Diferenças entre o que aprendemos e o que nos afeta como seres humanos
Publicado em 10/09/2011
Em colunas anteriores, fiz inúmeras referências ao conceito de formação. Trata-se de uma noção central nos discursos educacionais, mas que de tão recorrente passou a padecer de uma ‘anemia semântica’. Seu uso constante e indiscriminado – que o identifica de forma imediata com a transmissão de informações, o desenvolvimento de competências ou a difusão de conhecimentos – tem resultado na perda dos sentidos que historicamente lhe foram associados. Não que sua história seja progressiva e linear, como se entre sua formulação primeira na antiguidade e os sentidos contemporâneos houvesse só continuidade. Mas o reconhecimento de rupturas e transformações históricas num conceito não pode resultar no esvanecimento de seu campo de significação.
É claro que todo processo de formação implica alguma aprendizagem, mas com ela não se confunde. A aprendizagem indica simplesmente que alguém veio a saber algo que não sabia: uma informação, um conceito, uma capacidade. Mas não implica que esse ‘algo novo’ que se aprendeu nos transformou em um novo ‘alguém’. E essa é uma característica forte do conceito de formação: uma aprendizagem só é formativa na medida em que opera transformações na constituição daquele que aprende. É como se o conceito de formação indicasse a forma pela qual nossas aprendizagens e experiências nos constituem como um ser singular no mundo.
Nem tudo que aprendemos – ou vivemos – deixa traços que nos formam como sujeitos. As notícias dos telejornais, o trânsito de todas as manhãs, as informações sobre o uso de um novo aparelho, uma técnica para não errar mais a crase: tudo isso pode ser vivido ou aprendido sem deixar traços, sem nos afetar. Uma experiência torna-se formativa por seu caráter afetivo; um livro que lemos, um filme a que assistimos ou uma bronca que tomamos ressoa em nosso interior, como a nota de um instrumento que, ao ser tocada, ressoa na corda de outro. Trata-se, pois, de um encontro entre um evento, um objeto da cultura e um sujeito que, ao se aproximar de algo que lhe era exterior, caminha em direção à constituição de sua própria vida interior.
Por ter esse caráter de encontro constitutivo, os resultados de uma experiência formativa são sempre imprevisíveis e incontroláveis. É relativamente simples saber se alguém aprendeu uma informação ou em que grau desenvolveu uma competência. Mas é impossível saber com precisão em que sentido e com qual intensidade a apreciação de uma obra de arte teve um papel formativo em alguém. Ao comentar o conflito potencial entre o recorrente desejo de controle da ação pedagógica e o caráter formativo da literatura, Antonio Candido ressaltou que a experiência literária representa uma poderosa força indiscriminada de iniciação na vida. Ela não corrompe nem edifica, mas por trazer livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver. Assim é uma experiência educativa com valor formativo. Um exercício de liberdade que exige do educador a responsabilidade pelas escolhas e a abdicação do controle sobre seus efeitos na formação de um sujeito.
José Sérgio Fonseca de Carvalho
Doutor em filosofia da educação pela Feusp
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