geral dos cuidados, de tal forma que as mulheres tenham mais tempo para se dedicar a outras prioridades; 3) redistribuir a responsabilidade pelo trabalho de cuidado, seja alterando as normas que atribuem as responsabilidades por interseccionalidade de gênero para o trabalho de cuidado (ou seja, normalizá-lo como trabalho que homens e meninos realizam em igualdade de condições), seja coletivizando o trabalho de cuidado por meio, por exemplo, do investimento do governo em infraestrutura de cuidado, como escolas, assistência à saúde, água e saneamento; 4) proporcionar representação aos cuidadores – por meio de organizações políticas e participação facilitada – para que possam desenvolver programas e políticas que afetam suas vidas; e 5) recompensar cuidadores pelo trabalho que realizam pela remuneração direta (uma abordagem com alguma controvérsia) ou por meio da provisão de direitos básicos.
No contexto das mudanças climáticas, a estrutura de 5R sugere três áreas para priorização estratégica. Primeiro, o apoio a investimentos em tecnologia e infraestrutura identificados pelos cuidadores como necessários para aliviar as crises gêmeas do clima e do cuidado – por exemplo, infraestrutura de energia e água ou tecnologias agrícolas que economizam mão de obra.
Segundo, investir em infraestrutura social de longo prazo e mecanismos de apoio, como garantias de emprego, pensões, recursos financeiros, programas de transferência de ativos e microsseguros. Entre as populações de baixa renda em países menos industrializados, tais mecanismos tendem a ser aplicados apenas limitadamente e em tempos de crise aguda. Dada a crescente complexidade e dado o leque interligado de riscos que pessoas pobres e vulneráveis enfrentam, abordagens estreitas e limitadas serão insuficientes para construir a resiliência dos mais pobres e marginalizados e aliviar os complexos desafios com que os cuidadores se defrontam.
Terceiro, buscar esforços que unam as iniciativas climáticas àquelas que compartilhem o trabalho de cuidado de forma mais igualitária em nível doméstico. Por exemplo, trabalhar para mudar as normas de gênero (de tal forma que todas as tarefas sejam vistas como igualmente aceitáveis para homens e mulheres), como parte da programação climática.
Alguns leitores podem ficar surpresos com o fato de que a agenda climática dominante seja tão indiferente às questões relativas ao trabalho de cuidado e à desigualdade. É reconhecidamente desafiador combinar os esforços de mitigação e adaptação do clima com a atenção à dinâmica do cuidado. Mas o fracasso nessa tarefa pode significar que os esforços de estabilização do clima sensíveis às questões de gênero aprofundem esse tipo de desigualdade em vez de corrigi-la, causando cada vez mais danos a mulheres e meninas em todo o mundo. E, tão importante quanto, tal fracasso poderia, em última análise, minar os próprios esforços relacionados às mudanças climáticas.
James Morrissey é pesquisador sênior e trabalha com temas como energia, clima e indústrias extrativas na Oxfam America. Sherilyn MacGregor é professora de política ambiental na Manchester University. Seema Arora-Jonsson é professora de desenvolvimento rural na Swedish University of Agricultural Science.
*Este artigo faz parte da revista Stanford Social Innovation Review Brasil. Clique aqui e tenha acesso a conteúdos sobre inovação social.