Há várias maneiras de discorrer sobre a educação no Estado Novo. Podemos tomar as reformas educativas como fio condutor da narrativa e analisar desde a proposta de elaboração de um Código da Educação Nacional, que nunca chegou a ser efetivada, até os diferentes decretos-lei que, […]
Publicado em 10/09/2011
Há várias maneiras de discorrer sobre a educação no Estado Novo. Podemos tomar as reformas educativas como fio condutor da narrativa e analisar desde a proposta de elaboração de um Código da Educação Nacional, que nunca chegou a ser efetivada, até os diferentes decretos-lei que, de 1942 a 1946, pretenderam regular o ensino, proclamando as Leis Orgânicas do Ensino Industrial (1942), Secundário (1942), Comercial (1943), Primário (1946), Normal (1946) e Agrícola (1946) ou criando o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) (1942) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) (1946).
Outra perspectiva seria enfatizar a preocupação nacionalista do governo Vargas, o que nos levaria a abordar a nacionalização e fechamento das escolas estrangeiras, sobretudo a partir de 1938; a ênfase, nos currículos das escolas primárias e secundárias, da educação física, do ensino da moral católica e da educação cívica (pelo estudo da história e da geografia do Brasil e do canto orfeônico e pela participação dos alunos em festas cívicas, como a Semana da Pátria); ou, ainda, a constituição, em 1940, da Juventude Brasileira, corporação formada pela juventude escolar com a finalidade de prestar culto à pátria.
Outra maneira de perceber a questão nos conduziria a centrar o interesse nos dispositivos autoritários que pretenderam, capilarmente, alterar as práticas escolares. O controle e censura da produção voltada ao uso didático incluiu não só a criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince) e do Instituto Nacional do Livro (INL), em 1937, como ações mais espetaculares de fechamento de bibliotecas e queima de livros considerados "nefastos" ou de "conotação comunista". Foi o caso da invasão e clausura, em 19 de outubro de 1937, da Biblioteca Popular Infantil, dirigida por Cecília Meireles, por possuir, em seu acervo, literatura subversiva, como o livro As Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain.
A relação entre Estado e igreja ou entre Estado e militares constitui-se também em outra possível leitura do período que se estende de 1937 a 1945, mas que já em 1935 delineava alguns de seus contornos e em 1946 mantinha parte de suas características. O caminho aqui percorreria, no primeiro caso, o debate acerca do ensino religioso nos estabelecimentos de ensino primário, secundário e normal do país, instituído em 1931, e reiterado, com nuances, nas Constituições de 1934 e 1937; e a disputa entre pioneiros e católicos pela definição dos rumos da educação brasileira, evidenciada com a publicação do Manifesto de 1932. No segundo caso, incitaria a explorar a educação como uma das estratégias da doutrina de segurança nacional, ou mesmo, analisar os elogios ao regime fascista enunciados por educadores e dirigentes no período.
Nenhuma dessas perspectivas, entretanto, produz-se isoladamente. Ao contrário, elas estão intensamente imbricadas. De fato, os aspectos apontados poderiam ser rearranjados em outras chaves de entrada, denunciando o entrelaçamento das iniciativas e das lutas sociais e políticas.
No entanto, dentre as várias possíveis miradas sobre o tema, uma parece particularmente interessante para pensar a educação atual e sobre ela queria me deter um pouco mais: a relação entre público e privado. Quando observamos a Constituição de 1937, a indefinição do caráter educador do Estado emerge com particular relevância. Enquanto no texto constitucional de 1934, a educação era afirmada como direito de todos e dever dos poderes públicos em proporcioná-la, concomitantemente com a família; três anos depois, a nova Carta proclamava a liberdade da iniciativa individual e de associações ou pessoas coletivas públicas e particulares.
Essa indeterminação sobre a quem caberia educar a população brasileira resultou na equalização de direitos entre o ensino privado e o público. No tocante ao ensino primário, com exceção do intervalo que vai de 1938 e 1941, durante o qual o financiamento da União visou à nacionalização das escolas estrangeiras, essa política educacional repercutiu em uma pequena aplicação de recursos públicos à escola oficial. No que concerne à formação de professores, permitiu a abertura desordenada de escolas normais privadas. No que tange ao ensino secundário, a equivalência da qualificação entre o ensino privado e o oficial, a possibilidade de financiamento público à escola particular e a não interferência do Estado na gestão escolar repercutiram no reconhecimento do caráter empresarial da iniciativa privada, favorecendo sua expansão. A participação intensa de católicos nos diferentes postos do Ministério da Educação e Saúde Pública, com conseqüente defesa do direito da família na escolha da educação dos filhos e valorização do trabalho realizado nas escolas confessionais, reforçou a leniência com que foram tratados os interesses da escola privada.
Findo o Estado Novo, os debates que se organizaram em torno da elaboração de um Plano Nacional de Educação, cuja longa tramitação (1948-1961) envolveu o desaparecimento do texto original e a necessidade de sua reescrita, evidenciaram as disputas em torno da definição da função educadora do Estado. A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, proclamada em 1961, ficou no meio termo. Consagrou a educação como direito de todos, assegurado tanto pela obrigação do poder público, quanto pela liberdade da iniciativa particular, facultando o financiamento público à esfera privada.
Os embates entre defensores da escola pública e privatistas permanecem até hoje na educação brasileira. Como não ver suas marcas, por exemplo, na legislação que estabelece o Programa Universidade para Todos (PROUNI)? Se os contornos dessas lutas foram sendo redesenhados, ainda remetem à questão: qual deve ser o papel do Estado na disseminação da educação? Esta pergunta é particularmente contundente para um país em que aproximadamente um terço da população vive abaixo da linha de pobreza, exibe uma taxa média de escolaridade em torno de 6,4 anos de estudo e apresenta um índice de analfabetismo da ordem de 11,6% para os indivíduos acima de 15 anos (IBGE, 2003).
Diana Gonçalves Vidal é professora de História da Educação da Faculdade de Educação da USP