Com mais de 8.000 estabelecimentos católicos, 124 judaicos e apenas um muçulmano em contrato de associação com o Estado, a França, berço do laicismo, tem contrastes patentes na educação privada
Publicado em 10/09/2011
No início do ano letivo francês, que ocorre em setembro, o colégio Al-Kindi de Décines (região do Rhône-Alpes, sudeste da França), com 13 alunos matriculados, deveria ter se tornado o mais importante estabelecimento muçulmano da França. No entanto, suas portas ficaram fechadas. Em 30 de agosto, Alain Morvan, reitor da Academia de Lyon, órgão regional que, entre outras atribuições, é responsável pelas concessões de funcionamento de escolas privadas, declarara oficialmente que se opunha à sua abertura. Morvan já dera um alarme sobre seu receio ligado à poluição do solo e a um vazamento de gás mal reparado. Ao que a direção do Al-Kindi retorquira que especialistas nessas questões já haviam dado o sinal verde. Finalmente, insistindo que "a questão de segurança persistia", o reitor confirmou sua opinião desfavorável ao funcionamento em correspondência endereçada ao futuro diretor do estabelecimento. Professor numa escola pública do Rhône, o diretor solicitou, então, a anulação do contrato que lhe permitiria assumir suas novas funções, evocando desacordo com a associação Al-Kindi. O reitorado conclui a "caducidade do dossiê", decisão contestada pela Al-Kindi. O dossiê é o documento que registra o processo de abertura da escola.
"Nossos dossiês automaticamente causam problemas", diz Azzedine Gaci, presidente do Conselho Regional do Culto Muçulmano na região Rhône-Alpes. "Isso só vai exacerbar o sentimento de injustiça de alguns jovens e dos mais radicais", completa.
Já Bruno Etienne, diretor do Observatório das Religiões na Universidade de Aix-Marseille, defende que a administração "é menos precavida quando se trata de escolas de outras confissões" e questiona o efetivo respeito às regras em outros estabelecimentos, sobretudo quanto à ausência de discriminação para com as meninas ou alunos de outras confissões.
Mas a severidade minuciosa das instituições reguladoras não basta para explicar a quase inexistência de escolas muçulmanas na França. Na realidade, as demandas de abertura são raras: o do Al-Kindi é o único dossiê em andamento. Em parte isso se deve à própria sociologia da imigração de Magreb, região do Norte da África. Mais popular e operária, esta só recentemente trouxe à tona elites culturais e econômicas, no que difere de outras populações, especialmente católicas e judaicas, mais aptas a desenvolver infra-estruturas escolares. A isso se acresce o fato de que, nesses casos, a escola laica soube fazer concessões (cantina, festas) que agradam à maioria das famílias.
Mas a situação evolui. "Construir-se ao mesmo tempo como francês e muçulmano, tal é o novo leitmotiv de um certo número de jovens nascidos na França", escreve Dounia Bouzar, antropólogo especialista em relações entre o islã e a laicidade.
Acrescente-se desde março de 2004 a lei contra os símbolos religiosos na escola pública. "Há alguns anos, eu mesmo era contra a idéia de uma escola confessional. Era a favor de uma escola republicana abrangendo judeus, católicos e muçulmanos. No entanto, hoje a lei não permite isso àqueles que querem respeitar a tradição. É preciso dar-lhes uma resposta", enfatiza Azzedine Gaci. Uma necessidade também evocada por Mohsen N’Gazou, delegado da União das Organizações Islâmicas da França (Uoif), na região da Provença, que espera abrir uma classe de 5ª série brevemente. Em Bordeaux e em Grenoble, outros projetos estão amadurecendo.
Nazir Hakim, presidente do Al-Kindi e responsável pelas questões de educação na Uoif, prefere dar prioridade a argumentos de ordem escolar. "Queremos dar aquele empurrão de que precisa a maioria dos alunos dos bairros para prosseguir os estudos, escolher a profissão", afirma, evocando um sistema educativo de mão dupla. "Hoje, 85% dos muçulmanos têm os mesmos valores e as mesmas preocupações do conjunto dos franceses, especialmente a ascensão social de seus filhos", reforça Bruno Etienne. Esperança que as famílias muçulmanas pensam depositar em suas próprias escolas particulares.
Bósnia : um quebra-cabeça escolar
Doze anos após o final da guerra civil, a escola da Bósnia ainda não está em paz. Quando os acordos de Dayton foram assinados, em dezembro de 1995, a Bósnia-Herzegovina foi dividida em duas entidades, cada uma dispondo de forte autonomia. O governo central não tem nenhum poder. De um lado, a entidade dos sérvios da Bósnia, a Republika Srpska (RS), que ocupa a metade do território, reconstruiu seu sistema educativo sobre bases étnicas, sem levar em conta o que acontecia na Federação Croato-Muçulmana. Essa Federação é dividida em dez cantões e dispõe de igual número de ministros da educação. Com plenos poderes. Um quebra-cabeça étnico.
No início deste ano, a comunidade internacional contabilizava nessa federação 54 unidades escolares divididas, mantendo a segregação sob o mesmo teto nas cidades onde croatas e muçulmanos co-habitam. A culpa é dos partidos nacionalistas que agitam sem cessar o espectro da perda de identidade e impõem uma escola fundada unicamente na pertença comunitária, com seus símbolos militares e religiosos. Assim, em Bihac, no norte do país, várias escolas levam ainda o nome de brigadas militares. Sem contar as comemorações militares, que ocorrem no espaço escolar. A pertença religiosa permanece também como critério de separação. Em Travnik, na volta às aulas de 2005-2006, pais muçulmanos se recusavam a enviar os filhos a uma escola dominada pelos croatas católicos. Na Herzegovina, a situação se agravou em 2006. Para pôr fim às tensões entre croatas e muçulmanos, dividiram-se algumas áreas a fim de evitar a mistura dos estudantes.
O caos político-administrativo reforçou essa segregação. A multiplicação dos poderes levou à multiplicação dos programas escolares. Cada cantão ensina história, por exemplo, segundo a comunidade à qual pertence.
A comunidade internacional, que dirige de fato o país por intermédio de um alto representante, tardou a reagir. "Seria preciso haver um tronco de disciplinas comuns em que as culturas e tradições específicas fossem opcionais. Não pode haver três histórias diferentes", diz Claude Kiffer, da Organização pela Segurança e Cooperação na Europa (Osce). Quanto à língua, poucos imaginam ensinar noutra que não a sua, mesmo que o croata, o sérvio e o bósnio sejam tão próximos a ponto de ser difícil distingui-los.
Até hoje, a lei básica de 2003 sobre a educação não foi aplicada. A agência encarregada de criar um sistema pedagógico unificado não saiu do papel. O mesmo ocorre no ensino superior. Desde 2004, uma lei está sendo elaborada. "O status quo atual representa um risco para a paz no longo prazo", afirma Claude Kiffer. (Do Le Monde de L’Éducation).
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