NOTÍCIA

Edição 289

Educação empreendedora: vocação, mindset e paixão

Ensinar competências empreendedoras significa ensinar a inovar, identificar oportunidades e assumir riscos, identificar o problema e criar soluções para ele, além de desenvolver o pensamento crítico

Publicado em 20/12/2024

por Sandra Seabra Moreira

Thales Lima - empreendedorismo No âmbito do programa Jovens embaixadores, Thales Lima conheceu Washington e Chicago (foto: arquivo pessoal)

Thales Lima, vinte anos, se vê como um líder. E é. Essa característica o levou de Brás de Pina, pequeno bairro da zona norte do Rio de Janeiro, à Education City, em Al Rayyan, localidade próxima a Doha, no Catar. Lá, universidades norte-americanas como a Georgetown, a Carnegie Mellon e a Northwestern University têm campus, espécies de filiais. É na Northwestern que Thales cursa o segundo ano do curso Journalism & Strategic Communication.

A vaga foi conquistada por meio do envio de dois textos requisitados e de um currículo repleto de prêmios e extensa lista de atividades extracurriculares. Ele conheceu o campus principal da Northwestern quando foi a Chicago, como participante do programa Youth Ambassador, Jovens Embaixadores, do Departamento de Estado dos Estados Unidos. O campus em Doha e o curso foram escolhidos por meio de pesquisa na internet.

“No Enem, se você estiver mal no dia, joga um ano no lixo. Já as universidades norte-americanas têm uma visão holística, de como você é como ser humano. E aí mandei isso tudo em janeiro de 2023 e em março recebi a resposta de que tinha sido aceito com bolsa completa de mérito.”

A liderança de Thales inspira-se na figura do avô materno, Cosme Lopes. “Nasci num lar onde o voluntariado era muito presente, começando com o meu avô, que sempre era bastante ativo na comunidade. Foi taxista por sessenta anos e se importa com tudo, do gato de rua à comunidade em geral”, conta o neto.

 

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O avô influenciou a mãe de Thales, Adriana Albuquerque, fundadora do Eu me importo, instituto que atende crianças com câncer e suas famílias. “No instituto, eu participava de coisas gerais, desde organizar uma cesta básica até fazer um post e tomar sorvete com uma criança – porque são essas coisas pequenas que fazem uma diferença enorme para elas.” Thales acredita que a cultura familiar “contribuiu bastante” para o desenvolvimento do senso de liderança.

Thales Lima

Thales pesquisou na internet oportunidades para jovens “com o mesmo background” que o dele. Encontrou o curso do jornal americano, na The School Of The New York Times (foto: arquivo pessoal)

No ensino fundamental, cursado numa escola particular do bairro em que a mãe era professora de espanhol e português, o que lhe conferiu uma bolsa integral, Thales organizava passeios para a comunidade escolar, projetos que envolviam a escola toda e a sala de aula. “Eu gostava muito de contribuir, de tomar a iniciativa em tudo o que era novo, que mudasse a dinâmica da aula e a relação entre aluno e professor.”

Em dezembro de 2019, enfrentou tensão e desânimo por causa da matemática, no exame para ingressar na Escola Técnica Estadual Juscelino Kubitschek (ETEJK/FAETEC), no curso técnico integrado, administração, negócios e marketing. A mãe dava uma força. “Não ser um gênio na matemática não quer dizer que você perdeu todas as oportunidades na vida”, e mencionava as múltiplas inteligências.

 

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Thales foi aprovado e veio a pandemia. “Fiquei quase um ano só fazendo trilhas, nem conhecia os rostos dos professores.” Daí veio o sistema do Google drive. “Tínhamos oficinas nas aulas de química com dinâmicas bem legais, que envolviam o grupo todo. Eu era um aluno que não ligava a câmera, só falava por microfone, mas queria deixar minha marca de alguma forma.”

Um dia, enfim, Thales ligou a câmera. Foi nas aulas de empreendedorismo e inovação, em que o professor Eduardo Gusmão dava espaço para a expressão dos estudantes. “Quis trazer a bagagem que eu já tinha, conhecimentos diversos que também chamo de aleatórios.” Foi um desaguar – “quando fui ver, já estava falando metade da aula”.

Ainda no período mais difícil da pandemia, Thales participou de atividades virtuais da JK Sustentável e seu programa Elos da Cidadania. As oficinas de compostagem animaram o rapaz. Passou a organizar oficinas e mediar palestras com especialistas e professores de outras instituições. “Me joguei para o mundo, numa instituição em que não conhecia ninguém, ao contrário do instituto da minha mãe. Eu precisava desenvolver meu próprio trabalho.”

 

Empreendedorismo na veia

Desafio Liga Jovem

Jovens que venceram o Desafio Liga Jovem, do Sebrae, em Madri (foto: divulgação/Sebrae)

Outra disciplina importante para ele foi a de direito em empreendedorismo, ministrada por Ana Letícia, a mesma docente que meses depois coordenaria os alunos no Desafio Liga Jovem, do Sebrae. A professora trouxe aos estudantes a oportunidade de participar dos Innovation Camps da Junior Achievement, “uma organização mundial centenária, com uma filial no Rio, que ofereceu projetos para escolas públicas do Brasil durante a pandemia, para que a gente pudesse exercitar esse senso de liderança, de empreendedorismo e criatividade, mesmo a partir do mundo virtual. E me abriu portas incríveis”.

No primeiro deles, o objetivo foi encontrar uma solução que conectasse as bases de combustíveis dos Postos Ipiranga às comunidades do entorno. Thales trazia a bagagem sobre o tema da sustentabilidade, conquistada nas atividades da JK Sustentável. E conhecia a realidade de um aterro sanitário em Gramacho, na região de Duque de Caxias, RJ, em que no entorno vivia uma população bastante expressiva. Coincidentemente, havia uma base da Ipiranga bem próxima. Despontou, além do líder, o desejo de ser jornalista. “Trouxe um pouco do que vi, das histórias que ouvi lá, uma coisa bem jornalística mesmo.”

 

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Thales e seu grupo criaram o Econteiner. O protótipo sugeria um contêiner do tamanho de um pequeno prédio, na horizontal, para abrigar atividades culturais, uma minibiblioteca para atrair a comunidade, um lavatório para as mãos. “Muita gente esquece que higiene faz parte de uma educação sustentável. Infelizmente, crianças morrem por coisas simples, como a falta de acesso para lavar as mãos, então queria cuidar desde essa parte mais básica até uma maior, que envolvesse educação.”

O projeto conquistou o segundo lugar na competição nacional. “Fiquei feliz demais e não queria mais parar. Meu lema até hoje é ‘amar o problema antes da solução’.” Meses depois, novo desafio. Uma proposta para aumentar colaboradores dos grupos LGBTQIA+. “Os Postos Ipiranga tinham o bordão ‘Pergunta lá’. Nós entramos com ‘Pergunta lá com orgulho’.” No projeto, uma plataforma acessível para pessoas LGBTQIA+ e que, ao mesmo tempo, as conecta com abrigos, já que muitas são despejadas de suas casas e convívios. De novo, um segundo lugar na competição nacional. Vieram outros desafios com empresas como a Dell e a Ultragaz.

 

O desafio Liga Jovem

Thales e seu grupo criaram o Refugia, uma plataforma em que refugiados podiam oferecer produtos, além de se conectarem com as entidades apoiadoras. Perderam dois certames da Junior Achievement com a proposta. Havia algo a aprimorar. A oportunidade de fazê-lo veio no Desafio Liga Jovem, do Sebrae.

“A virada empreendedora foi perfeita. Trouxeram pessoas das áreas mais diversas, não eram só especialistas, mas gente que começou por baixo, empreendedor médio também. Eram lives em tempo real no YouTube, a gente adorava.” Diferentemente dos cerca de três dias que dura um Innovation Camp, o Desafio acontece por três meses. “Humanizado e educativo.”

Com mais tempo e experiência acumulada, a turma reformulou o projeto, que hoje tem um público “mais nichado” e apoia migrantes e refugiados artistas. O Refugia tornou-se uma startup, com plataforma que oferece curadoria de arte e geração de renda através da venda de NFTs e produtos licenciados. Enfim, Thales venceu. A equipe foi a Madri, em viagem que o Sebrae chama de missão internacional.

Hoje em dia, Thales mantém sua participação no JK Sustentável e no projeto Refugia.

 

Madri, só o começo

No último ano do ensino médio, em 2022, parecia certa a opção pelo curso de administração. O estágio de um ano na Fundação de Apoio à Escola Técnica, com uma bolsa-salário, apontava esse caminho. Todos viam em Thales um empreendedor, mas “à noite, imaginando o futuro, as imagens eram outras”, lembra. Queria ser jornalista e estudar no exterior.

As chances pareciam mínimas, mas Thales começou a pesquisar oportunidades na internet para jovens “com o mesmo background” que o dele. Encontrou o curso de verão do jornal americano, na The School Of The New York Times. Traduziu o boletim por conta própria, providenciou carta de recomendação, adicionou atividades extracurriculares e a experiência de empreendedorismo. Foi aceito com 70% de bolsa. Faltavam R$ 15 mil. Thales perdeu o resto de timidez que tinha, recorreu à comunidade da sua escola, à vizinhança, ao financiamento coletivo na internet, enviou e-mails a famosos e autoridades e vendeu trufas. Embarcou para a meca da diversidade em junho.

Foram duas semanas. Lá se viu sozinho com um cartão do metrô para andar pela cidade. E reportou como uma pequena comunidade de senegaleses em Nova York se organizou durante a pandemia. Harlem’s Little Senegal: How did Senegalese Americans resist in times of the covid-19 pandemic? foi seu trabalho final.

 

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De volta ao Brasil, foi um dos 50 selecionados para o programa Jovens Embaixadores, representando o Rio de Janeiro. Thales voltou aos EUA no mês de julho. Em Washington, participou de simulação de conferência da ONU. Não conseguiu conhecer o presidente Joe Biden pessoalmente porque a crise sanitária ainda mantinha setores da Casa Branca fechados. Em Chicago, foram mais lições de empreendedorismo e de funcionamento de startups.

Em agosto, ganhou bolsa integral concedida a estudantes negros para participar da Latin American Leadership Academy (LALA), Academia de Lideranças da América Latina, e fez “conexões incríveis com pessoas que já têm seus próprios negócios e outras que têm instituições sociais; e uma parte de business, com pessoas do Vale do Silício”.

Thales ainda conseguiu se formar no ensino médio e rumou para o Catar. Ele é assistente de pesquisa da diretora do departamento de jornalismo. “Não posso falar muito, porque ainda está sob sigilo, mas a pesquisa envolve descobrir como as nações do Golfo, especificamente a Arábia Saudita, os Emirados Árabes e o Catar, usam o empreendedorismo e as startups locais para poder melhorar e destacar a imagem do país no mundo.”

O empreendedorismo social continua na veia de Thales. Ele pretende facilitar a ida de jovens brasileiros para sua universidade. “Inclusive, recentemente chegou um brasileiro que ajudei no processo de aplicação, veio de Alagoas”, finaliza.

 

Desenvolvimento da autonomia

Ana Rodrigues

Ana Rodrigues, do Sebrae, fala do desenvolvimento da autonomia do jovem para a construção dos seu projeto de vida (foto: divulgação/Sebrae)

“A educação empreendedora é um conjunto de práticas educacionais que tem como objetivo o desenvolvimento das capacidades empreendedoras – inovar, identificar oportunidades e assumir riscos, identificar o problema e criar soluções para ele, além de desenvolver o pensamento crítico. É sobre a autonomia dos indivíduos para a construção dos seus projetos de vida”, define Ana Rodrigues, gerente nacional de educação empreendedora do Sebrae, entidade que vem trabalhando a educação empreendedora junto às escolas públicas do país. A entidade se junta a outras instituições na formação de um ecossistema em prol desse objetivo.

Não se trata de transformar jovens em empreendedores, ou ensiná-los a abrir o próprio negócio, enfatiza Ana, mas de desenvolver as competências citadas. Para isso, o Sebrae disponibiliza conteúdo para os professores da escola básica, prioritariamente, para escolas da rede pública, e também para o ensino superior.

As disciplinas e vivências que tanto impactaram Thales fazem parte das “soluções para o ensino médio”. A educação empreendedora colabora para tornar a escola mais atrativa, explica Ana; em função das atividades “mão na massa”, o aluno é constantemente testado, o que contribui para diminuir a evasão.

 

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“Sensibilizamos os secretários de educação, os gestores escolares e entregamos conteúdo de formação para os professores, que serão de fato os multiplicadores.” Esses conteúdos já estão previstos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). “Mas nem sempre o professor tem essa formação ou acesso a construir um material desses. O que o Sebrae faz é facilitar esse processo.”

Para o ensino superior, há também uma lista de soluções, como as disciplinas de empreendedorismo e inovação, projeto de extensão em empreendedorismo social e negócios de impacto social.

O Desafio Liga Jovem prevê, além de premia-ção, a missão internacional. Thales e sua equipe foram recebidos na Espanha pela embaixada. Conheceram empresas, escolas, participaram de eventos de startups e apresentaram seus projetos. “Os estudantes têm contato com o mundo e começam a entender que é possível também para eles.”

O edital para a terceira edição do Desafio Liga Jovem será publicado em 2025. Dele poderão participar estudantes de todas as etapas de ensino – fundamental, médio e superior, de instituições públicas e privadas.

 

Paixão e muita prática

Quando se pensa no ensino do empreendedorismo, é preciso levar em conta três elementos básicos – as competências empreendedoras, o mindset e a paixão ou vocação. As primeiras podem ser ministradas em qualquer etapa da educação formal; “no ensino médio, numa profundidade um pouco menor, avança na graduação e eventualmente pode avançar ainda mais na pós”, pontua Marcelo Caldeira Pedroso, professor da FEA/USP e coordenador do Nidus, programa do Inova USP, o centro de inovação da universidade.

O mindset, detalha o professor, envolve questões emocionais e comportamentais, e está mais vinculado à psicologia do que propriamente ao ensino clássico do empreendedorismo. Por fim, a paixão ou vocação, que “não é possível desenvolver, vem da infância, do exemplo dos pais e outros fatores”, mas a educação formal pode ajudar o estudante a reconhecê-la e desenvolvê-la.

Há jovens que cedo percebem a vocação e têm o desejo de empreender, sobretudo naqueles com alta empregabilidade. Nos estágios e início da carreira corporativa já ficam descontentes e querem tomar as próprias decisões. “Ele já teve uns dois anos de experiência, empreende mais dois anos até ganhar o aprendizado e, se não der certo, volta para a carreira corporativa. Sob a perspectiva profissional, o risco é baixo.”

 

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O jovem não tem muito a perder, diferentemente de alguém que está no meio de uma carreira e pode colocá-la em risco. Entra em jogo o que na economia se chama custo-oportunidade. “Se a pessoa já tem emprego, salário, benefícios, plano de saúde, vale a pena deixar isso para trás e arriscar?”, pondera o professor. “Entre os 35 e 45 anos, em geral, o executivo está no auge da carreira, progredindo, e dificilmente – conheço casos, mas são raros – sairá de uma trajetória executiva bem sucedida para empreender.”

Um curso de graduação em empreendedorismo não basta. Pedroso compara a formação do empreendedor à do cirurgião. “Para se tornar cirurgião, são seis anos de formação, mais três anos – às vezes mais – para ter a prática. Sai da residência sabendo fazer cirurgia, mas tem de avançar mais para ser um bom cirurgião. O empreendedor é a mesma coisa, tem de ir para a prática e sentir na pele o que é empreender.” Isso porque a quantidade de variáveis e de decisões que um empreendedor toma é muito grande. “E já no momento zero o empreendedor toma decisões estratégicas. É complexo, por isso é importante não só ter a formação nas competências, mas que essa formação permita que ele vá a campo.”

O Nidus – “ninho” em latim –, da USP, é um projeto de extensão e programa de residência. Lá, os alunos de pós-graduação encontram um “ambiente seguro”, nas palavras do professor, em que o aluno toma a decisão e observa a consequência. “Há uma forma de fazer isso que são as validações. É uma tentativa e erro controlados, não aleatórios. Ele aprende com o processo decisório.”

Pedroso considera que são importantes as disciplinas de empreendedorismo no ensino mé-dio e, na graduação, “pelo menos uma disciplina de empreendedorismo em todos os cursos.”

 

Empreendedorismo no plural

Além do empreendedorismo social, representado por Thales, há o empreendedorismo inovador e o tradicional. “O empreendedorismo inovador tem a ver com criar algo extremamente novo, em geral requer tecnologia. Um bom exemplo é o Ifood”, explica Pedroso. Esse empreendedorismo inovador tem dois caminhos importantes, continua. “O mais arriscado é aquele que faz a captação de investimentos e precisa crescer para gerar um unicórnio – empresas que chegam a valer um bilhão de dólares. É um caminho arrojado, não é para muitos.”

Há, também, o empreendedorismo inovador lifestyle, em que o empreendedor fará algo novo, um negócio bom, com rendimento, mas sem crescimento exponencial. Já o empreendedor tradicional é aquele que cria um produto ou serviço já conhecido, envolve baixo risco. “Quem vai empreender precisa conhecer os caminhos dentro do empreendedorismo para entender os que satisfazem suas necessidades atuais e futuras.”

 

Autor

Sandra Seabra Moreira


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