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O amargo regresso

Transição mais significativa para os jovens na sua vida escolar ocorreu em meio a um cotidiano de inseguranças

Publicado em 25/10/2022

por Sandra Seabra Moreira

pexels-zen-chung-5538610 Especialista considera que alunos de todos os anos da graduação tiveram perdas de conteúdo importantes

Em 2020, alunos do último ano do ensino médio, que se preparavam para seus vestibulares, tiveram de se adaptar e estudar remotamente. A transição mais significativa para os jovens na sua vida escolar ocorreu em meio a um cotidiano de inseguranças. Também os alunos recém-chegados às universidades para cursos presenciais, repletos de expectativas, viram-se, de uma hora para outra, confinados em casa, com um início de graduação completamente atípico e enfrentaram um ano e meio de ensino remoto. Às IES restou o enorme desafio de manter a qualidade do ensino em meio à crise sanitária mais grave da história mundial recente. Apesar da alegria pela saída do confinamento e o entusiasmo por retomar a vida no campus, a readaptação às aulas presenciais não tem sido tão fácil quanto se poderia supor. O desafio, portanto, se estende também a este período pós-pandemia. As IES se apoiam nas equipes de psicólogos e na reformulação do processo de avaliação. Há forte expectativa na eficiência das metodologias ativas para envolver os estudantes e, por causa delas, a necessidade de capacitar cada vez mais os professores.

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A preocupação mais que justificada, de pais, comunidade acadêmica, dos próprios alunos e do mercado que absorverá esses profissionais em breve é em relação a quanto se perdeu de conteúdo ou do processo de aprendizagem ao longo desse período. Sabe-se que, na educação básica, a pandemia aprofundou o fosso das desigualdades sociais. No ensino superior, as diferenças socioeconômicas também pesaram. Além delas, a maneira como cada jovem vivenciou o período de isolamento, não só na vida dos estudos, mas familiar, também foi preponderante. “Há uma defasagem bem significativa de conteúdo e diferença comportamental muito grande. Eles têm dificuldade de permanecer na sala de aula, querem sair da sala, querem aulas online”, diz Carla Guerra, diretora de graduação da Fundação Educacional de Andradina (FEA), no interior de São Paulo. 

Carla explica que 80% dos alunos calouros de graduação estão no curso noturno, a maioria egressa de ensino médio também noturno. “Eles trabalham e se adaptaram ao ensino remoto por conta das facilidades.” A FEA tem utilizado metodologias ativas e oferece aulas de nivelamento, principalmente nas matérias das ciências exatas. São aulas aos sábados ou gravadas. A frequência não é massiva. “Vão os interessados em resolver suas dúvidas e aqueles que já estão com risco de reprovação.” Talvez os problemas de defasagem de conteúdo sejam os menores, pois as questões emocionais também se acentuaram, com prevalência de ansiedade e depressão. Este ano, aconteceram três tentativas de suicídio. Os alunos foram encaminhados para tratamento no serviço psicossocial na cidade. A equipe do curso de assistência social vem realizando palestras para dar suporte aos alunos.

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Também há comportamentos específicos que caracterizam os estudantes que vivenciaram o primeiro ano de graduação no ensino remoto, e estrearam apenas em 2022 no ensino presencial. “Esse aluno não quer sair de casa, vir para a faculdade para ter aula exclusivamente expositiva e questionam por que não podem assisti-las em casa. Por isso, as metodologias ativas têm sido importantes. Nos ajudam a justificar para o aluno por que precisa vir para a escola”, conta. Eles também apresentam defasagem de conteúdo. Carla menciona que apesar das aulas síncronas durante a pandemia, e o esforço para atrair a atenção, muitos permaneciam com suas câmeras fechadas, sem participação efetiva. Ela considera que alunos de todos os anos da graduação tiveram perdas de conteúdo importantes. Os que se formam agora terão de buscar o que faltou em cursos extras. A FEA está investindo na capacitação de professores, porque alguns têm dificuldade de sair do modelo de aulas expositivas. 

Especialista considera que alunos de todos os anos da graduação tiveram perdas de conteúdo importantes

Experiência completamente diferente teve Luiz Naito, há 20 anos coordenador de cursos de Tecnologia da Informação, com duração de dois anos, na Universidade Cruzeiro do Sul(Unicsul), na cidade de São Paulo. Focados na aquisição de habilidades práticas e na conquista do diploma, os estudantes comemoraram a volta às aulas e o encontro com colegas que conheciam apenas remotamente. “A Cruzeiro do Sul fez uma recepção especial para o retorno dos alunos, eu mesmo estive em cada sala, conversando com eles.” Para Naito, a satisfação de retornar também tem a ver com a possibilidade de voltar a usar os recursos tecnológicos que a universidade oferece, disponíveis o tempo todo para eles. Naito não considera que houve perdas significativas de aprendizagem, porém, os ingressantes em 2020 acabaram por fazer o curso todo na modalidade remota: “Eles não vivenciaram o ambiente universitário, o que realmente é uma perda”.

A geração covid não pode ser estigmatizada

Ericson Sávio Falabretti, pró-reitor de desenvolvimento educacional da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), lembra que, ao longo da pandemia, houve nos anos iniciais do ensino fundamental o aprofundamento da pobreza de aprendizagem, conforme estudos do Unicef e do próprio Inep. O conceito de pobreza de aprendizagem está relacionado ao fato de uma criança até os 10 anos não conseguir ler um texto e interpretá-lo. Por outro lado, episódios de tentativas de superação são inúmeros. “Eu conheci um pai que, de bicicleta, buscava os deveres do filho na escola, entregava em casa, ia trabalhar, depois levava os deveres feitos para a professora corrigir. Foi um esforço gigantesco. Essa distinção é importante. As escolas particulares fizeram movimento vigoroso no ensino remoto e o poder público, por questões estruturais e sociais, não fez.” Ele traz uma ponderação fundamental para esses tempos. “Penso que há uma geração covid e ela não pode ser estigmatizada por baixo aproveitamento ou por seu déficit de aprendizagem. Deve ser, na verdade, olhada pela capacidade de superação do processo de aprendizagem em condições adversas. É preciso valorizar a superação.” 

A falta da sala de aula traz consequências para o aprendizado. Na PUCPR, em meio à pandemia, garantir o princípio de igualdade demandou estratégias, mas há variantes incontroláveis.

Para Falabretti, “há vários símbolos que remetem às relações de igualdade na sociedade, um deles é a sala de aula, onde todo mundo – rico, pobre, homem, mulher – respira o mesmo ar, a mesma luz, o mesmo ponto focal, a mesma direção, vive o mesmo ambiente. Há uma igualdade de condições ambientais de aprendizagem na sala de aula. Com o ensino remoto não podemos garantir essa isonomia”.

Foi possível, entretanto, oferecer condições materiais para garantir o acesso às aulas remotas aos beneficiários do Prouni, com a distribuição de 400 equipamentos. 

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Falabretti menciona que não há pesquisas específicas que mensurem se os recém-universitários acumulam defasagens em seus processos de aprendizagem em função de um final de ensino médio em meio à pandemia. Tampouco há relatos de professores nesse sentido. Em relação aos jovens que acabaram de entrar na universidade, mal conseguiram conhecer seus colegas de classe ou se adaptarem ao ritmo da universidade. Mas existe um dado concreto e ele é positivo: “os resultados do Enade que temos hoje, das turmas de 2021, na maior parte dos cursos, são melhores. Portanto, é possível concluir que não houve perda de aproveitamento considerando o extrato de resultados do Enade”.

No retorno ao presencial, é esperado que haja um processo de readaptação. A experiência também permitiu que os professores modificassem os processos avaliativos, com provas menos conteudistas, mais fundadas nos testes de competência. Falabretti destaca que no período da pandemia foi feito acompanhamento constante de professores e alunos, e pesquisas semanais. “Teve um ponto importante que foram as atividades práticas, criamos um programa de reposição, em algumas áreas, para que os estudantes não perdessem as atividades práticas, em laboratório, que faziam parte da matriz curricular do curso. Foram criadas escalas para as presenças, com adoção de medidas sanitárias.”

Faltam o conforto do lar e a consulta

A transição do ensino médio para a faculdade já traz desafios suficientes, uma crise sanitária os potencializa. Na volta às aulas presenciais do Centro Universitário do Pará (Cesupa), os calouros e os alunos do segundo ano tiveram dificuldades de se relacionar com a turma e de fazer trabalho em grupo, além de problemas para manter a atenção e a concentração. O sono irregular no período das aulas remotas teve consequências, especialmente para os que agora frequentam as aulas pela manhã. Organizar o tempo de estudo e se entender com o tempo destinado às provas, que no remoto era mais alongado e com possibilidade de consulta, também têm sido situações desafiadoras. Sílvia Pessôa, pró-reitora de graduação e extensão, conta que essas são algumas das reclamações colhidas pelos cinco núcleos do Serviço de Atendimento ao Estudante (SAE), um para cada unidade da universidade, com uma psicóloga para atender demandas emocionais e acadêmicas.

Sílvia comenta que nos últimos anos os estudantes têm chegado à universidade com defasagens no processo de aprendizado, mas que não é possível, neste momento, relacioná-los à pandemia ou afirmar perdas mais significativas. É possível, entretanto, perceber lacunas em alunos que não se dedicaram com atenção às aulas síncronas.

“Alguns faziam outras coisas na hora da aula, como ajudar a mãe ou cuidar de um parente doente. Ou então tiveram de optar pelas aulas gravadas e, nelas, não é possível interagir com o professor. Isso trouxe dificuldades e, sim, perdas.”

Com a volta às aulas presenciais, se o aluno refere problemas no acompanhamento do conteúdo, ele é sanado em aula, mas Sílvia relata que a maior parte dos problemas é de fundo emocional. “Além de depressão e ansiedade, os sintomas de TDAH se acentuaram, com jovens que ficavam em pé na sala de aula, andando de um lado para outro, falando com eles mesmos. Tivemos que colocar mais profissionais para permanecer individualmente com esses alunos com transtorno para não prejudicar a dinâmica da aula, do grupo.” A ansiedade com as provas é grande, e houve mudanças na avaliação: “Os professores começaram a elaborar testes em dupla, depois passaram para as atividades individuais, até chegar às provas individuais”. Silvia destaca como ponto positivo o fato de, agora, os professores estarem muito mais capacitados do que antes da pandemia para pôr em prática as metodologias ativas. Para ela, a ênfase nessa capacitação deve continuar e é um trunfo poderoso para que as consequências da pandemia sejam logo deixadas no passado.

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Uma atividade tradicional que as IES promovem para alunos ingressantes foi suspensa durante a pandemia: a imersão no campus. Para Ana Reis, pró-reitora de ensino, aprendizagem e inovação do Centro Universitário de Valença (UNIFAA, RJ), a oportunidade de conhecer as instalações e absorver um pouco da vida universitária é importante. De modo geral, tanto alunos egressos de escolas privadas quanto das públicas “vieram com defasagem em termos interacionais, de compreensão do que significa ser universitário, de quais são as responsabilidades dessa transição de sair do ensino médio para o universitário”. No ambiente virtual, por melhores que fossem as condições materiais, de conexão, por exemplo, professores e alunos estavam, a princípio, despreparados para a experiência virtual.

“Apareceram problemas nos trabalhos em equipe, na ideação de projetos, porque não conseguiam se conhecer, não tinham esse olho no olho. Nas aulas presenciais, isso gerou atritos de relacionamento e de ocupação de espaços.” 

Ana conta que docentes de várias instituições atestam que nos processos avaliativos os alunos se saíam bem, embora o resultado fosse questionável, já que consultavam colas, outras fontes e até trocavam mensagens entre os colegas. Ou seja, as notas eram boas mas não refletiam exatamente a aquisição de conhecimento e apropriação de aprendizagem. Agora, o estudante fica assustado com o nível de exigência. Durante a pandemia, houve um afrouxamento por parte das escolas em exigir mais. Todos diziam que os estudantes e professores estavam despreparados, que havia falta de conexão, de equipamentos. No presencial, os professores voltaram a trabalhar com o mesmo nível de exigência de antes da pandemia e os estudantes não sabem gerenciar a situação. A ansiedade domina. No Centro de Atendimento ao Aluno da UNI-FAA, entre fevereiro e agosto deste ano, havia quase 800 pedidos de atendimento psicológico a mais do que no mesmo período do ano passado, ainda no ensino remoto, em meio à pandemia. 

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Ainda mensurando perdas no tempo de confinamento, Ana afirma que alguns dos estudantes que tiveram dificuldade de acompanhar as aulas remotas apresentam regressão de aspectos que hoje são importantes, e que compõem os novos paradigmas de aprendizagem do ensino superior. Por exemplo, resolução de problemas, desenvolvimento de soft skills e de habilidades comunicativas, trabalho em equipe.

“Há grandes dificuldades nesses processos. Propomos trabalho em equipe, o estudante quer fazer sozinho. Propomos apresentação oral para a classe, ele quer apresentar só para o professor.” Ana menciona também um estancamento do processo de amadurecimento de alguns alunos, inclusive, tem se verificado a presença mais recorrente de pais interferindo, tentando resolver o problema de seus filhos. 

Outro fenômeno que se aprofundou na pandemia foram as graves perdas na produção escrita. Para Ana, cada vez mais os estudantes preferem o vídeo à leitura, e há desvalorização da boa escrita como processo comunicacional. Nas produções textuais, faltam raciocínio argumentativo com começo, meio e fim, clareza, concordância, pontuação. Com vivência no programa WAC – Writing Across the Curriculum –, laboratório de desenvolvimento de habilidades comunicativas orais e escritas do Massachusetts Institute of Technology, Ana está propondo a programação de oficinas de escrita similares, tanto para alunos, quanto para professores da educação básica e ensino médio.

A matéria faz parte da edição 270 (outubro/2022) da Revista Ensino Superior. Assine.

Autor

Sandra Seabra Moreira


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