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A força fabuladora

A obra de Guimarães Rosa transpira a essência das relações humanas ao dar vazão ao imaginário do escritor

Publicado em 10/09/2011

por Gabriel Perissé

A ficção diz verdades sem a pretensão de dizê-las. São verdades fantásticas, fantásticas no sentido etimológico da palavra. Do grego phantastikós, ou seja, aquilo que se relaciona com a imaginação. A imaginação literária nos faz ver a realidade (e também nossos fantasmas!) com mais lucidez.

A visão literária de Guimarães Rosa (1908-1967) ao mesmo tempo recolhe e transcende a realidade, trazendo-a de volta mediante linguagem e imagens inesquecíveis. Quando perguntavam a Rosa como podia escrever sobre o sertão fisicamente longe do verdadeiro sertão, respondia ele, apontando a própria testa e o coração, que o seu sertão era "metafísico", estava ali dentro, na sua mente, em forma de idéia e sentimento. O sertão, em outro sentido, é o próprio mundo, desde que, dentro dos limites daquela região geograficamente restrita, experimentemos com radicalidade tudo o que diz respeito à vida humana.

Grande sertão: veredas, sua obra-prima, é uma grande aula sobre importantes temas existenciais: o amor, a maldade, a morte, a coragem, o medo, o destino, a liberdade, a dúvida, a crença. O aluno é aquele "senhor" a quem o protagonista e narrador Riobaldo se dirige constantemente ao longo do relato. Em dado momento, explicando-lhe como se faz o pacto com o demônio, de como o Coxo, o Capiroto, o Cujo aparece numa encruzilha, à meia-noite, Riobaldo pergunta: "O senhor imaginalmente percebe?".
Ler é perceber a realidade "imaginalmente", reconstruí-la em nossa própria mente, produzindo conhecimento.


Viver é perigoso, muito perigoso


Riobaldo repete inúmeras vezes, em diferentes tons, que "viver é perigoso".  Não só por causa dos perigos de uma vida em meio a batalhas, trocando tiros com inimigos, enfrentando as ameaças e intempéries da natureza hostil, mas porque a existência em si mesma é perigosa. Perigosa, no melhor sentido da palavra.

Estar vivo é entrar no mundo, para conhecê-lo, para agir e aprender. Quem aprende torna-se experiente… torna-se experto. Expertus, em latim, é aquele que experimentou, que se expôs ao perigo de errar (e de acertar!), foi comprovar hipóteses, verificar suspeitas. É aquele que se lançou no estudo vivo da realidade, viveu o periculum, outra palavra latina, que se pode traduzir por "tentativa". A experiência de vida levará ao amadurecimento e à sabedoria, entre vitórias e fracassos, mas sempre, em última análise, com a marca do aprendizado.

Estar no mundo, como explica Gilberto de Mello Kujawski no seu livro Viver é perigoso (Edições GRD, 1986), é o perigo absoluto. O perigo é o próprio viver, conferindo caráter heróico à existência do mais humilde dos mortais.

Não é preciso, portanto, ir à guerra para enfrentar o perigo maior. A condição humana é já suficientemente perigosa. Não há manuais ou apostilas que nos dêem total segurança. Temos de aprender vivendo. O heroísmo do cotidiano consiste nessa abertura para o que não está previamente determinado. Consiste em correr esse risco, livremente. O que requer esforço, atenção, paciên­cia: "só aos poucos é que o escuro é claro", Riobaldo ensina, porque "a noite é uma grande demora". Só lentamente começamos a ver melhor o que, no início, os nossos olhos não enxergavam.

Dizia o poeta gaúcho Fabrício Carpinejar numa palestra, com razão, que a disciplina não diminui a imaginação, "torna-a mais perigosa". Mais perigosa se torna a nossa imaginação, quando a exercitamos, quando começamos a ver coisas, quando começamos a desconfiar do evidente. A verdade vista não parece tão verdadeira, confessa Riobaldo:

Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas, e as coisas, não são de verdade! E de que é que, a miúde, a gente adverte incertas saudades?

A imaginação ilumina o que continuaremos a ignorar no claro-escuro da vida. Porque no "real da vida" as coisas continuam indefinidas, incertas e confusas. Nossa capacidade de fabular, de inventar histórias, de fantasiar é caminho de esclarecimento e compreensão do mundo.


A vida disfarça?


Riobaldo conta ter ouvido falar do jagunço Davidão, homem de posses, que certo dia "pegou a ter medo de morrer". Fez então um pacto sobrenatural com outro jagunço, este muito pobre, chamado Faustino. O pacto consistia em dar a Faustino dez contos de réis, mas que este morresse no lugar de Davidão. Os dois combateram juntos por um bom tempo, e das batalhas saíram ilesos. Mais tarde, ambos abandonaram a jagunçagem, e deles nunca mais Riobaldo teve notícias.

Mas ao contar essa história a "um rapaz de cidade grande", disse o moço que a narrativa merecia final "caprichado", e o final imaginado foi esse:


[…] que, um dia, o Faustino pegava também a ter medo, queria revogar o ajuste! Devolvia o dinheiro. Mas o Davidão não aceitava, não queria, por forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso, ferravam numa luta corporal. A fino, o Faustino se provia na faca, investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, no confuso, por sua própria mão dele, a faca cravava no coração do Faustino, que falecia…

Impossível vencer a força do pacto sobrenatural. Faustino – nome irônico neste contexto, porque significa "feliz", é também referência ao Fausto, de Goethe – estava destinado a morrer antes de Davidão. Por isso viver é perigoso. Porque os nossos pactos (nossas decisões mais importantes, nossas opções, nossos compromissos) não são facilmente revogáveis.

A vida disfarça. Nós disfarçamos. A vida boicota informação. A vida está cheia de erros e volteios, "em sua lerdeza de sarrafaçar". Sarrafaçar é cortar alguma coisa com instrumento mal afiado. Já a história inventada é afiada, e nos faz compreender melhor o que a vida nos esconde.


Outras vozes


A imaginação literária nos faz ver o que habitualmente não vemos. E a ouvir coisas que também habitualmente não ouvimos. A ouvir outras vozes, perigosa e necessária experiência para que certas revelações se façam. No poema "Meu papagaio", incluído em Magma, livro póstumo que reúne produção poética que Guimarães Rosa não quis publicar, o Louro repete gravemente:


– "Io t’amo!…"
– "Je t’aime!…"
– "I love you!…"
– "Te amo!…"
– "Te quiero!…"
– "Iá vás liubliú!…"


Vai repetindo, amigo,
caridoso,
a cada instante, sem parar,
tudo o que a minha esquiva amada
teima em não me dizer…

Onde o papagaio aprendeu a falar assim, tão apaixonado? O papagaio não é poliglota à toa. Foi do próprio poeta que ele ouviu inúmeras vezes, em italiano, francês, inglês, português, espanhol e russo, a declaração de amor não correspondida. O poeta, ouvindo o papagaio, seu confidente, repetir-lhe a expressão amorosa, cria para si a ilusão de ouvir a amada esquiva e teimosa.

Em outro texto de Guimarães Rosa, outro papagaio aparece para falar de amor. Chama-se Bom-Pensamento, em "A estória de Lélio e Lina", do livro No Urubuquaquá, no Pinhém. Diz a ave, saindo do seu sono: "Rosalina, meu bem! Rosalina, meu bem! Eu te tenho muito amor!…". Bom pretexto para a velhinha explicar ao vaqueiro Lélio que o verdadeiro amor faz sofrer, mas não é algo que se possa eliminar. Tampouco se pode fingir que não existe. É preciso cuidar dessa "má-sorte".

Dona Rosalina é professora existencial. Contadora de histórias, "histórias que eram tão verdadeiras que fugiam do retrato do viver comum". Lélio precisa aprender o que é o amor. Precisa encontrar o amor. E ouve de Rosalina:


– "Vai, meu Mocinho. Chegou o de ir. Não por fuga, nem por canseira daqui, nem por medo. Mas, o que eu sei, e seu coração sabe, é que a razão da vida é grande demais, e algum outro lugar deve de estar esperando por você…"

É a voz de Guimarães Rosa res­soando na voz de Dona Rosalina. Rosa é Rosalina… E na voz dela, o autor nos diz que devemos procurar a "razão da vida", o sentido da vida. Cada qual precisa encontrar essa razão, que é grande demais, mas possivelmente não está aqui, ao alcance da mão. Espera por nós, perigosamente, em outro lugar.

Autor

Gabriel Perissé


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