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A mídia que legitima

Tese de pesquisador mostra como a revista Veja construiu o "discurso da boa escola"

Publicado em 10/09/2011

por Rubem Barros

Com aguçado olhar sobre como a imprensa ajuda a construir valores no campo da educação, o professor de história da rede pública estadual paulista Geraldo Sabino Ricardo Filho esquadrinhou em seu trabalho de mestrado (publicado há dois anos em livro com o título de A Boa Escola no Discurso da Mídia), a evolução da idéia de educação de qualidade contida nas páginas da revista semanal Veja ao longo do tempo. Sua pesquisa parte do começo da publicação, quando esta ainda era dirigida por Mino Carta, que guiava suas diretrizes jornalísticas, e se deteve especialmente no período de 1995 a 2001, quando um grupo de educadores capitaneado pelo mineiro Cláudio Moura Castro alicerçou as bases de um discurso de qualidade no mundo escolar. 


Em seu livro, o senhor mostra como a revista Veja criou e ratificou uma idéia de escola de qualidade. Quais os pontos centrais dessa construção?

Procuro demonstrar que a idéia de uma boa escola é uma construção coletiva de diversos atores pertencentes a campos diferentes, mas que se movimentam pelo campo educacional, ampliando suas fronteiras. Desse modo, o consenso em torno da boa escola não é prerrogativa da revista Veja, mas ela atua como um espaço de difusão de uma determinada prescrição pedagógica, contribuindo assim com a produção do consenso acerca do que poderia significar uma escola de qualidade.


Como um meio de comunicação adquire legitimidade social para realizar esse tipo de construção?

Um veículo de comunicação, qualquer que seja ele, não adquire legitimidade (de qualquer natureza) fora dos processos históricos em que ele está inserido. Quando se pensa em legitimidade, à maneira do [sociólogo Pierre] Bourdieu, há que se pensar as disputas que ocorrem no campo jornalístico, as estratégias de liderança nesse campo, o poder simbólico expresso em tiragens, segmentos de leitores, jornalistas prestigiosos, entre outras questões. No caso da revista Veja, por exemplo, ela era (ou ainda é) a quarta maior revista de informação semanal do mundo, com mais de 1 milhão de assinantes e uma projeção de mais de 5 milhões de leitores. Defendo, em meu trabalho, que o domínio da língua legítima contribui para a conformação de consensos, legitimando e sendo legitimado.


Esse caso atesta a tese de Bourdieu de que a escola transforma desigualdades culturais em desigualdades escolares?

Pierre Bourdieu redimensionou a pesquisa sociológica ao associar cânones científicos a objetos antes preteridos na academia. Seu itinerário de investigação é muito rico e diversificado, como os trabalhos com a sociedade cabila, na Argélia, reflexões sobre os jogos olímpicos, o campo da alta-costura parisiense, visitas aos museus, sistemas escola­res, intelectuais etc. No entanto, seu livro A Reprodução, traduzido no Brasil em meados da década de 1970, foi, durante muito tempo, o mais citado e apropriado de forma um tanto apressada. Assim, o epíteto reprodutivista acabou permeando um determinado discurso educacional, felizmente superado com trabalhos de Denice Catani, Jaime Cordeiro, Maria da Graça Setton, entre outros intelectuais.


E qual a essência dessa nova leitura da obra de Bourdieu?

Quando se fala numa escola que transforma desigualdades culturais em desigualdades escolares, é preciso considerar o percurso intelectual de Bourdieu para entender que sua obra apresenta um conjunto de conceitos, jamais sedimentados, mas refeitos empiricamente, que atestam suas inferências sobre o sistema escolar. Bourdieu não afirma que a escola conserva as estruturas sociais, ao contrário, enfatiza que o sistema de ensino contribui para conservá-las, o que é bem diferente, já que as desigualdades culturais têm origens nas formas de transmissão do capital cultural, especialmente nas famílias. Alguns desdobramentos de suas pesquisas, supostamente sem respostas, estavam nas questões de aquisição de capital cultural em crianças de classes populares que obtinham sucesso escolar, apesar do baixíssimo capital cultural de suas famílias, e foram ampliados em es­tudos de sociólogos como Bernard Charlot e Bernard Lahire. Contudo, apesar dessa contribuição importante, ainda é possível confirmar a tese de Bourdieu de que a escola contribui para conservar a estrutura social, sem que isso se constitua numa posição conservadora do pesquisador.


Boaventura Santos fala das crises de hegemonia e de legitimidade da universidade. Até que ponto a mídia contribui para isso no caso da reflexão sobre educação?

Essa pergunta é difícil, contudo é possível considerar alguns aspectos. Boaventura de Souza Santos fala em três tipos de crises que acometeram a universidade: a crise de legitimidade, a crise de hegemonia e a crise institucional. Talvez as crises mais sentidas sejam de hegemonia e institucional, já que a universidade tem que se haver com outras instâncias de produção de conhecimento que não funcionam com a mesma lógica científica tradicionalmente em voga na academia, com claro vínculo com o mercado. O desdobramento dessa questão se aduz pela crise institucional, mormente pelas formas de intervenção do Estado e os novos modelos de avaliação de desempenho e formas de financiamento. Paradoxalmente, a crise de legitimidade tem conotação diversa das outras crises já que ainda é forte o poder simbólico da universidade de outorgar e chancelar os títulos acadêmicos e o poder de distinção que eles representam socialmente. Nesse sentido, creio que a mídia não tem uma contribuição significativa no engendramento dessa crise, porque o campo educacional sempre abarcou diversos atores, oriundos de diversos campos que se movimentam na ampliação de suas fronteiras, o que significa afirmar que o campo educacional é heteronômico, ou dito de outra forma, qualquer ator se sente autorizado para falar sobre educação (políticos, intelectuais, jornalistas etc.). O problema é que a universidade perdeu parte do poder de prescrição pedagógica, acreditando que a sua autoridade era inconteste. Ledo engano!


Com as regras de publicação acadêmica, os professores universitários buscam inserção em muitos veículos de comunicação. Acredita que podem influenciar positivamente o campo jornalístico?

As regras de publicação têm estratégias diferentes na academia e dependem muito da posição dos atores em seu campo e do capital simbólico que lhes confere  poder de liderança e prestígio, expresso em conselhos editoriais de revistas especializadas, organização de editoras, controle dos cursos de pós-graduação, entre outras estratégias do Homo academicus. O clássico trabalho de Sergio Miceli Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil permite desvendar as formas de construção de prestígio dos intelectuais brasileiros. Assim, ao contrário daquilo que ocorre na França, onde Bourdieu afirmava que os intelectuais que colaboravam na imprensa tinham prestígio menor em seus campos de atuação, sendo portanto intelectuais heteronômicos, no Brasil, a contribuição na imprensa é fator inconteste de prestígio desse intelectual em seu campo de atuação, conforme se pode observar em resenhas, lançamentos de livros, ou declarações feitas em notícias e reportagens, o que confere prestígio e legitimidade tanto ao veículo de comunicação como ao especialista consultado.

Autor

Rubem Barros


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