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A literatura como contradisciplina

Qual o limite de reapropriação escolar das produções literárias?

Publicado em 10/09/2011

por Julio Groppa Aquino


Julio Groppa Aquino

Suspeita-se que professores de literatura não deveriam existir, já que resultam, no mais das vezes, irrelevantes ou, na pior hipótese, indignos. Irrelevantes porque as salas de aula, tal como hoje dispostas, são lugares demasiado ermos para empuxar o gosto pelas letras. Indignos porque cúmplices, quando não autores, de uma fraude: o encarceramento da arte literária em grades curriculares. Destino inglório a uma prática que se debate contra as injúrias deste mundo e que finda por padecer, ela mesma, da injúria pedagógica mais funesta: o esquartejamento dos saberes segundo especialidades estanques.

Tal suspeita é compartilhada por Gabriel García Márquez. Em suas Crônicas, quinto tomo da extensa obra jornalística recém-lançada no país, ele relata algumas passagens em que os alunos eram impingidos a "interpretar" alguns de seus livros, as quais figuravam tão insólitas quanto as de suas histórias. Algo parecido com um hiper-realismo fantástico-escolar, digamos. 

Na primeira, inquiria-se sobre o significado de uma letra ao contrário na capa de Cem anos de solidão, em sua versão argentina – algo insondável até para o ilustrador, quando indagado. Em outra, ocorrida com seu filho, questionava-se a simbologia de um galo que havia numa das obras. Nesse caso, a resposta "certa" deveria ser "a força popular reprimida", a qual ambos, pai e filho, ignoravam. Por sua vez, alguns professores católicos insistiam que certos personagens, em geral os que ascendiam aos céus, representavam o divino, a virgem Maria etc. Daí a conclusão do autor colombiano: "A mania interpretativa termina por ser com o tempo uma nova forma de ficção que às vezes encalha no disparate".

É certo que a obra literária, em posse do leitor, não é mais de domínio do autor (se um dia sequer chegou a sê-lo). Ela se torna, por assim dizer, um fato público que pode ser reapropriado de infinitas e improváveis maneiras. É a medida mesma de sua vitalidade. Entretanto, qual o limite de reapropriação escolar das produções literárias? A que se presta o ensino de literatura, quando constrangido pelo crivo interpretativo? O que dizer então das sinopses esquemáticas e versões simplificadas das obras a título de incentivo ao hábito de ler, senão como fomento de seu avesso absoluto?

García Márquez propõe um antídoto: "Um bom curso de literatura não deve ser mais do que um guia dos bons livros que devem ser lidos. Se os alunos têm a sorte de ler os livros essenciais com prazer e discernimento, acabarão por saber tanto de literatura quanto o mais sábio de seus professores".

Daí uma decisão dignificante que caberia às escolas: extinguir as aulas de literatura, dispersando o trato das obras literárias de vulto por entre todos os momentos da vida escolar, sem que isso signifique nenhuma rendição à investida "interdisciplinar". Antes, uma determinação contradisciplinar, igualmente aplicável aos outros domínios do saber. Uma resposta sensata, enfim, às velhas tolices pedagógicas que insistimos em comer.



Julio Groppa Aquino – Professor da Faculdade de Educação da USP



juliogroppa@editorasegmento.com.br

Autor

Julio Groppa Aquino


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