NOTÍCIA
Uma das mais respeitadas especialistas em educação infantil fala sobre o tema, em entrevista publicada na edição número 2 do especial Educação Infantil
Publicado em 10/09/2011
Recém-empossada como membro do Conselho Técnico-Científico da Educação Básica, órgão da nova estrutura da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do MEC, Maria Malta Campos é uma das principais referências nacionais quando o assunto é educação infantil. Professora da PUC/SP, presidente da ONG Ação Educativa e pesquisadora sênior da Fundação Carlos Chagas, começou nos anos 70 a investigar temas ligados à educação no espectro dos 0 aos 6 anos, tais como currículo, habilidades pré-escolares, creches, necessidades para o atendimento à criança, formação de educadores, qualidade e políticas públicas de modo geral. No seu entender, para melhorar as práticas da educação infantil, é preciso olhar para uma gama ampla de indicadores, além de atuar para convencer os professores a melhorarem suas práticas.
Pesquisa realizada pela Fundação Carlos Chagas em 2008 mostra que a educação infantil praticamente inexiste enquanto disciplina específica nos cursos de pedagogia. A que se deve essa lacuna?
Há dois aspectos distintos para discutir os conteúdos dos cursos de pedagogia. Havia uma formação para a pré-escola (4 a 6 anos), que era o Curso Normal, com elementos que permitiam às professoras trabalhar com as crianças dessa faixa etária. Ele tinha conteúdos voltados àquela pré-escola mais tradicional, de meio período, com algumas atividades no pátio e outras em sala de aula. Existiam no currículo de pré-escola aspectos sobre saúde da criança, coisas não exclusivamente de aprendizagem de conteúdos. Já o curso de pedagogia sempre teve, historicamente, um caráter mais voltado a quem se dirigia à administração escolar ou à orientação pedagógica e educacional, e mais voltado ao ensino fundamental.
Ou seja, a LDB acabou com os conteúdos para a pré-escola do antigo Normal…
Isso foi gradual, não se deveu só à LDB. Como os professores ganham um pouco mais se têm nível superior, já buscavam essa formação. O curso de pedagogia continuou com uma filosofia mais de conhecimentos gerais, mais teóricos e menos especializados para a faixa etária com a qual o professor ia trabalhar.
Com menos presença da idéia de práticas de sala de aula?
Não diria isso, pois sempre houve estágio, supervisão. Mas uma sala de aula menos preocupada com as características de desenvolvimento daquela faixa etária. O próprio estágio raramente é feito em escolas de educação infantil, quase sempre é nas escolas de ensino fundamental. No caso da primeira etapa da educação infantil, de 0 a 3 anos, a exclusão é maior. Primeiro porque não estava na área de educação até a LDB. A Constituição já apontava que deveria ser integrada, mas quem forçou a integração foi a LDB. Esse atendimento estava nas áreas de bem-estar ou assistência social, que não tinham nenhuma exigência de formação profissional. Poderia haver uma educadora ou uma professora leiga sem o fundamental completo, sendo que as creches atendiam até os 6 anos em período integral. Ou não tinha o ensino médio completo, e muito menos o curso de magistério em nível Normal, menos ainda o de pedagogia. O campo das creches estava totalmente excluído das preocupações das faculdades de pedagogia. Era como se essa criança não existisse.
E o que houve a partir da incorporação legal das creches à educação?
A primeira coisa que passou de fato a acontecer foi a formação mínima no magistério em nível Normal. Muitas professoras não tinham nem isso. Várias prefeituras foram obrigadas a criar cursos para que esses educadores em serviço tivessem ao menos o curso médio e algum módulo específico de educação infantil, pois trabalhavam com crianças.
E a graduação em pedagogia?
Existe uma resistência à especialização dos conteúdos do curso. Alguns anos atrás, houve um parecer do Conselho Nacional de Educação – ótimo sob vários pontos de vista, mas não nesse – a respeito das diretrizes para formação de professores. O documento para a formação de professores das primeiras séries do ensino fundamental, da educação infantil – englobando a creche -, do ensino de jovens e adultos e da educação especial é o mesmo. É impossível uma pessoa dominar tudo isso. Defendíamos que houvesse no curso de pedagogia um módulo geral – com conhecimentos de filosofia da educação, de história da educação, de história política do Brasil, da evolução da questão da legislação educacional, importantes para qualquer professor. Mas há conhecimentos específicos fundamentais, ignorados pela maioria dos cursos de pedagogia existentes.
Por exemplo?
Conhecimentos sobre as etapas de desenvolvimento na faixa de 0 a 6 anos, em que a criança se modifica muito. Quanto menor a criança, mais rápida a mudança; quanto maior, mais lenta. E os conteúdos fazem tábula rasa disso.
As Referências Curriculares Nacionais para a Educação Infantil são suficientes para orientar os educadores e instituições que trabalham com crianças de 0 a 6 anos?
É um documento orientador, não obrigatório. Pela Constituição, o MEC não tem autoridade para impô-lo a estados e municípios, pois são eles que formam os sistemas de Educação Básica. A LDB deu uma grande autonomia às escolas para deliberar sobre o seu currículo, o que considero um erro, mas é o que está na lei. O que é obrigatório é o documento do Conselho Nacional de Educação, Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, que é bastante geral. É um documento lindo que ninguém conhece, pois não é impresso, nem distribuído ou divulgado, mas traz grandes princípios – de igualdade, de equidade etc. – que os currículos devem respeitar. Não se pode infringi-los, assim como não se pode infringir a Constituição. Mas se você for à maioria das escolas brasileiras, ninguém ouviu falar dele e ouviu vagamente falar dos referenciais.
Por que isso acontece?
Participei da Comissão da Unesco/OCDE, que fez uma visita patrocinada pelo MEC em 2005. Eram vários especialistas e eu estava na condição de especialista brasileira que compunha a equipe. Visitamos vários estados, escolas de todos os tipos, creches comunitárias, particulares, públicas e encontramos o documento dos referenciais curriculares apenas em uma escola particular de Sobral (CE), a única entre mais de 40 visitadas. E numa escola municipal de Blumenau, a diretora tinha lido, pois havia uma citação no Plano Pedagógico da escola, mas não sabia onde estava.
E por que esse documento é ignorado?
Isso acontece com todos os documentos produzidos na área de educação e enviados às escolas. Qualquer coisa que se fizer e distribuir, se não houver um trabalho subseqüente de integração do uso desse documento na prática escolar, fica na prateleira. Ou nem isso.
Esse vácuo existe por inação das secretarias?
Não basta haver um documento. Ele, por si mesmo, não modifica nenhuma realidade. Além dele, deve haver um trabalho – que até foi feito no governo anterior, era o trabalho dos parâmetros em ação, que atingiu uma porcentagem pequena. Era um treinamento que se fazia com os professores para que aprendessem a conhecer e usar o documento. Mas se isso não é alimentado constantemente por uma supervisão, por uma ação pedagógica que tem de ser fomentada pelas secretarias de educação, isso não vira prática.
E por que isso não acontece?
Primeiro: em função das mudanças políticas, eleitorais, que fazem tudo sempre recomeçar do zero. Outro fator que atrapalha é uma histórica dissociação entre a base – as escolas e professores – e as secretarias de educação e as autoridades educacionais. Existe uma desconfiança de base do professor com tudo que vem de cima, seja bom ou ruim. A primeira reação é sempre contrária.
Como se quebra isso?
Conto um caso: Zilma de Morais, então secretária de Educação de Ribeirão Preto, queria mudar a prática pedagógica nas EMEIs, introduzindo um novo arranjo do mobiliário nas salas de aula, para as crianças não ficarem mais em filas de carteiras, para terem cantinhos, mais autonomia, recomendações atuais, enfim. Uma diretora e sua equipe chegaram para ela e disseram: "não acreditamos nessa orientação e achamos que vai dar tudo errado. Vamos fazer na nossa escola só para provar que vai dar errado". No final, adotaram e acabou dando certo. Mas a primeira reação é sempre contra. Para conseguir mudanças na área de educação, é preciso um trabalho bom não só do ponto de vista conceitual, teórico, mas também bom do ponto de vista político, de envolver as equipes, ganhar corações e mentes. Se for só na base da ameaça, não acontece nada.
Voltando aos referenciais…
É um documento que precisa ser atualizado sob vários aspectos, como por exemplo o fato de as crianças entrarem aos 6 anos na 1ª série. Um dos pontos fracos dos referenciais era o fato de não ter uma parte prevendo a transição da educação infantil para o ensino fundamental, extremamente importante. Agora, com o aumento de um ano do fundamental, ela se torna mais necessária. E em outros aspectos em que o debate avançou, como a questão da diversidade cultural, coisas fáceis de complementar. O próprio Ministério está acenando com uma revisão. Mas, como é outro partido, querem fazer um documento novo…
Entre 1996 e 2003, a senhora participou de um grande levantamento sobre a questão da qualidade na educação infantil brasileira. Quais as principais conclusões a que chegou?
O debate sobre a qualidade da educação infantil seguiu um caminho diferente daquele do ensino fundamental ou do médio, em que ocorreu muito a partir dos resultados dos sistemas de avaliação (Saeb, Prova Brasil, Saresp, Enem, Pisa etc.). Nessas etapas, a questão da qualidade foi vista por meio de um indicador, que é o resultado do aluno no teste. É um indicador, mas há outros. Na educação infantil, não havia e não há até o momento um sistema de avaliação que meça resultado desse tipo (há em outros países, aqui não). Por isso, o debate foi mais aberto. E teve uma influência grande do debate internacional, em função de documentos que já haviam sido escritos no âmbito da Comunidade Européia (vários especialistas que colaboraram com esses documentos vieram a congressos no Brasil). Esses especialistas ajudaram a trazer uma visão mais holística da educação infantil, voltada ao desenvolvimento integral da criança, e não só aos aspectos cognitivos e de aprendizagem. Os italianos têm uma expressão muito bonita, "as cem linguagens da criança" – as linguagens da criatividade, da expressão corporal, das brincadeiras, da arte, enfim, da cultura da infância. É óbvio que, no caso europeu, eles partem de patamares de qualidade muito diferentes – sociais, de formação dos professores etc.
E os norte-americanos?
Também houve uma influência, menor, da tradição norte-americana. Eles têm uma associação nacional, da sociedade civil, com participação intensa de grandes especialistas da área, chamada Nayce (National Association for the Young Children Education), que tem um sistema de credenciamento das instituições de educação infantil e dos profissionais. É como se fosse um selo de qualidade. Sejam particulares, municipais, comunitárias, as instituições têm o interesse em obter esse aval. É muito respeitado. É uma certificação geral. Implica uma visita aos centros onde se observa uma série de coisas, existem escalas que se preenchem, observam-se as crianças e se avalia a formação dos professores. Os docentes também podem ser credenciados, independente da instituição em que são formados. Podem obter um título que certifica que têm uma formação adequada para trabalhar com crianças daquela faixa etária. Isso impôs um padrão daquilo que é considerado desejável nas melhores instituições. Esse modelo também é conhecido aqui, tem alguns grupos de universidades que fazem pesquisas. Também há influência, mas menor que a européia. Então, o debate de qualidade foi voltado para uma concepção de educação infantil bastante aberta, que valoriza a brincadeira, uma variedade de experiências da criança, as atividades de cuidado que devem ser integradas às educativas. Há uma concepção pedagógica bastante inovadora para as crianças de 0 a 3 anos. Mas isso foi muito mais divulgado no meio acadêmico e entre alguns especialistas e ONGs que dão assessoria a instituições do que para as redes, de forma ampla. Nelas, chegam apenas ecos, e às vezes mal entendidos.
E quais seriam os elementos norteadores para termos instituições de qualidade no Brasil, dentro da nossa realidade?
Há indicadores usados internacionalmente, como a quantidade de crianças por professor. Neste caso, há alguns detalhes: num primeiro momento, é preciso saber quantos adultos trabalham por creche, quantas crianças tem por faixa etária, seguindo a lógica de que, quanto menor a criança, menos crianças por adulto. Jamais 30 ou 35, como vemos por aí.
Também não é a mesma coisa ter 40 crianças de 4 anos numa sala com dois adultos ou ter 20 crianças em cada sala com um adulto. As pesquisas mostram que os adultos tendem a se relacionar entre si e esquecer as crianças. É comum entrar numa sala e haver várias crianças largadas e duas professoras conversando. Ou seja, não significa a mesma coisa de ter grupos pequenos com um adulto interessado, interagindo com as crianças. Mas ter um número grande de crianças e poucos adultos é péssimo. Outro indicador é a formação do pessoal. Internacionalmente, hoje só se aceita formação em nível superior. Mas isso tem de ser relativizado no Brasil, como mostrou a pesquisa da Fundação Carlos Chagas, pois a formação em nível superior pode ser bastante vazia.
Outra questão importante é a comunicação com as famílias, muito ruim na maioria das instituições brasileiras. Isso é fundamental para a criança pequena, que depende muito do adulto, tanto do familiar como do professor. O que aconteceu com aquela criança à noite que no dia seguinte ela só chora na creche? O que ela comeu na creche que a fez passar mal quando chegou em casa? Essa comunicação é mal resolvida e é um indicador de qualidade, comprovado por pesquisas quantitativas.
E o currículo?
Ele tem de existir. As pessoas precisam saber o que estão fazendo, seus objetivos. Há rotinas, até medievais, que se reproduzem indefinidamente. E são empobrecedoras. Você chega a uma creche e as crianças estão encostadas, sentadas no chão, sem falar ou se mexer, e você pergunta para a educadora o que estão fazendo. A resposta é que estão esperando a hora do lanche, ou do banho, ou de ir embora, ou de ir para o pátio. Estão sempre esperando. Por quê? Porque é uma rotina que se limita a higiene, alimentação e sono, não existe um objetivo que transcenda isso – de aprendizagem, de ampliação do conhecimento, de socialização, de contato com a natureza. Pesquisas americanas mostram que só o fato de existir um currículo já faz diferença, porque significa que a equipe teve a preocupação de ter alguma referência – um plano, um documento – que diga a que veio. Aí, num segundo momento, pode-se julgar se esse documento é bom ou ruim, se contempla o que tem de contemplar, qual é a filosofia, se não discrimina – as meninas, as religiões, a origem etc.
E as instalações?
São outro indicador importante: o prédio, os equipamentos, os brinquedos disponíveis no parquinho infantil e em sala. É preciso avaliar se há livrinhos infantis para os não leitores irem se habituando a eles, se ficam à disposição nas prateleiras; como é o espaço externo, se é acolhedor, se tem gramado, se bate sol, se tem árvores, areia, água; como é o espaço interno, se as salas são iluminadas, arejadas, se há espaço para as crianças engatinharem, aprenderem a andar, brincar; se o mobiliário é adequado ao tamanho das crianças; se existe material de estímulo, cores, formas; se os trabalhos das crianças estão expostos. Tudo isso são indicadores relativos, digamos, ao meio ambiente em que a criança passa longos anos de sua vida.
E normalmente isso tudo é levado em conta?
No Brasil, a concepção espacial, da creche e da pré-escola, mesmo as particulares e voltadas ao público de alta renda, é pobre. Normalmente, existe uma concepção de escola fundamental tradicional que se transpõe para a educação infantil. Nas experiências mais interessantes em nível internacional, até a concepção arquitetônica da escola infantil, sua planta, é completamente diferente, pois a visão educacional é mais rica e pede um outro espaço. Nas creches do norte da Itália, o exemplo mais conhecido, a arquitetura já se desvencilhou dessa forma de salinha, salinha e corredor. Em recente exposição sobre as escolas infantis de Reggio Emilia, havia plantas e uma maquete que mostravam que eles pegaram uma tradição italiana que vem do Renascimento, que é a praça como local de encontro, de cada um se perceber como membro de uma comunidade, de criar aquele espírito cívico, e transpuseram isso para a escola. Então, a escola tem um espaço central coberto, com todos os ambientes dando para esse espaço, que tem visibilidade e é o local de encontro para vários momentos. Pode-se dizer que isso é o ideal, que aqui é difícil. Realmente. Mas existem etapas intermediárias até chegarmos perto de algo desse tipo. É importante começar a percorrer esse caminho, a quebrar essa forma tão empobrecedora que encontramos principalmente nas instituições voltadas à população de baixa renda, a que mais precisa, pois também não tem isso em casa.
Há muita divergência entre o que a família e os educadores crêem que seja uma educação infantil de qualidade?
A família tende a ser mais concreta e se ater aos aspectos que ela pode enxergar. Vimos isso na pesquisa da Fundação SM sobre a qualidade da educação infantil. Para as famílias, o critério mais importante para julgar se a creche ou pré-escola é boa é "cuidar bem da criança". Esse cuidar bem, para a família, significa que a criança não está largada, maltratada, descuidada. Há mães que chegam às 7h da manhã com um bebê de colo e só voltam às 18h para buscá-lo. Imagine a agonia que é isso numa instituição em que as pessoas não dão a mínima, não deixam a mãe entrar, só a atendem na porta ou num guichê… É uma faixa de idade muito vulnerável. É preciso deixar os pais irem à sala onde a criança vai ficar, deixá-los passar o dia na creche para ver como funciona, ter atitudes de acolhimento, mesmo que seja difícil, pois as famílias brasileiras são de baixa renda, baixa escolaridade. É preciso lidar com essa realidade, deve haver um diálogo para o qual nos qualificamos muito mal. Os professores têm uma enorme desconfiança em relação à família, muito preconceito, qualquer problema que a criança apresente na escola é entendido como culpa da família (‘não cuida, ‘não se importa’, ‘é desestruturada’ etc.), e raramente olham para si próprios, para suas práticas.
Um dos modelos mais usados para ampliar a oferta de creches é o de instituições conveniadas. É satisfatório? É preciso ter requisitos mínimos para os convênios?
Esse é o ponto. Há convênios e convênios. Há aqueles baseados em motivos políticos, em que um vereador tem uma entidade e consegue um convênio com o prefeito. E existem aqueles em que não é qualquer um que firma um contrato, em que há supervisão, compromissos mútuos etc. Existem sistemas de convênios bem administrados, bem supervisionados, exigentes. Mas existe uma pressão muito grande em função da demanda não atendida. Aqui em São Paulo é dramático, há listas de espera com milhares de crianças que precisam de vaga e não têm. Essa pressão faz com que os administradores apelem para as soluções mais esdrúxulas, creches domiciliares e outras que atendem sabe-se lá onde. Até recentemente, não tínhamos nenhum recurso de financiamento educacional previsto, ficava-se com as sobras. O Fundeb tentou resolver isso, só que ainda é insuficiente, pois o valor é muito baixo para as necessidades da educação infantil. Mas já é uma melhora.
O atendimento direto (do Estado) é melhor ou pior que o conveniado?
De modo geral, é melhor, principalmente pelo fator pessoal. Porque, no direto, as pessoas precisam ter concurso, um determinado nível de formação para trabalhar, há uma fiscalização social maior.
Mas esse não poderia ser um dos requisitos do convênio?
Mas não é o que acontece. Por que o convênio é mais barato? Há menos burocracia, menos perdas de outra natureza, mas também pelo fator pessoal, que é o que mais pesa. As pessoas são contratadas e descontratadas mais facilmente, não se exige muita coisa delas. No convênio, as exigências às vezes são ‘flexibilizadas’ pela entidade contratada. Na pesquisa sobre qualidade, apesar de nossa mostra não ser representativa do ponto de vista estatístico (52 escolas de 4 estados), o perfil dos professores de entidades conveniadas apontava para pessoas de renda e escolaridade mais baixas, quando comparado ao perfil daqueles das redes públicas. E isso pesa.
Há alguma experiência internacional em que pudéssemos nos mirar em relação à expansão de vagas para a educação infantil, que tenha ocorrido sem que houvesse queda na qualidade?
Há o exemplo da França. Eles têm a chamada escola maternal, uma instituição francesa. Ela é totalmente integrada à rede de ensino, e funciona daquele jeito francês, todas muito parecidas, de muito boa qualidade, todas as professoras com formação superior. As crianças entram de manhã e saem no meio da tarde. São de um estilo mais tradicional, cada professor atende sua turma, tem horários, currículos, atividades que todas as crianças devem fazer. O que eles fizeram? Foram universalizando, indo gradativamente para as cidades menores. Eles tinham universalizado até os 4 anos já havia vários anos, aí universalizaram para os 3 anos, e recentemente começaram a aceitar crianças de 2 anos, o que é bastante polêmico. Fizeram isso com uma qualidade padronizada nacionalmente.
Qual o motivo da polêmica?
As crianças de 2 anos exigem uma atenção mais individualizada, talvez exijam que se diminua o número de crianças por turma. O sindicato dos professores começou a ficar preocupado se havia crianças com fraldas etc. Existem as creches lá também, mas não são vinculadas à área da educação, e sim à da saúde.
Qual sua opinião acerca da integração no mesmo espaço escolar de crianças dos 0 aos 6 anos de idade?
É boa, inclusive também é melhor para famílias que têm, por exemplo, um filho de 3 anos e outro de 5. A maioria das escolas particulares tradicionais tem outro sistema de divisão. Recebem crianças de 2 a 5 anos num prédio, e de 6 num outro prédio. Não há nada contra isso, pode ser uma ótima instituição. O que interfere mesmo nessa faixa é se a criança fica período integral ou meio período, porque aí muda completamente o que você tem de proporcionar. Mesmo uma criança de 4 anos, se ela fica o dia inteiro, significa que é preciso ter um outro arranjo, uma outra maneira de trabalhar, diferente daquela existente nas escolas que ficam apenas meio período com as crianças.
Cognitivistas sustentam que muito do desenvolvimento cerebral ocorre até os 2, 3 anos de idade e muitos defendem que as crianças estejam expostas a um grande número de estímulos na educação infantil. O que pensa disso?
Outro dia, numa reunião no Conselho Superior da Capes, em que há gente de todas as áreas – química, biologia, biofísica -, havia um professor que começou a falar sobre isso, numa linha de pensamento que vem sendo muito difundida. Porque não sei quantos por cento das sinapses se processam até tal idade etc. E pensei comigo: se for acreditar no que ele diz, vou ter de mudar de profissão. As concepções mais avançadas de educação hoje, européias, são de educação ao longo da vida, que significa ser educado desde o nascimento, sim, porém prosseguindo até que a pessoa morra. Quer dizer, o ser humano é altamente flexível e tem uma plasticidade enorme, tem possibilidades ainda não totalmente exploradas. E não é porque uma criança chegou à escola aos 6 anos que não pode aprender um monte de coisas e se tornar doutora em física. Há muitos exemplos disso. A ex-ministra Marina da Silva só foi aprender a ler com 18 anos. E o que aconteceu com as sinapses dela? Estavam muito bem, obrigado.
Qual é o ponto, então?
Essa faixa de idade tem uma enorme capacidade de aprendizagem, de incorporar uma série de elementos, que estão abertos para o mundo justamente porque precisam ganhar autonomia para sobreviver. É verdade também que é muito importante o que acontece com ela nos primeiros anos de vida. É preciso enfatizar isso, até mesmo para que se faça um lobby para melhorar o financiamento e a qualidade da educação infantil. Mas isso não pode ser tomado de uma maneira restritiva, do tipo "se não teve, agora não dá mais". Você já pensou como as escolas ficariam se seguissem isso? A professora da 1ª série diria àqueles que vieram de escolas ruins que não valeria a pena perder tempo com eles, pois sabe-se lá o que aconteceu com as sinapses dessas crianças…
Corremos o risco de supervalorizar essa visão e de reduzir a educação infantil a uma questão de alta estimulação cerebral, enquanto outras dimensões educativas são negligenciadas…
Isso é péssimo até para a própria aprendizagem cognitiva, pois há uma questão que o pessoal dessa corrente esquece: o ser humano, e mais ainda as crianças pequenas, são seres integrados. Conforme vamos ficando mais velhos, conseguimos especializar os campos de atuação, distinguir diferentes papéis que exercemos. A criança pequena tem essas experiências todas muito mais integradas. Por exemplo, a questão afetiva é absolutamente colada na questão da aprendizagem. Se ela não está bem afetivamente, não vai aprender. Se ela não está se sentindo bem com os colegas e com a professora, com um bom ambiente em casa, ela não estará pronta para se desenvolver em outros campos. Isso tudo acontece de forma integrada. A ênfase só no aspecto cognitivo é complicada.
Como se quer que uma criança aprenda se, como acontece aqui em São Paulo nas redes estadual e municipal, há até cinco remoções de professores enquanto ela cursa a 1ª série do fundamental? Uma criança que pisa pela primeira vez na escola, vem de um meio social desfavorecido, e a sua primeira professora é trocada cinco vezes num ano. É óbvio que essa criança não vai aprender. A primeira professora da criança carrega uma grande carga afetiva para ela , é o seu modelo. Até as músicas dizem isso. E quanto mais isso acontecer, melhor, pois ela vai se alfabetizar melhor, vai ficar mais entusiasmada com as tarefas. Então, essa linha de pensamento é importante se integrada a um pensamento mais complexo e multidimensional. E é perigosa quando se torna unidimensional.
Por que os economistas gostam dela?
Porque estão sempre obcecados em encontrar aquele determinado fator em que você coloca o seu dinheiro e, passados determinados anos, você tem uma taxa x de retorno. Eles calculam essa taxa de retorno para o indivíduo, de forma econométrica. Se a pessoa fez pré-escola, foi bem na escola, sem repetir, conseguiu chegar ao nível superior e aí tem um salário x, quanto custou sua educação, incluindo o que a família deixou de ganhar pelo fato de ela ter estudado e não trabalhado, o que gastou de condução etc. Soma-se tudo isso, compara-se com o ganho da pessoa e extrai-se essa taxa de retorno. Então, estão interessados em saber onde vão colocar o dinheiro para dar aquela taxa de retorno. O fato é que, com esse raciocínio, eles querem encontrar aquele determinado fator no qual vale a pena gastar dinheiro. É óbvio que estou caricaturando, pois há pessoas inteligentes que fazem estudos importantes, mas existe essa tendência. Então eles ficam maravilhados quando aparece esse pessoal falando essas coisas. E não gostam dos educadores, porque costumamos dizer que as coisas são mais complexas do que isso. Mas têm razão numa crítica que fazem à área educacional: nós geralmente somos pouco objetivos, temos dificuldade de tomar decisões do tipo "vamos melhorar 100% das escolas ou só 10%". Os educadores têm dificuldade de ver as coisas de forma mais objetiva. Os economistas, ao contrário: têm dificuldade de ver as coisas na sua complexidade, querem transformar tudo em número. E não é tudo que dá para transformar em número.
Qual o papel central da educação infantil?
Depende. Se pensarmos na creche, ela tem objetivos não só educacionais, mas também sociais e de igualdade de gênero, para que a mulher possa participar totalmente da sociedade, não só do trabalho, mas de atividades políticas, cívicas, lazer, cultura etc. São papéis importantes que extrapolam o ponto de vista educacional. Sob o ponto de vista da educação, é muito importante e todas as pesquisas indicam que o fato de a criança ter tido ou não uma boa educação infantil faz uma grande diferença para a sua carreira educacional. Há pesquisas interessantes nos EUA e na Inglaterra que mostram consistentemente a importância do acesso à educação infantil de boa qualidade, ou razoável. São efeitos diretos na aprendizagem nas séries posteriores – em matemática, linguagens etc. – e também em outras coisas, como as habilidades sociais, de relacionar-se, de se colocar frente ao coletivo. Isso tudo é consensual.
E o que não é consensual?
O que ainda é objeto de polêmica é com relação à faixa dos pequenos. Aí há diferenças entre as pesquisas, que não permitem conclusões definitivas. Faz diferença o tipo de família de onde a criança provém. Para aquelas que vêm de famílias de baixa renda, com alguma situação de risco, com certeza é melhor ter um bom atendimento do que ficar em casa. Mas para as crianças em geral existem resultados divergentes, pois às vezes a criança pode ter um atendimento muito bom em casa ou na sua comunidade, que não é um atendimento formalizado de creche. No caso da pré-escola, os resultados são todos consistentes. É bom, faz diferença, mas faz mais diferença para as crianças mais pobres. E de diversas maneiras. Tanto na aprendizagem stricto sensu como nas habilidades importantes para a formação de qualquer cidadão.
Mas se tivesse de resumir a importância da educação infantil, qual seria?
Preparar a criança para um melhor aproveitamento na escola primária. E é ótimo que prepare, sob todos os aspectos, pois nossos indicadores de aproveitamento na escola primária são obscenos. Então, se preparar, ótimo. Mas não é só isso. A infância da criança está sendo vivida neste momento, e é bom que ela seja bem vivida. Se a criança passa 8 horas por dia numa instituição de educação infantil, praticamente está passando a infância ali. Então precisa brincar, desenvolver-se, socializar-se, criar habilidades motoras etc. O Brasil deu um passo importante na definição de sua legislação. Somos vistos com muita curiosidade pelos analistas de políticas educacionais internacionais, porque foi um país que fez isso de forma ousada. Pegou a faixa de 0 a 6 anos e colocou inteira na educação. Outros países, como a Suécia, estão fazendo isso só agora, e depois de um grande debate.
O texto acima é a íntegra da entrevista publicada na edição número 2 da série
Educação Infantil
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