Em evidência depois de ser retratada em novela televisiva, dislexia é objeto de projetos de lei em São Paulo e no Rio de Janeiro; proposta que atribui diagnóstico precoce a professor é alvo de polêmica
Publicado em 10/09/2011
O enredo é conhecido: o autor de novela escalado para a trama das 8 da noite – que vai ao ar às 9 – seleciona uma questão polêmica, geralmente ligada a preconceitos sociais que começam a ter visibilidade em função da ação de certos grupos. A discussão do tema ganha status de ação de responsabilidade social e, pelo poder da TV, realmente ecoa entre a população.
A bola da vez é a dislexia, retratada em Duas Caras, da Rede Globo de Televisão. Na novela, Clarissa (Bárbara Borges) é uma garota disléxica que lutou para passar no vestibular. Foi aprovada porque sua mãe, Célia Mara (Renata Sorrah), pediu que a universidade realizasse uma avaliação oral para testar os conhecimentos da menina, já que as dificuldades de leitura e escrita teriam influenciado seu desempenho.
A discussão das telas também está no Legislativo. Dois projetos de lei tramitam, um na Câmara Municipal de São Paulo e outro na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, versando sobre o tema. Em São Paulo, o Projeto de Lei n° 86/2006, do vereador Juscelino Gadelha (PSDB), foi aprovado em primeira votação em agosto do ano passado, dois meses antes do início da novela. Seu objetivo, segundo o proponente, é garantir tratamento e atenção especiais para alunos com dislexia regularmente matriculados nas escolas públicas paulistanas. A proposta inclui uma parceria entre as secretarias da Educação e da Saúde e atribui ao professor a responsabilidade de realizar um diagnóstico precoce na sala de aula.
Na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, o deputado Alessandro Molon (PT), recém-alçado a pré-candidato a prefeito, apresentou o Projeto de Lei n° 1.337/2008, que prevê condições especiais de avaliação das pessoas com dislexia em vestibulares das universidades públicas estaduais e concursos públicos.
Diagnóstico, o xis da questão
Educar um jovem disléxico é um desafio para pais e professores, já que o aluno requer atenção e cuidados especiais. Porém, tarefa mais delicada do que essa é detectar que a criança possui esse transtorno de aprendizagem, caracterizado pela dificuldade em fazer a correspondência "entre os símbolos gráficos e os fonemas, bem como na transformação de signos escritos em verbais", como define o dicionário Houaiss.
O diagnóstico é difícil até mesmo porque, em 140 anos de pesquisas, mais de 40 definições já foram dadas à síndrome (segundo texto do sítio
www.dislexia.com.br
). E, na falta de um conceito universalmente aceito, trabalha-se com alguns consensos, como sua base neurológica e o alto grau de hereditariedade, entre outros.
Em meio a esse terreno pantanoso, será que o professor tem condições de fazer o diagnóstico precoce? A questão vem gerando muita polêmica entre educadores, médicos e psicólogos.
Para Regina Camargo, professora de alfabetização, psicopedagoga e membro do Centro de Apoio Psicopedagógico (CAP), quem educa tem um papel fundamental na vida das crianças e, portanto, deve prestar atenção em seu desenvolvimento. Caso perceba algum problema, o correto é procurar ajuda de profissionais especializados. "Nosso papel é reconhecer as características e encaminhar o aluno a médicos e psicólogos. Após esse passo, o educador deve procurar soluções e adaptações para o aprendizado", aconselha.
Débora Domingues dos Santos, membro do grupo de orientação à queixa escolar do Instituto de Psicologia da USP, é contra o diagnóstico precoce. "Carregar um rótulo de portadora oficial de um distúrbio de aprendizagem é muito complicado para qualquer pessoa. Não consigo ver nenhum benefício concreto para o sistema de ensino e acredito que essa mobilização poderia ser mais bem aproveitada em outras questões", diz Débora.
Segundo o neurologista infantil Jobair Ubiratan Aurélio da Silva, um dos fundadores do Centro de Referência em Distúrbios de Aprendizagem (CRDA), o diagnóstico de dislexia é importante, mas deve ser feito por uma equipe multidisciplinar, composta por psicopedagogos, fonoaudiólogos, psicólogos e professores. "Um educador não tem a visão total do problema da criança e não pode realizar uma análise completa", afirma.
Quézia Bombonatto, psicopedagoga e presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp), parte da mesma opinião e afirma que, assim como a educação no país apresenta muitas falhas, a avaliação feita somente pelo professor está sujeita a problemas que podem prejudicar o aprendizado do aluno. "Meu receio é que as constatações sejam falhas e que algumas crianças possam ser consideradas disléxicas, mesmo sem possuir o transtorno", avalia.
Muitos profissionais dizem que o diagnóstico não é função apenas do educador. "Ele nunca irá realizá-lo, mas acolherá o aluno disléxico", diz Maria Ângela, da Associação Brasileira de Dislexia (ABD). Marísia Sanches, professora de português e inglês, afirma que o professor deve estar sempre atento às necessidades do aluno. "Acredito que esse acompanhamento especial funciona nas escolas particulares, onde o número de estudantes por sala de aula é menor. Na rede pública, fica difícil notar se uma criança não está conseguindo acompanhar, pois as salas são bem numerosas", comenta. Ela alerta que a instauração do diagnóstico precoce pode fazer da dislexia uma desculpa para a precariedade do ensino, num processo de culpabilização da própria criança pela aprendizagem que não se realiza.
Estrutura ausente
O neurologista e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Luiz Celso Vilanova acredita que o papel do professor é observar o aluno. "É preciso deixar o diagnóstico para a esfera médica, o educador deve detectar as dificuldades e encaminhá-lo para a avaliação", afirma. Sobre o projeto de Gadelha, Vilanova diz que, atualmente, não há condições de colocá-lo em prática, pois a rede pública não está preparada para tratar um aluno disléxico.
Érica Matos, professora de literatura e inglês do Colégio São Mauro, afirma que o acúmulo de funções pode prejudicar o bom andamento das aulas. "O professor tem de prestar atenção nas dificuldades dos alunos, mas não deve ficar preocupado em fazer um diagnóstico, não é nossa função", comenta. Segundo ela, para o projeto ser aprovado, os educadores terão de fazer cursos e participar de palestras, para que possam conhecer e saber as características de um aluno disléxico.
A oftalmologista Márcia Guimarães trata de pessoas com dislexia no Hospital de Olhos, em Minas Gerais. É favorável à realização do diagnóstico pelos professores. "Essa análise precoce deve ser obrigatória em todas as escolas. Os professores auxiliam aprendendo a identificar os casos suspeitos e encaminhando-os para tratamento; politicamente podem ajudar a conscientizar nossas lideranças", acredita.
No Colégio Rio Branco, situado em Cotia (Grande São Paulo), há um preparo especial para que os professores possam "lidar" com o transtorno. "Os colégios têm o dever de instruir os educadores sobre o assunto", afirma Áurea de Oliveira, orientadora educacional, para quem a realização do diagnóstico não é papel do professor.
No Colégio Graphein, na zona oeste paulistana, a alfabetização e o tratamento do aluno disléxico são realizados por uma equipe composta por pedagogos, psicólogos e psicopedagogos. "Nosso objetivo é fazer com que o aluno seja visto e atendido nas suas necessidades, além de ajudá-lo a descobrir que pode enfrentar o problema", comenta Nívea Maria Fabrício, psicopedagoga e diretora da escola.
No Colégio Novo Ângulo Novo Esquema (Nane), que fica em São Paulo, os alunos com dislexia também recebem atenção especial dos professores, que determinam um projeto pedagógico somente após saber se a criança possui realmente o transtorno. A escola acredita que o diagnóstico é importante, mas não deve ser feito pelo professor.
"Ele descreve comportamentos e aponta características que poderão levar ao diagnóstico, mas não constata o que a
Quézia Bpbonatto, da ABPp: receio de que, com o diagnóstico precoce, crianças sejam consideradas disléxicas mesmo sem possuir o transtorno |
criança tem, apenas a encaminha", comenta Rita de Cássia Rizzo, diretora pedagógica.
De acordo com Quézia Bombonatto, da ABPp, desmistificar a dislexia contribui incisivamente para que o professor possa detectar que um aluno possui o distúrbio. "Os disléxicos não apresentam déficit intelectual, apenas precisam de um tempo maior para a execução das tarefas escolares", diz. Segundo Jobair da Silva, apesar de constar na Classificação Internacional de Doenças (CID), a dislexia não deve ser vista dessa forma, mas sim como um transtorno de aprendizagem. "São pessoas normais e capazes, os professores precisam saber disso para poder ajudá-las", afirma.
Debate público
Pouca gente sabe, mas hoje existe uma lei em vigor que obriga o Poder Executivo do Estado de São Paulo a implantar um Programa Estadual para Identificação e Tratamento da Dislexia na Rede Oficial de Educação. A lei de n° 12.524 foi proposta pela deputada Maria Lúcia Prandi (PT-SP) e até hoje não foi regulamentada. "Não conheço quase nenhum educador que saiba dessa lei", diz Regina Camargo, do CAP.
Após uma série de manifestações, o vereador Gadelha reconheceu que é preciso submeter seu projeto ao debate público, para que a comunidade científica, educadores e a população em geral possam trocar idéias, discutir e esclarecer melhor a questão da dislexia, antes que a proposta se transforme em lei. Isso acontecerá em uma segunda audiência pública, ainda sem data prevista, na qual uma comissão de educação apresentará propostas e sugestões para aprimorar o projeto.
Precaução é a receita
Não existem sintomas que caracterizem a dislexia. Pais e professores devem prestar atenção nas dificuldades e em algumas atitudes das crianças que podem ser manifestações de distúrbios de aprendizagem. "As dificuldades para aprender não devem ser vistas sempre como dislexia. Hoje, qualquer problema de uma criança é apontado como uma disfunção, o que não é verdade", afirma Mônica Petit, fonoaudióloga.
Lembre-se: como em tudo o que o ser humano se propõe a fazer, a fase do aprendizado exige muito das crianças. Elas podem ter dificuldades, o que é normal. Antes de chamar uma pessoa de disléxica, é preciso uma análise bem apurada, feita por profissionais especializados. Resta aos familiares, bem como aos professores, ficar alertas, e, assim que algum problema for notado, o correto é levar a criança para fazer uma avaliação.
No que prestar atenção
Na fase pré-escolar:
– Dispersão;
– Fraco desenvolvimento da atenção;
– Atraso no desenvolvimento da fala e da linguagem;
– Dificuldade em aprender rimas e canções;
– Fraco desenvolvimento da coordenação motora;
– Dificuldade com quebra-cabeça;
– Falta de interesse por livros impressos.
Em Idade escolar:
– Desatenção e dispersão;
– Dificuldade em copiar de livros e da lousa;
– Dificuldade na coordenação motora fina (desenhos,
pintura) e/ou grossa (ginástica, dança etc.);
– Desorganização geral – podemos citar os constantes atrasos na entrega de trabalhos e perda de materiais escolares;
– Confusão entre esquerda e direita;
– Dificuldade em manusear mapas, dicionários, listas telefônicas etc.;
– Vocabulário pobre, com sentenças curtas e imaturas ou sentenças longas e vagas;
– Dificuldade na memória de curto prazo, como instruções, recados etc.;
– Dificuldades em decorar seqüências, como meses do ano, alfabeto, tabuada etc.;
– Dificuldade na matemática e no desenho geométrico;
– Dificuldade em nomear objetos e pessoas (disnomias);
– Troca de letras na escrita;
– Dificuldade na aprendizagem de uma segunda língua;
– Problemas de conduta como: depressão, timidez excessiva ou ser o ”palhaço” da turma;
– Bom desempenho em provas orais.