Andanças de um educador pelo Brasil
Publicado em 10/09/2011
Não há países ideais, sem defeito. O Brasil, que adoptei como segunda pátria, não é excepção à regra. Na minha peregrinação pelo Brasil das escolas, vou coleccionando contrastes. Desta feita, opto pelo registo dos absurdos. Chegará a vez dos prodígios…
Na porta do banheiro de uma famosa confeitaria de São Luís, estava pendurado um dístico: “Por favor, não urine no chão, nem no cesto dos papéis”. O inusitado apelo avivou memórias, devolveu-me a indelével imagem do Cassiano, cábula e decano dos alunos, urinando contra as paredes dos sanitários da sua escola, incitado pela algazarra de outras boçais criaturas.
Decorridos quase cinquenta anos, as suas estridentes gargalhadas ainda ecoam, violentas, nos meus ouvidos.
Entrei numa faculdade da Grande São Paulo. No hall de entrada, estava afixado um imponente cartaz: “Salvemos a Amazónia”. Em letras mais pequenas, apelava-se a uma intervenção cívica que pudesse atenuar a sanha destrutiva dos que dizimavam a floresta. Em letras ainda mais pequenas, uma nota: “ao poupares papel, estarás a ajudar-nos nesta campanha”. Segui pelos corredores da faculdade. Estavam repletos de expositores. Cartazes caíram ao chão e eram pisados por quem passava.
Desemboquei no bar. Algazarra, lixo, café, refrigerante e outros líquidos não identificados escorriam do balcão para o chão. Na sala dos professores, observei um cesto atafulhado de papel. As folhas estavam impressas apenas de um lado. Metade das folhas estava em branco, mas estavam amarrotadas, sujas, inutilizadas. Evoquei uma escola que eu bem conheci, onde os alunos aproveitavam o papel até ao último milímetro e colocavam na caixa das folhas de rascunho aquelas folhas que só tinham sido utilizadas de um lado. Recordei o gesto de um pai que, certo dia, foi oferecer a essa escola duas resmas de papel, porque “tinha visto o filho a fazer os deveres num papel usado e pensava que a escola estava a passar por dificuldades”. Quando lhe foi explicado, esse pai entendeu que a prática de reutilizar papel não se ficava a dever a dificuldades. Ficou sabendo que o seu filho tinha adquirido competências de educação ambiental. Competência é saber em acção e o filho tinha transformado comportamentos em atitude.
Nas minhas deambulações pelo sul, escutei desabafos de professores que, sem descurarem o bom desempenho dos seus alunos no domínio cognitivo, também se preocupam com o atitudinal: Diga lá se nós não devemos estar desanimadas! As nossas crianças descobriram ninhos de morcegos nas entranhas de uma velha árvore por detrás da escola. Com elas, fizemos um projecto, para conhecer a vida dos morcegos e cuidar da árvore que era a sua casa. Chegou o “dia da árvore” e nós lá fomos com os alunos para uma tarde de observação. Quando chegámos ao lugar onde deveria estar a árvore só vimos restos de ramos cortados e raízes arrancadas. Diga lá se nós não devemos estar desanimadas!
O que aconteceu? – perguntei.
A directora, quando soube da descoberta dos alunos, pensou que “as crianças poderiam tentar subir à árvore e cair”. Na manhã do” dia da árvore”, mandou cortar a árvore, que era a casa dos morcegos. E, enquanto isso acontecia, em todas as salas de aula, em cartilhas iguais para todos e todas abertas na mesma página, todos os alunos pintavam árvores de papel. Árvores todas iguais…
José Pacheco – Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves Portugal)
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