Há dois tipos principais de narradores: um cria a história conforme a escreve; o outro pensa tudo antes de contá-la
Publicado em 10/09/2011
A Narrativa é uma forma de arte meio invisível, porque sempre aparece misturada com outras. Está em filmes, peças de teatro, óperas, histórias em quadrinhos, poemas, videogames, romances, canções, balés – sempre que cada um deles conta uma história. Ela não é necessariamente feita de palavras ou de imagens ou de gestos. É feita de agentes e ações, ou seja, personagens e acontecimentos. Se alguém quiser se aprofundar neste aspecto, pode consultar
A morfologia
do conto, de Vladimir Propp.
Há algo em comum entre o romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, e o filme
Vidas secas
, de Nelson Pereira dos Santos. Por mais diferentes que sejam em matéria-prima (um romance é feito de sinais gráficos em folhas de papel, e um filme de imagens luminosas em movimento, sonorizadas), existe ali uma sucessão de eventos que é reconhecivelmente a mesma nas duas obras. A Narrativa nunca é exatamente a mesma quando muda de meio de expressão, mas está sempre lá.
Existem milhares de versões das narrativas tradicionais, que geralmente são bem curtas e simples. Isto vale para uma lenda grega ou hindu, para um conto folclórico como
Chapeuzinho Vermelho
ou para uma anedota de português ou de bêbado. Se comparássemos um milhão de versões da história de Chapeuzinho (orais, impressas, cinematográficas, em quadrinhos, TV, teatro, desenho animado), não haveria duas iguais (a nova versão hollywoodiana do conto terá a suntuosa Amanda Seyfried, por exemplo), mas há um núcleo de elementos que é o "DNA" da história.
Há textos de Claude Lévi-Strauss sobre o Mito que o descrevem também como esse conjunto de elementos, nunca exatamente os mesmos, mas presentes nas diferentes versões, e que se tornam cada vez mais nítidos quanto mais versões são consultadas.
No meio cinematográfico existe uma máxima de que é mais fácil extrair um bom filme de um mau romance do que de uma obra-prima. Quando se tem uma Narrativa interessante, pode até ser mal escrita (o estilo pobre, o vocabulário de mau gosto etc.), mas se ela é mesmo uma boa história pode ser transposta sem grande perda para qualquer meio. Passa por mutação de forma, mas mantém o DNA original, a sua essência de história.
"Boa história"
Episódios de uma história são como palavras: de nada valem se não estiverem na ordem certa. Contar uma história nos obriga muitas vezes a fazer um movimento como o de uma câmera que mostra uma pintura a partir de um detalhe e daí vai se afastando, revelando uma extensão do quadro cada vez maior, e mantendo em vista o detalhe inicial. Não se deve, e na verdade nunca se pode, dizer tudo de uma vez só. Tem de dizer aos poucos, e para isto a sucessão certa de detalhes é fundamental.
Nem todo grande livro ou filme precisa de boa história. A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector praticamente não tem história: é o fluxo de lembranças e reflexões na mente de uma mulher que se depara com uma barata em seu apartamento. A "narrativa" do livro poderia ser resumida em duas linhas. Para fazer grande literatura, a narrativa não é essencial. Mas evidentemente muitas pessoas querem contar histórias, sim; querem usar a narrativa, sim. E nestes casos o primeiro grande desafio é justamente este: qual a história que vou contar?
Eu diria que há dois tipos principais de narradores (escritores que gostam de contar histórias). O primeiro é o que precisa pensar a história inteira, saber como começa e termina, para só então começar a contá-la. Autores assim costumam fazer sinopses detalhadas, redigir dezenas de páginas de informações sobre ambientes e personagens, prever o número de capítulos, saber de antemão em qual capítulo vai acontecer esta ou aquela peripécia. Em alguns casos, ele passa mais tempo planejando do que escrevendo o livro.
Outros são diferentes. Começam a contar a história sem saber que história estão contando. Em vez de terem uma visão geral, partem de um detalhe: uma cena, um fato insólito, ou um personagem curioso fazendo tal ou tal coisa. Começam daí, e todo dia, quando escrevem, avançam numa direção ou noutra, dependendo do momento que vivem, do que acabaram de ler ou ouvir. O livro vai sendo improvisado todo dia, numa navegação meio às cegas mas movida pela intuição. Autores que escrevem assim dizem às vezes: "Se eu tiver bons personagens, eu não me perco. Posso inventar qualquer maluquice, sempre vou saber como os meus personagens reagiriam a ela".
Arquitetura
A primeira forma de Narrativa, a planejada antes da execução, é uma espécie de narrativa arquitetural, em que se concebe uma forma geral para toda a obra e depois vão sendo resolvidos os problemas localizados, de acordo com a ideia geral que foi decidida. A segunda forma parece com improvisos de jazz, em que há sempre um fio de continuidade a que o artista se apega (no exemplo, os personagens) e o resto é improvisado. Todo improviso, claro, só tem sentido se tiver alguma restrição, senão vira bagunça. No caso do jazz, é o tom, o compasso, o tema musical proposto. Na literatura, deve haver um mínimo de coerência entre as partes da história, por mais anárquica (romances de Charles Bukowski ou Henry Miller, por exemplo, parecem compostos no clima do "tudo isto poderia ter acontecido, já que estas pessoas são assim").
A narrativa arquitetural é mais cerebral e controladora; a narrativa jazzística navega de acordo com os ventos da intuição e as marés da vida do autor. Ambas são legítimas, claro, mas vale um alerta. Há muitos autores jovens capacitados para uma delas e, por influências várias, acham que "não sabem escrever" porque leram que a única maneira certa de escrever é a outra.
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Braulio Tavares é compositor, autor de Contando histórias em versos (Editora 34, 2005)
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