Revista Ensino Superior | Da crise de identidade da universidade à síntese pelo PBL

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As três almas da universidade: da crise de identidade à síntese pelo PBL 

Como o legado de três modelos históricos das universidades molda os seus dilemas e como o Project-Based Learning (PBL) se apresenta como caminho para o futuro

Publicado em 18/09/2025

por Ensino Superior

PBL e o DNA da universidade Compreender DNA histórico complexo é o primeiro passo para vislumbrar um futuro mais coeso e relevante para o ensino superior (foto: Shutterstock)

Por Maurício Garcia*

A universidade contemporânea vive um paradoxo. Nunca foi tão central para o desenvolvimento social, científico e econômico, mas raramente pareceu tão incerta sobre a própria identidade. Pressionada a ser, simultaneamente, um templo do saber, uma fábrica de profissionais para o mercado e um motor de inovação tecnológica, a instituição  se vê puxada em direções opostas. Essa crise não é um fenômeno recente, mas o resultado de um DNA histórico complexo, formado por três modelos distintos e muitas  vezes conflitantes que, ao longo dos séculos, definiram o que uma universidade deveria ser. Compreender essa herança é o primeiro passo para vislumbrar um futuro mais coeso e relevante.

 

As três almas da universidade: uma herança histórica 

No início do século 19, Napoleão Bonaparte, em sua ânsia por consolidar o poder e  modernizar a França, implementou uma profunda e duradoura reforma no sistema de  ensino superior do país. A peça central de sua reestruturação foi a criação da Universidade  Imperial em 1808, um sistema altamente centralizado que substituiu as antigas  universidades do Antigo Regime, extintas durante a Revolução Francesa. O objetivo era claro: formar uma elite de funcionários públicos, juristas, médicos e acadêmicos leais ao Estado e capazes de administrar o vasto Império Francês. 

A reforma napoleônica foi marcada por um forte controle estatal sobre todos os aspectos  da educação, desde o ensino primário até o superior. A universidade imperial não era uma universidade no sentido moderno de uma instituição autônoma, mas sim um grande corpo  estatal que supervisionava toda a educação na França. Era chefiada por um grão-mestre,  diretamente subordinado ao imperador, garantindo que as diretrizes do governo fossem  estritamente seguidas.

 

Leia: O aluno no centro da PBL

 

Esses fatos foram uma profunda ruptura com o modelo das antigas universidades medievais, como Bolonha, Salamanca, Coimbra e Paris. A universidade original era uma  “universitas”, ou seja, uma corporação ou guilda de mestres e alunos. Seu propósito era preservar, debater e transmitir um corpo de conhecimento, com a teologia e a filosofia no  centro. A sua maior contribuição foi a ideia de uma comunidade acadêmica autônoma e a  noção de que o conhecimento deveria ser buscado dentro dos pares, protegida das  interferências diretas do poder secular.  

Já a Universidade Imperial não era uma comunidade, mas um braço do Estado. O seu  propósito era utilitário e pragmático: formar os profissionais leais e competentes (advogados, médicos, engenheiros, administradores, etc.) de que o Império tanto necessitava. 

Quase simultaneamente ao modelo napoleônico, Wilhelm von Humboldt fundou a Universidade de Berlim em 1810 com uma filosofia oposta. Para Humboldt, a missão da  universidade não era aplicar o conhecimento existente, mas criar novo conhecimento através da pesquisa original. Seu ideal era a “Einheit von Lehre und Forschung”, traduzido  como indissociabilidade entre ensino e pesquisa, onde professores seriam pesquisadores  ativos e os alunos, aprendizes das descobertas. Este modelo trouxe a liberdade  acadêmica, o doutorado como um grau de pesquisa, os laboratórios e os congressos como espaços centrais, bem como a ideia de que o prestígio universitário se mede pela  sua contribuição à ciência.  

 

O legado contemporâneo dos três modelos 

Praticamente todas as grandes universidades do mundo, incluindo as brasileiras, operam com traços de cada um desses ancestrais. A forma como esses traços se combinam define o caráter de cada instituição e do sistema de ensino superior de cada país, conforme ilustrado a seguir.

1. A herança da universidade medieval: a estrutura e a ideia de comunidade 

Apesar de ser o modelo mais antigo, a universidade medieval legou a ideia fundamental de  uma universidade e de suas estruturas mais básicas.

  • A estrutura de faculdades: A organização em faculdades (inicialmente artes, teologia, direito e medicina) ainda é a base da maioria das universidades, embora  hoje existam dezenas de faculdades e institutos. 
  • Graus acadêmicos: A hierarquia de graus (bacharelado, mestrado e doutorado) é uma invenção direta da universidade medieval. O doutorado era a licença para ensinar em qualquer universidade da cristandade. A palavra “doctor” vem de “docere”, que significa “ensinar”. Tem a mesma origem da palavra “docente”. 
  • Ideal de autonomia: A luta medieval pela independência em relação aos poderes  locais (reis e bispos) criou o ideal de autonomia universitária. Embora hoje essa  autonomia seja mais sobre gestão e liberdade acadêmica do que sobre leis  próprias, a noção de que a universidade deve ser um espaço protegido de interferências externas diretas ainda persiste.
  • A comunidade acadêmica: A ideia de que a universidade é uma “universitas”, qual  seja, uma comunidade de mestres e alunos, ainda é um pilar do discurso  universitário, mesmo que a realidade seja mais burocrática. 
  • Vocabulário: palavras como “escola”, “congregação”, “cátedra” e “reitor” são  heranças do modelo da universidade medieval.

2. A influência da universidade napoleônica: a profissão e o papel do Estado 

O modelo de Napoleão foi tão influente que moldou a relação prática entre a universidade,  o Estado e o mercado de trabalho. Se o modelo medieval deu a estrutura, o napoleônico  deu a função social pragmática. 

  • Formação profissional: esta é, talvez, a herança mais visível. A principal razão pela qual a maioria dos estudantes vai à universidade hoje é para obter uma qualificação  para uma profissão específica. As faculdades profissionais (direito, medicina, engenharia) são muitas vezes as mais poderosas e prestigiadas, uma herança direta  do foco utilitário de Napoleão. 
  • Controle e financiamento Estatal: em muitos países, inclusive no Brasil, a universidade pública é financiada e regulada pelo Estado. Além disso, o governo  define diretrizes curriculares, regulamenta a validação de diplomas e supervisiona  a qualidade. Essa centralização é puramente napoleônica. 
  • Diplomas nacionais: o diploma de uma universidade não é apenas daquela  instituição, é um diploma nacional, válido em todo o território. Essa padronização, que garante mobilidade e um padrão de qualidade, foi implementada por Napoleão.
  • Universidade como elevador social: a ideia de que a educação superior é um  caminho para ascender na sociedade e obter um cargo no governo ou numa grande  empresa está ligada à criação, por Napoleão, de uma elite de mérito e não de nascimento.

3. O legado da universidade humboldtiana: a pesquisa e a liberdade acadêmica 

O modelo de Humboldt, criado como uma reação ao utilitarismo napoleônico, deu à  universidade moderna a sua alma intelectual e o seu motor de inovação. 

  • Pesquisa como missão central: hoje, o prestígio de uma universidade é medido  primariamente pela sua produção de pesquisa. A ideia de que os professores  devem ser pesquisadores ativos na fronteira do conhecimento e que os alunos (especialmente de pós-graduação) devem “aprender a descobrir” é a maior herança  de Humboldt. 
  • A unidade entre ensino e pesquisa: o tripé “ensino, pesquisa e extensão”, defendido pelas universidades brasileiras, é uma versão do ideal humboldtiano. A  sala de aula deve ser alimentada pelo que acontece no laboratório e no campo de pesquisa. 
  • Liberdade acadêmica: o princípio de que os professores têm a liberdade de  investigar e ensinar as suas conclusões, e que os alunos têm a liberdade de  escolher os seus percursos de estudo, é a pedra angular da universidade de  pesquisa. Essa liberdade é o que permite a inovação. 
  • Doutorado como grau de pesquisa: o doutorado moderno não é mais a licença medieval para ensinar, mas sim a certificação de que o indivíduo é um pesquisador  original e treinado, capaz de contribuir com novo conhecimento para a sua área. Foi na Universidade de Berlim que surgiu a expressão “Philosophiae Doctor”, que literamente significa “professor que ama o conhecimento”, dando origem à sigla PhD. 

 

Dilemas da universidade de hoje: uma síntese em tensão 

As universidades de hoje são um híbrido tenso dessas três visões. Foi herdada a estrutura  de graus da Idade Média, a função de formação profissional de Napoleão e a missão de  pesquisa de Humboldt.  

Ela tenta ser uma comunidade de estudiosos (medieval), mas também uma fábrica de  profissionais (napoleônica). Ela defende a busca do conhecimento pelo conhecimento (humboldtiana), mas é pressionada a produzir resultados práticos e patentes (napoleônica). Ela clama por autonomia (medieval) e liberdade acadêmica (humboldtiana), mas depende do financiamento e da regulação do Estado (napoleônica). 

Esse sincretismo gera dilemas constantes: 

  • Conhecimento vs. competência: devemos priorizar a formação humanista e o  pensamento crítico (legado medieval e humboldtiano) ou as competências exigidas  pelo mercado de trabalho (legado napoleônico)? 
  • Liberdade vs. responsabilidade: como equilibrar a liberdade acadêmica para  pesquisar temas de interesse puramente intelectual (Humboldt) com a pressão por  resultados econômicos e soluções para problemas sociais (Napoleão)? 
  • Comunidade vs. burocracia: como manter um senso de comunidade acadêmica (medieval) em instituições de massa, geridas por uma lógica burocrática e com  métricas de desempenho cada vez mais individualistas?

 

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Esses conflitos aparecem em debates diários no campus: “Devemos investir mais em  filosofia ou em engenharia?”, “O professor deve ter liberdade total ou seguir um currículo  estrito?”, “A universidade deve servir à ciência ou à indústria?”.

A resposta é que, por ter herdado essas três missões distintas, a universidade moderna é  obrigada a tentar fazer tudo isso ao mesmo tempo. Essas tensões paralisam a instituição,  criando currículos fragmentados, onde o aluno muitas vezes não vê conexão entre a teoria abstrata, a prática profissional e o propósito da pesquisa. 

Em alguns casos, herdou-se o pior de cada modelo. Das comunidades acadêmicas do  modelo medieval surgiram os feudos impenetráveis dos departamentos. Do pragmatismo  do modelo napoleônico surgiram os ultra especialistas, que sabem cada vez mais de  menos coisas. Do espírito investigativo do modelo humboldtiano surgiram pesquisadores  desconectados do mundo à sua volta, com pesquisas de questionável relevância. 

 

Uma ponte para o futuro: A Aprendizagem Baseada em Projetos  (Project-Based Learning, PBL) 

Superar essas tensões não significa escolher uma alma em detrimento das outras, mas integrá-las de forma mais orgânica. É nesse contexto que metodologias ativas, como a Aprendizagem Baseada em Projetos, surgem como uma poderosa ponte pedagógica. Elas não eliminam as tensões, mas as transformam em uma síntese produtiva. 

As raízes do PBL estão profundamente alicerçadas nos pensamentos do filósofo e pedagogo americano John Dewey, no final do século 19 e início do século 20. Dewey foi  um crítico contundente da educação tradicional, que ele via como passiva, autoritária e  desconectada da vida real dos alunos. Em contrapartida, ele defendia a máxima do  “aprender fazendo” (learning by doing), argumentando que a educação mais significativa  ocorre quando os estudantes se envolvem ativamente na resolução de problemas  autênticos, extraídos de suas próprias experiências e interesses. Para Dewey, a escola  deveria ser um microcosmo da sociedade, onde o conhecimento não é simplesmente  transmitido de professor para aluno, mas construído coletivamente através da  investigação e da ação. Ele proveu, assim, os alicerces filosóficos do PBL, ao colocar a  experiência, a curiosidade e a resolução de problemas no centro do processo educativo.

 

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Mas foi seu discípulo e colega na Universidade de Columbia, William Heard Kilpatrick,  quem efetivamente sistematizou e popularizou essas ideias, dando-lhes um nome. Em seu  influente ensaio de 1918, intitulado “O Método de Projeto” (The Project Method), Kilpatrick  traduziu a filosofia de Dewey em uma prática pedagógica mais estruturada. Ele definiu um  “projeto” como um “ato intencional e engajado”, enfatizando que a motivação do aluno  deveria ser o ponto de partida para toda a atividade de aprendizagem. Para Kilpatrick, o  projeto ideal seria escolhido, planejado e executado pelos próprios estudantes,  permitindo-lhes buscar conhecimento de diversas áreas de forma integrada para atingir  um objetivo concreto. Se Dewey foi o arquiteto da visão, Kilpatrick foi o engenheiro que  tornou o método acessível e difundiu a ideia de que organizar o currículo em torno de  projetos com propósito era a forma mais eficaz de promover uma aprendizagem duradoura e significativa. 

O PBL é uma alternativa bastante expressiva para conciliar as origens das universidades  atuais, promovendo:

1. A Ponte entre Humboldt (pesquisa) e Napoleão (profissão) 

Esta é a contribuição mais óbvia e poderosa do PBL. A tensão clássica é entre a teoria  (Humboldt) e a prática (Napoleão). No modelo tradicional um aluno assiste a aulas  teóricas de cálculo, física e química (legado Humboldtiano de busca do conhecimento  fundamental) e só muito mais tarde, talvez num estágio, tenta aplicar isso a um problema  real da engenharia (necessidade napoleônica de competência profissional). 

Com o PBL o aluno é confrontado com um projeto, por exemplo: “Desenvolver um sistema  de captação de água da chuva para uma comunidade com recursos limitados”. Para  resolver este problema, o aluno precisa ir atrás do conhecimento de cálculo, física e química, não como disciplinas abstratas, mas como ferramentas necessárias e com  propósito claro. 

O PBL, portanto, transforma o conhecimento teórico (Humboldt) no instrumento direto  para a competência prática (Napoleão). Ele ensina o aluno a pesquisar para resolver,  unindo as duas missões em um único ato.

2. A reconstrução da comunidade (medieval) em um contexto moderno 

A universidade contemporânea, com suas salas com alunos efileirados, destruiu a noção  medieval de uma universitas (comunidade de aprendizes). O PBL ajuda a resgatar esse ideal, estimulando a colaboração, em vez de competição. Os projetos são realizados em  equipe e os alunos precisam debater, dividir tarefas, gerir conflitos e construir uma  inteligência coletiva. 

O PBL estimula a recriação da “Guilda”. A dinâmica de um grupo se assemelha à de uma  oficina medieval: há os “mestres” (os professores orientador e instrutor) e os “aprendizes”  (os alunos com diferentes níveis de proficiência) trabalhando juntos para criar uma “obra prima” (o projeto). Isso recria um senso de pertencimento e propósito compartilhado. Os  alunos desenvolvem habilidades de liderança pela prática diária.

3. A transdisciplinaridade como expressão da formação integral (humanista) 

O PBL naturalmente quebra os “silos” das disciplinas, uma herança rígida do modelo  napoleônico. Problemas do mundo real nunca são unidisciplinares. O projeto da água da  chuva, por exemplo, não envolve apenas engenharia, mas também sociologia (como a  comunidade vai usar?), design (qual a melhor interface?), gestão (como garantir a  manutenção?), negócios (como será financiado?) e comunicação (como apresentar o  projeto?). 

Essa abordagem força os alunos a desenvolver uma visão holística e sistêmica, resgatando o ideal humanista de uma formação integral, presente no artes liberais  medievais e na filosofia de Humboldt, que foi perdido na superespecialização napoleônica.

 

Conclusão: de tensões a sinergias 

Metodologias ativas como o PBL não apagam as heranças históricas, mas as  ressignificam. Elas criam um ambiente onde a busca pelo conhecimento (Humboldt) é motivada por desafios práticos (Napoleão), e realizada através da colaboração em comunidade (medieval).

Em vez de um cabo de guerra entre três modelos, há um conjunto de engrenagens onde  cada parte impulsiona a outra. O desafio, claro, é a implementação em larga escala, que  exige uma profunda mudança cultural, curricular e na formação dos próprios professores.  Mas, sem dúvida, é o caminho mais claro para a universidade do século 21 superar seus  fantasmas históricos e se tornar mais relevante. 

Maurício Garcia

foto: divulgação

Em suma, a crise de identidade da universidade só será resolvida com uma profunda  revolução pedagógica. Ao adotar abordagens como o PBL, a universidade pode finalmente  fazer as pazes com seu passado, transformando suas tensões históricas em uma sinergia poderosa, onde a busca pela verdade (Humboldt), o serviço à sociedade (Napoleão) e a  formação de uma comunidade de cidadãos (medieval) não são objetivos conflitantes, mas facetas de uma única e indispensável missão educativa.

*Maurício Garcia é cientista digital e membro do Conselho Editorial da revista Ensino Superior.

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Ensino Superior


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