A demanda por novas habilidades muda mais rápido do que as instituições tradicionais conseguem atualizar seus currículos, levando empregadores a preferirem certificações específicas e experiência prática
Muitas IES ainda estão cambaleando, tentando entender a origem da ameaça à sua sobrevivênciaDespertando da ressaca coletiva dos tempos áureos de demanda reprimida, muitas IES ainda estão cambaleando, tentando entender a origem da ameaça à sua sobrevivência. No imaginário de algumas, constam razões como a concorrência acirrada com outras IES e o crescimento exponencial da educação a distância (EAD) promovido pelos grandes grupos de educação. Em sua maioria esmagadora, não perceberam que as verdadeiras ameaças nasceram imperceptíveis às lentes da autossuficiência dominante no setor.
No mundo real, alunos começaram a vivenciar a destruição criativa que aprenderam nas aulas de economia ao se hospedar usando Airbnb, pedir comida pelo iFood, chamar um Uber ou fazer compras na Amazon, tudo isso em menos de três cliques. Eles pagam contas com Pix, fogem dos engarrafamentos com Waze, realizam consultas médicas online, abrem contas em bancos sem sair de casa, consomem conteúdos do YouTube e Tik Tok e assistem suas séries com ajuda dos algoritmos de recomendação da Netflix.
Enquanto isso, na matrix acadêmica, esses mesmos alunos se deparam com processos arcaicos que exigem assinaturas físicas e pagamentos de boletos. Diferentes plataformas demandam múltiplos logins, cada uma com suas próprias senhas e requisitos de segurança. As aulas frequentemente terminam até duas horas antes do previsto, e as leituras intermináveis de power points substituem discussões interativas e materiais mais dinâmicos. Toda essa experiência cria um ambiente de aprendizado desatualizado e desconectado da realidade tecnológica e eficiente que os alunos encontram fora dos muros da instituição.
O mais irônico é que não são apenas os alunos que vivem o contraste desses dois mundos, mas também os dirigentes universitários, afinal, eles também utilizam Uber, Waze, iFood e aplicativos bancários. Imersos em um padrão de consumo ditado por empresas obcecadas pelo design da experiência do usuário, eles não perceberam que as expectativas sobre uma boa jornada de consumo foram completamente redefinidas. No entanto, alguém percebeu.
A demanda por novas habilidades muda mais rápido do que as instituições tradicionais conseguem atualizar seus currículos, levando empregadores a preferirem certificações específicas e experiência prática. Redes sociais como LinkedIn, Facebook, Reddit, YouTube e até mesmo o Tik Tok facilitam a troca de conhecimento e networking, enquanto empresas como Apple, Amazon, Google, IBM e Microsoft desenvolvem programas de certificação valorizados, muitas vezes considerados equivalentes ou superiores aos cursos universitários.
Sinal evidente da morosidade da educação formal é o crescimento das universidades corporativas (UC), pois reflete a necessidade das empresas em se adaptarem rapidamente às mudanças do mercado de trabalho e ao desenvolvimento contínuo de seus colaboradores. Exemplos dessa tendência incluem a Universidade Corporativa Ambev, UniBB (Banco do Brasil), Universidade Corporativa Sebrae, Universidade Petrobras, Faculdade Unimed, Hamburger University (McDonald’s), Universidade Corporativa Embracon, UniBistek (Bistek), Universidade Corporativa Vero e Universidade Corporativa Farmácias Associadas.
Além do seu crescimento natural, as UC ainda contam com o impulsionamento das startups de educação (edtechs), fornecendo ferramentas e tecnologias inovadoras para criar ambientes de aprendizado mais flexíveis, atualizados e personalizáveis. Essas soluções permitem que as universidades corporativas ofereçam cursos adaptados às necessidades específicas das empresas, garantindo que os colaboradores desenvolvam habilidades relevantes e aplicáveis ao seu contexto.
Um estudo da Liga Ventures revela um cenário alarmante sobre a inoperância do segmento educacional formal frente ao avanço das Edtechs no Brasil. Foram mapeadas 390 edtechs ativas, distribuídas em 23 categorias, incluindo educação corporativa (11,79%), capacitação profissional (9,74%) e formação tecnológica (7,69%). Cerca de 25% dessas startups foram criadas entre 2019 e 2022, destacando-se em educação corporativa (22%), formação tecnológica (14%) e capacitação profissional (12%).
A pandemia acelerou significativamente a criação de startups, especialmente voltadas à educação corporativa, refletindo a incapacidade das instituições tradicionais de acompanhar as demandas emergentes. No período de janeiro de 2022 a setembro de 2023, 29 acordos movimentaram cerca de R$ 487 milhões, com startups de saúde (33%) e finanças e negócios (31%) liderando os investimentos.
O estudo também destaca a concentração geográfica das startups, com São Paulo abrigando 47% delas, seguido por Minas Gerais e Rio de Janeiro, ambos com 9%. A análise de maturidade revela que 44% das edtechs são emergentes, 31% estáveis, 12% nascentes e 13% disruptivas, utilizando tecnologias como gamificação (19%) e data analytics (12%). Esse cenário evidencia a urgente necessidade de adaptação e inovação das instituições de ensino formal para não se tornarem obsoletas frente a um mercado em rápida transformação.
Esse abismo monumental deixado pelo setor educacional chamou a atenção de quem pode ser a sentença de morte para muitas IES.
Os 450 milhões de anos de evolução transformaram os tubarões em predadores altamente eficientes, a ponto de quase não precisarem mudar ao longo de sua existência para sobreviver. Eles conseguem detectar o cheiro de uma gota de sangue em 2 milhões de litros de água, o equivalente a uma piscina olímpica. Eu disse uma única gota de sangue.
Assim como os tubarões têm um superolfato capaz de detectar uma gota de sangue em milhões de litros de água, o mercado também possui uma sensibilidade aguçada para identificar problemas e oportunidades. No entanto, não estamos falando de uma única gota de sangue, mas de um ferimento que sangra há muitos anos. O mercado sentiu essa ferida e está atacando com força, mas infelizmente, muitos dirigentes ainda não perceberam a gravidade dos ataques e a necessidade urgente de adaptação.
Não se trata mais apenas de universidades corporativas, mas de instituições de ensino formal, autorizadas pelo MEC. Este movimento inclui não apenas a criação de IES por empresas, mas também o fenômeno das edtechs adquirindo IES, marcando uma nova era na educação brasileira. Os sinais estão cada vez mais claros e intensos.
Chamada pelo portal Infomoney de “faculdade de ricaços e herdeiros”, a Link School of Business foi criada por um ex-sócio da Tarpon, gestora de investimentos, e inspirada em universidades americanas como a Babson College. O currículo da Link inclui aulas de oratória, gerenciamento de crises e até etiqueta.
A Link investe R$ 5 milhões por semestre em startups de alunos e possui unidades em Boston, Palo Alto e Berlim, promovendo intercâmbio internacional entre seus alunos. Ela contabiliza mais de 82 companhias criadas por alunos entre 18 e 22 anos, tendo participação em pelo menos 13 desses negócios. Muitas dessas empresas foram avaliadas em milhões de reais, com muitos alunos pagando a faculdade com o faturamento dos próprios negócios. A criação de empresas é estimulada desde o primeiro semestre.
Com mensalidade em torno de R$ 12 mil para os cursos de graduação em administração de empresas e tecnologia, a Link opera em um patamar de preço muito acima da média cobrada por IES como Fundação Getulio Vargas (FGV) e Insper. Em seus planos, consta ainda uma escola de Direito ou Design. Sim, design.
Fundado pelos empresários André Esteves e Roberto Saloutti, sócios do BTG Pactual, o Instituto de Tecnologia e Liderança (Inteli) é a primeira faculdade de computação baseada em projetos do Brasil. O currículo teve a curadoria de Maurício Garcia, conselheiro acadêmico do Inteli, com vasta experiência em tecnologia, passagens pela USP como professor e uma carreira exitosa como executivo no ensino superior, tendo atuado como vice-reitor da Universidade Anhembi Morumbi, vice-presidente da Adtalem Educacional e empreendedor.
O Inteli tem a missão de desenvolver seus alunos em três conjuntos de competências: computação, aprofundando em inteligência artificial, ciência de dados, segurança cibernética; negócios, abordando áreas como finanças corporativas, inteligência de mercado, marketing digital, people analytics e sustentabilidade; e em aspectos comportamentais como comunicação, ética e resiliência.
Pela primeira vez no Brasil, uma startup adquiriu uma IES. Quando o Descomplica anunciou a compra da UniAmérica, a IES era reconhecida pelo MEC como uma das instituições de ensino mais inovadoras do país e já havia se tornado centro universitário. A escolha da UniAmérica foi atribuída ao seu modelo acadêmico baseado em projetos e em conexão radical (e verdadeira) com o mercado.
A IES foi a primeira na América Latina a oferecer cursos semipresenciais integrados ao mercado de trabalho. Em vez de polos EAD tradicionais, a UniAmérica colocou salas de aula diretamente no setor produtivo. Exemplos incluem o curso de farmácia EAD com polo na Prati-Donaduzzi, uma grande indústria de genéricos, e o campus Nutrimental em São José dos Pinhais (PR) dentro de uma fábrica de alimentos.
O modelo foi desenvolvido por Ryon Braga, CEO da Rede Multiversa, fundador da Hoper Educação e um dos principais e mais respeitados nomes da gestão universitária do país.
A Edtech Gran adquiriu o Centro Universitário UniBagozzi em Curitiba, repetindo o sucesso de seus cursos preparatórios para concursos públicos no mercado de ensino superior. Com o lançamento da Gran Faculdade, a empresa alcançou 50 mil alunos, número quatro vezes maior que a captação média das mantenedoras de grande porte.
O Sistema Gran de Ensino apresentou várias novidades para 2024, focadas na modernização da educação e tecnologia. Entre as atualizações, destaca-se a introdução da MAIA, uma nova inteligência artificial que funciona como um assistente interativo, proporcionando uma experiência de aprendizagem personalizada. Além disso, o sistema agora conta com comentários gerados por IA em questões, com uma precisão de 90%.
Quando a plataforma de aulas de programação online Alura anunciou a aquisição da Faculdade de Informática e Administração Paulista (FIAP) em agosto de 2022, com o apoio dos fundos de investimento Crescera e Seek, a projeção de faturamento era de R$ 420 milhões, consolidando ainda mais sua posição como o maior ecossistema de ensino em tecnologia do Brasil. A escolha da FIAP pela Alura foi motivada por seu robusto posicionamento estratégico no mercado tecnológico, com um modelo acadêmico autoral inovador e uma verdadeira conexão com o mercado.
Uma das grandes preocupações de Wagner Sanchez, pró-reitor do agora Centro Universitário FIAP, é a rápida adoção de novas tecnologias e a atenção à felicidade do aluno, características que destacam a FIAP e evidenciam a importância de um mindset ágil e focado no bem-estar estudantil, ou seja, a centralidade no cliente na veia da cultura institucional.
Depois de adquirir a Witseed em abril de 2023 e entrar na área de educação corporativa, em julho do mesmo ano o grupo Exame reforçou a sua vertical educacional com a aquisição da IPD Digital, criando a Faculdade Exame. Com a transação, trouxe para dentro de casa mais de 40 mil alunos e 130 cursos, com conteúdos segmentados sobre liderança, soft skills, diversidade ESG e tecnologia. Entre os clientes estão nomes como Vale, Natura e Gerdau. Desde 2020, quando o BTG Pactual assumiu a revista Exame, o braço educacional já teve mais de 65 mil alunos.
Atualmente, a Faculdade Exame oferece o curso de graduação em Ciência de Dados e Inteligência Artificial, mas possui autorização no Mec para operar com os cursos de análise e desenvolvimento de sistemas e gestão da tecnologia da informação.
Em abril de 2024, o empresário Joesley Batista, através do Instituto J&F, recebeu autorização do Ministério da Educação para oferecer cursos universitários. Joesley é um dos fundadores do Grupo J&F, holding que controla a JBS, uma das maiores indústrias de alimentos do mundo. A JBS é líder global em proteínas animais, com uma receita líquida de quase R$ 364 bilhões registrada em 2023
A Faculdade J&F começará com o curso de gestão comercial, oferecendo 150 vagas na modalidade EAD, ampliando a atuação do Instituto J&F, que já oferecia cursos de educação básica e ensino médio desde 2008.
Da mesma forma que a Link abriu um novo curso de tecnologia com ênfase em negócios, em junho de 2024, o Inteli abriu um curso de administração com ênfase em tecnologia. O novo curso, que conta com uma carga horária de 4.000 horas e uma mensalidade de R$ 6.770,00, visa formar profissionais completos e preparados para os desafios do mercado em constante transformação digital.
O curso do Inteli reconhece que todos os negócios são agora negócios de tecnologia, combinando o melhor das finanças, empreendedorismo e liderança para uma formação integrada e atualizada.
Será que a inércia do ensino superior algum dia encontrará limites? Ou será que ela vai nos fazer assistir enquanto grandes potências globais se cansam de esperar e fazem o que as IES deveriam estar fazendo? O setor vai acordar a tempo?
Vamos presenciar os melhores cursos de agronegócio sendo oferecidos pela John Deere ou pela Kepler Weber? Ou então, ver a engenharia mecânica sendo ensinada pelas mãos experientes da RandonCorp ou da Caterpillar?
E o que dizer do campo da tecnologia da informação, onde a Microsoft e a IBM já lideram com suas inovações contínuas? No marketing digital, o ensino será dominado pelo Google ou pela Meta, que já ditam as regras do mercado? A inteligência artificial, área em rápido crescimento, será melhor ensinada por OpenAI ou NVIDIA, empresas que estão na vanguarda dessa tecnologia?
A IDEO influenciou a D-School de Stanford, mas como seria a faculdade de design da Apple? A sustentabilidade poderá ser melhor aprendida com a Tesla ou a Natura? Como seria uma mentoria com Elon Musk?
Em logística, DHL e Amazon são os gigantes que podem transformar a educação prática deste campo. Quanto valeria aprender por algumas horas com Jeff Bezos? Para finanças, o aprendizado mais valioso virá de Goldman Sachs ou JP Morgan, que possuem uma compreensão ímpar dos mercados financeiros.
Em hospitalidade, Marriott International e Airbnb redefiniram o conceito de atendimento ao cliente e poderiam ser as novas universidades de hospitalidade. Como seria um curso de atendimento ao cliente criado pela Disney ou Zappos, que são sinônimos de excelência?
Como seria a escola de consultoria da McKinsey ou do Boston Consulting Group com seus métodos e práticas que moldam as estratégias empresariais globais?
Por fim, faço uso de uma passagem emblemática de Silvio Meira, referência em transformação digital, ao falar sobre mudança. Meira defende que o processo de transformação estratégica de qualquer negócio é um conjunto de mudanças na teoria da prática do negócio. O cientista alerta sobre os perigos de inovar sem mudar a teoria da prática do negócio, pois pode trazer alterações imprevisíveis, tanto na prática quanto na teoria do negócio.
Refletindo sobre a trajetória da sua performance financeira, mercadológica, acadêmica e de inovação nos últimos anos: será que em dois anos você não se arrependerá de não ter decidido inovar agora?
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Por: Daniel Sperb | 05/07/2024