Crianças no Centro Educacional 03 Guará II, em Brasilia (DF): ensino fundamental deve ser prioridade de políticas educacionais O ensino fundamental, única etapa obrigatória da Educação Básica, ainda deve merecer muita atenção de gestores, pesquisadores e, sobretudo, dos profissionais da educação, mesmo daqueles que aí […]
Publicado em 10/09/2011
Crianças no Centro Educacional 03 Guará II, em Brasilia (DF): ensino fundamental deve ser prioridade de políticas educacionais |
O ensino fundamental, única etapa obrigatória da Educação Básica, ainda deve merecer muita atenção de gestores, pesquisadores e, sobretudo, dos profissionais da educação, mesmo daqueles que aí não lecionam. São vários os motivos para tê-lo como foco de atenção nas políticas educacionais.
Primeiro, ainda não atingimos o pleno atendimento, matriculando todas as crianças em idade de frequentá-lo. Mesmo levando-se em consideração a antecipação da matrícula compulsória aos 6 anos e sua duração de nove anos – o que amplia a faixa etária a ser atendida e os esforços decorrentes -, temos um cenário demográfico, desde há uma década pelo menos, que apresenta uma demanda decrescente em função da redução da população em idade de cursá-lo. Contudo, a taxa líquida de escolarização, ou seja, o percentual das crianças com idade entre 6 e 14 anos que deveriam estar matriculadas, não atinge 100%, incluindo estados com maiores recursos financeiros. Como uma conclusão, para milhares de crianças a igualdade de oportunidades, expressa meramente no direito de ingressar numa escola, considerada indispensável, sob vários critérios (econômicos, políticos, legais etc.), não foi garantida.
Por outro lado, se tomamos a taxa bruta de escolarização, isto é, o percentual de matrículas em relação à população que deveria estar matriculada, nota-se que ultrapassa 100%, pois temos muitos alunos matriculados com idade superior aos 14 anos. Entre estes, uma pequena parcela se deve ao ingresso tardio ou ao retorno pós-evasão; a maioria deles aí se encontra na condição de repetentes. Notadamente numa escola organizada em séries – como é o padrão brasileiro (ou "quase séries", como é o caso de muitas redes públicas que postergam a possibilidade de reprovação para o final de um período denominado de ciclo), encontramos professores que conduzem muitos alunos à repetência. Acreditam que se trata de uma estratégia para que estes aprendam o que não teriam aprendido quando foram reprovados. Mais, tratar-se-ia de garantir o direito de aprender, ou de garantir oportunidades – novas – de aprender o que precisam aprender. Aqui está um dos nós górdios do ensino fundamental.
Se a promessa da "pedagogia da repetência" – na expressão de Sergio Costa Ribeiro – não se cumprir, mais uma vez encontramos a negativa do direito à igualdade de oportunidades. Vários indicadores, inclusive de pesquisas de outros países e especialmente quando dispomos de resultados de provas padronizadas, apontam que, como regra, alunos que repetem a série avançam menos que colegas em idênticos patamares de aprendizagem e que foram promovidos. Isto, de imediato, coloca o quanto a reprovação é relativa, quer dizer, a reprovação de um aluno não depende exclusivamente de seus conhecimentos, mas sim da escola ou da turma em que esteja. Em termos práticos, um aluno com baixo desempenho numa turma com desempenho ainda mais baixo tem maiores chances de aprovação do que se estivesse num grupo de melhor desempenho. Outra hipótese é a de que um aluno com desempenho mediano numa turma de alta proficiência corre risco de reprovação. Trata-se, no fundo, das práticas de avaliação por norma, na qual a avaliação de qualquer sujeito, mesmo que não completamente, depende do grupo no qual se encontra.
Seria possível supor que um aluno repetente pudesse avançar a partir de onde se encontrava no momento de sua reprovação. Entretanto, salvo exceções, este aluno costuma entrar numa turma na qual será tratado, no que tange aos dispositivos pedagógicos, tal como os demais que cursam a série pela primeira vez, isto para não mencionar os problemas de autoestima e da pecha de repetente como uma "condenação moral" que o assolam com frequência. Em termos pedagógicos, os repetentes raramente recebem tratamento diferenciado que mereceriam, e as estratégias de confiná-los em turmas especiais, com seus iguais, têm fortes evidências de reforçar o baixo desempenho.
Contudo, alguns argumentos favoráveis à reprovação são pertinentes ao debate, ainda que questionáveis. Por exemplo, a ameaça de reprovação pode fazer com que alguns alunos se empenhem mais no processo escolar? Sim, o problema, no entanto, é que isso tende a produzir mais exclusão do que inclusão, pois nem todos os alunos respondem favoravelmente a essa ameaça. Basta ver, por exemplo, as escolas do Nordeste, na quais a existência da seriação tem como resultado elevadas taxas de abandono e reprovação.
Tem-se, igualmente, que quando observamos as proficiências dos alunos que participaram da Prova Brasil e do Saeb, este último numa perspectiva mais longitudinal, notamos que em redes nas quais não existe tal ameaça, ou é pequena por conta da progressão continuada, o desempenho dos alunos não é inferior ao das redes com tal expediente. Como casos notáveis, temos as redes paulista e paulistana, com o adicional de que são redes grandes, ou seja, com dificuldades operacionais que dificultam o trabalho pedagógico. Ressalve-se o fato de não se está afirmando que o desempenho dos estudantes de São Paulo seja bom. É baixo, como o é em geral o dos estudantes brasileiros, mas não confirma um suposto efeito deletério da "promoção automática".
Em certas redes públicas, quando há a proposta de se retom ar a seriação, stricto sensu, e a consequente reprovação, encontra-se também a defesa de avaliações frequentes e rigorosas. Ademais de se indagar por que isso não ocorria antes, é preciso ponderar que a pretensão não é estabelecê-las, mas sim retornar às práticas avaliativas com fins classificatórios e seletivos. A avaliação não é traço distintivo da seriação. Na verdade, o debate é sobre as finalidades da avaliação, salientando-se que com os ciclos ganhariam relevância, no sentido de práticas avaliativas formativas.
Porém, para melhor equacionarmos os desafios do ensino fundamental, precisamos introduzir no debate educacional o direito à igualdade de resultados. Tal direito pode ser expresso nos termos de um dever da escola – que não pode ser confundido com a responsabilização absoluta dos profissionais da escola – para com a aprendizagem de todos os seus alunos. Uma escola que, justificada e ancorada no amplo conjunto de predicados a ela imputados por várias vertentes do pensamento político-social, se apresenta como obrigatória não poderia, ao final de seu percurso, apresentar disparidades de aproveitamento entre seus concluintes. Que dirá dos que não a acessam ou não a concluem.
Assim, ao nos apoiarmos nos resultados das avaliações externas, com seus instrumentos e procedimentos padronizados que, apesar de suas limitações, são fontes importantes de análise da realidade educacional, assiste-se a uma diferenciação muito acentuada no aproveitamento dos alunos que concluem o ensino fundamental. Essa diferenciação pode ser sublinhada tanto ao cotejarmos resultados de escolas públicas com privadas quanto ao observarmos os resultados de escolas públicas.
Então, embora ainda não tenhamos garantido a igualdade de oportunidades, é politicamente defensável que um processo de escolarização com as características do ensino fundamental tenha como meta a igualdade de resultados nas aprendizagens dos alunos. Inclusive o debate sobre as alternativas de organização dessa etapa – usualmente e, talvez, pouco desenvolvido na polarização entre ciclos e séries – ,cogitando-se que não sejam indiferentes, deverá ser posto nos termos de um combate político por esta igualdade. Combate por políticas que garantam essa igualdade.
Podemos aventar como proposição que cada aluno vai permanecer na escola durante nove anos e aprender tudo aquilo que deve aprender. A cada aluno deverão ser assegurados os meios para tais metas. Nessa perspectiva, muito está por ser definido. A começar pela própria natureza do que se considera, efetivamente, fundamental no ensino.
Às crianças convocadas às escolas não devemos oferecer uma seleção precoce para o resto de suas vidas. Se na vida há seleção, como sustentam alguns, não necessariamente a escola deve, aberta ou veladamente, se amoldar a esse fato. Aliás, na vida, também, há solidariedade. Solidariedade no conhecimento, sobretudo, que podemos ensinar a todas as crianças. Difícil, mas possível.
Ocimar Munhoz Alavarse
é professor da Faculdade de Educação USP.
Foi coordenador do Núcleo de Avaliação Educacional da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, responsável pela Prova São Paulo
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