Um olhar global para as políticas, diálogos e transformações da universidade
O aluno de hoje vive entre a hiperconexão e a solidão cognitiva
Ilustração: Shutterstock
Por Miguel Copetto, de Portugal*
Poucas instituições atravessaram tantos séculos com tão poucas alterações essenciais quanto a universidade. Nascida no século 12, ela sobreviveu a impérios, guerras, pandemias e revoluções tecnológicas — mas permaneceu fiel ao mesmo desenho mental: conhecimento organizado de forma linear, hierárquica e relativamente lenta. Durante séculos, essa estabilidade foi uma força. Hoje, tornou-se um risco — não porque o passado deva ser descartado, mas porque já não responde sozinho à complexidade do presente.
O estudante contemporâneo chega à universidade vindo de um mundo que a própria universidade ainda não compreende plenamente. Um mundo de excesso informacional, estímulos incessantes e atenção fragmentada. Ele pensa rápido, sente rápido, sofre rápido. Cresceu em ecossistemas digitais que dissolvem fronteiras entre verdade e opinião, entre público e privado, entre atenção e dispersão. O gesto de deslizar o dedo na tela introduz uma “lógica do instantâneo” que molda a forma de interpretar o mundo. Para muitos, o celular tornou-se uma extensão corporal — uma prótese tecnológica que condiciona percepções, emoções e escolhas. Já a universidade opera noutra temporalidade: ritualizada e previsível, estruturada por currículos longos e rígidos, calendários imutáveis, ritos herdados de uma matriz eclesiástica e práticas expositivas concebidas para um tempo em que o professor era a única porta de acesso ao conhecimento.
Não estamos diante de um conflito geracional, mas de um desencontro civilizacional. A universidade funciona segundo o tempo longo da tradição; o estudante vive na velocidade da multiplicidade de vozes. A instituição pede profundidade — e tem razão ao fazê-lo —, mas oferece estruturas que dificultam essa profundidade. O estudante pede sentido — e tem o direito de pedi-lo —, mas encontra dispositivos que confundem rotina com relevância. Como observam Kim e Maloney (Learning Innovation and the Future of Higher Education, 2020), muitas instituições continuam a servir “o passado dos seus professores” quando deveriam preparar “o futuro dos seus aprendentes”.
O aluno de hoje vive entre a hiperconexão e a solidão cognitiva. Procura compreender a complexidade, mas depara-se com estruturas que tratam a dúvida como falha e a heterogeneidade como ameaça. No plano emocional, enfrenta níveis inéditos de ansiedade. No epistêmico, lida com a erosão da autoridade científica num mundo saturado de narrativas concorrentes. E no plano institucional, observa a perda de valor simbólico dos diplomas e a promessa — ilusória — de que a tecnologia resolverá aquilo que apenas a inteligência humana pode interpretar.
Por isso, a universidade também enfrenta vulnerabilidades próprias: pressão financeira, dependência de legitimidade externa e a tentação de substituir reflexão por adaptação acrítica ao “espírito do tempo”. Ensinar hoje não significa apenas transmitir conteúdos, mas ajudar os estudantes a discernir, avaliar e interpretar; cultivar a capacidade de decidir sob incerteza, compreender a ambiguidade, distinguir o essencial do acessório e agir com responsabilidade ética. A missão da universidade não é competir com o ruído do presente, mas oferecer uma linguagem diferente: a da análise, da evidência e da prudência. Não deve ser um centro de entretenimento cognitivo, mas uma comunidade de consciência crítica.
Nesse cenário, cresce a promessa de que plataformas alimentadas por inteligência artificial poderão “personalizar infinitamente” a aprendizagem. A ideia seduz: algoritmos que ajustam conteúdos ao ritmo de cada estudante. Mas confunde personalização com humanidade. Um algoritmo ajusta exercícios; não interpreta dúvidas, não acolhe inquietações, não desperta curiosidade, não oferece a presença ética que define o ato de ensinar. Como lembra Neil Selwyn (Should Robots Replace Teachers?, 2019), a tecnologia pode ampliar o alcance da educação, mas não substitui “a dimensão moral e relacional que sustenta qualquer aprendizagem significativa”.
Ao mesmo tempo, a expansão do ensino superior atingiu uma escala inédita. Milhares — às vezes centenas de milhares — de estudantes estão vinculados a instituições que funcionam como verdadeiros ecossistemas educacionais. Isso democratiza o acesso, mas pode reduzir a formação a processos industriais de entrega de conteúdos. Por isso, a escolha estratégica não é entre presencial, híbrido ou digital; é entre dois modelos de futuro: universidades que apenas certificam competências ou universidades que cultivam discernimento, responsabilidade e consciência crítica.
Para os dirigentes universitários, o desafio é inequívoco, ajustar instituições concebidas para a estabilidade a um mundo que vive da mudança constante. Isso exige coragem para abandonar rotinas que já não servem, enfrentar interesses instalados, admitir que qualidade não se mede apenas por eficiência e reconhecer que a agenda da educação superior é, também, uma agenda de soberania cognitiva.
No fim, nenhuma ferramenta substituirá o que realmente está em crise: a capacidade coletiva de compreender o mundo. O estudante de hoje já não cabe na universidade de ontem — mas a universidade de amanhã só existirá se ousar mudar sem renunciar à liberdade de pensar, que a sustenta desde a sua origem medieval. O maior risco não é a inteligência artificial; é a desistência humana. A universidade que abdica da dúvida e da verdade não perde apenas relevância: perde a sua alma.
Uma universidade que perde a sua alma não perde apenas o seu propósito. Rompe o pacto de confiança com a sociedade e renuncia ao futuro que lhe cabia iluminar.

*Miguel Copetto é diretor-executivo da Associação Portuguesa de Ensino Superior Privado. O texto acima é resultado de reflexão apresentada no âmbito da VI Cúpula Acadêmica América Latina–Caribe–União Europeia, realizada em Bogotá, em outubro de 2025. Copetto passa a integrar o time de articulistas da Ensino Superior. Na coluna Cartografias do setor, trará um olhar lusófono e global sobre políticas, diálogos e transformações da universidade no século 21.
Por: Cartografias do setor | 09/12/2025