Sua morte foi decretada, mas o túmulo nunca foi fechado: a questão ideológica continua muito presente na educação (e também fora dela). E não é demais questionar: é possível haver educação sem ideologia, ou a simples expressão desse desejo já é reveladora de um lugar de onde se vê (e pensa ) o mundo?
Publicado em 10/09/2011
Berlim, 1989: a queda do muro foi vista por alguns, como o americano Francis Fukuyama, como um marco do fim da história em termos de conflitos ideológicos. O tempo se encarregou de mostrar que esse dia ainda está por vir |
Há cerca de duas décadas, o mundo testemunhou a implosão do socialismo de Estado encabeçado pela União Soviética. Mais do que isso, passou a viver num planeta que abandonava a bipolaridade das superpotências para caminhar na direção do sistema político-econômico sobrevivente. Sim, sobrevivente, pois para muitos a queda do modelo soviético levava consigo para o túmulo toda a ideologia que o cercava. Comunismo, socialismo, marxismo e todas as suas ramificações pareciam se haver evaporado do cenário geopolítico global, sumiço este que reduziria a pó a existência dos conflitos ideológicos. O mundo viveria sob a égide de um modelo hegemônico e, assim, decretava-se o fim das ideologias.
Desde então, análises ideológicas passaram a ser vistas como objeto de estudo exclusivamente de historiadores que olhavam para o passado na tentativa de caracterizar enfrentamentos de grupos com conjuntos de ideias antagônicas. O esmorecimento de um mundo marcado por ideologias acabou afetando uma instituição que sempre esteve intimamente ligada ao debate ideológico: a escola.
Recentemente, a promulgação de uma nova Lei de Educação na Venezuela inflamou a grita daqueles que se opõem a Hugo Chávez. Os pontos divulgados – o controle do Estado na seleção e supervisão de professores, a proibição de conteúdos que vão contra a soberania do país e algumas propostas amplas de princípios de responsabilidade social, solidariedade e comunhão entre escola, comunidade e família, entre outros – foram vistos como mais um golpe autoritário e totalmente deslocado dos rumos da educação no mundo contemporâneo.
Contudo, o discurso de que tensões ideológicas são obsoletas não deixa de ser também ideológico. Para Marcos Cassim, professor de sociologia da educação da USP de Ribeirão Preto, "ideologia é concepção de mundo e a educação faz parte dessa concepção de mundo; assim, toda a educação é ideológica". Ele explica a razão disso argumentando que "todas as sociedades constroem o homem a partir de sua concepção de ser humano. O homem se constitui humano e se constitui historicamente".
Na opinião de Sílvio Gallo, professor da Faculdade de Educação da Unicamp e autor do recente livro Subjetividade, ideologia e educação (Alínea, 2009), o problema começa na definição do próprio conceito de ideologia, que é visto de forma distinta por diferentes autores. "Temos essa ideia de ideologia dominante muito claramente em (Karl) Marx e em alguns autores marxistas", diz. Ele lembra que, para Marx, há a ideia de um falseamento da realidade por parte das classes dominantes que, ao impor seus valores, buscam fazer com que sejam vistos como únicos e legítimos, enquanto para outros autores, mesmo no campo marxista, como (Antonio) Gramsci e (Louis) Althusser (leia texto na página 51), a ideologia representa os interesses de uma determinada classe e não, necessariamente, um falseamento.
"Em Marx, há oposição entre ideologia e ciência. A classe dominante, para falsear, produz ideologia, a classe dominada, para se libertar, produz ciência", desenvolve Gallo. "Nos autores posteriores vamos ter a extensão do conceito de ideologia para dizer que toda a produção de conhecimento por uma determinada classe é ideologia, independentemente de ela ser um falseamento da realidade ou uma afirmação da realidade, dependendo dos interesses do grupo", completa.
Dermeval Saviani, professor emérito da Faculdade de Educação da Unicamp, ressalta que essa tentativa de evitar os conflitos de ideias fica evidente ainda no início da massificação da educação europeia: "a partir do momento em que a burguesia se consolida no poder, começa a adotar uma ideologia, no sentido de mascaramento da realidade, de naturalização da realidade como se a ordem burguesa fosse a ordem definitiva".
Gallo lembra que existe também uma outra conceituação na qual uma determinada ideologia social é produzida com a participação consciente ou inconsciente da sociedade como um todo, mesmo que ela atenda a determinadas prerrogativas ou desejos da classe dominante, mas com a aceitação da classe dominada, pois, se não houver reação, há, em algum nível, o consentimento.
Avaliações
Nos últimos anos, o esvaziamento do debate ideológico no campo educacional tem sido marcado pela associação direta da educação com o mercado de trabalho. Ainda que a formação de mão de obra seja uma das finalidades sociais da educação em qualquer regime político, no período recente a perspectiva utilitarista do espaço escolar ganhou muita força.
Entre os indicadores educacionais que podem ser apreciados, há hoje em dia muita ênfase naqueles que relacionam escolaridade com renda e empregabilidade. Assim, muitos dos investimentos em educação só são justificados quando garantem saldos significativos na produtividade e na renda.
Na avaliação de Saviani, a educação sofre a "determinação das exigências de mercado, que envolve a busca de resultados com o mínimo dispêndio. Os investimentos em educação estão subordinados à busca de resultados e os resultados são aferidos pelos indicadores de mercado".
Para medir os efeitos da educação na vida das pessoas e no funcionamento da sociedade, os anos de reforma do Estado democrático foram ricos na proliferação de sistemas de avaliação de escolas, professores e estudantes. No Brasil, por exemplo, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, a educação teve papel central e, dentro das políticas de universalização da Educação Básica, criaram-se mecanismos que buscavam de alguma forma mensurar a qualidade do ensino. Alvo de muitas críticas da oposição na época, tais políticas, com algumas mudanças pontuais, foram preservadas pelo governo Lula e, ainda que possam existir debates acerca das metodologias empregadas, as avaliações não são mais questionadas. De acordo com Odair Sass, psicólogo e professor do programa de educação da PUC-SP, as avaliações servem para "definir o que é funcional e o que é disfuncional para tentar consertar os problemas, mas não é colocado em questão o modelo de educação".
Fernando Veloso, economista e professor do Ibmec-RJ que co-organizou o livro Educação básica no Brasil: construindo o país do futuro (Campus, 2009), argumenta que "a mudança de política de avaliações não acontece apenas no Brasil, é uma tendência mundial, e eu não vejo ideologia nisso". Ele lembra que esse movimento começou nos Estados Unidos, e agora acontece em outros lugares "a ideia de que você tem de mensurar de alguma forma a qualidade da educação".
Veloso recorda que existiam no Brasil anteriormente vários indicadores de quantidade, como taxa de
frequência, de matrícula e índice de escolaridade, mas que não havia uma medida de qualidade como as que foram implantadas nas últimas duas décadas.
O professor do Ibmec-RJ cita o exemplo do que aconteceu nos Estados Unidos no período recente: "Em seu governo, Bush criou o No child left behind, um sistema de responsabilização, ou seja, você não só mede os resultados, mas responsabiliza as escolas pelo resultado. Isso não quer dizer culpar, mas saber qual é a contribuição da escola no contexto dela e estabelecer premiações e punições". O professor conta que, atualmente, "Obama, do partido adversário e com uma visão de mundo completamente diferente, deu um nome diferente para o programa, mas que, na essência, é muito parecido. Ele aprofundou e corrigiu alguns problemas do programa de Bush."
Veloso aponta que a nova administração está estabelecendo padrões mínimos de qualidade, pois lá os estados têm autonomia para fazer o sistema de avaliação e de responsabilização. "Alguns fizeram um programa bom e outros, um programa fraco." O economista complementa seu exemplo dizendo que esses sistemas não são ideológicos, pois o governo atual tem dado grande apoio às charter schools, que são escolas públicas com a gestão a cargo de organizações não governamentais ou mesmo do sistema privado, o que é visto em qualquer lugar do mundo como "atividade de mercado", diz ele.
"Não vejo ideologia nos Estados Unidos, mas sim a ideia de que você tem de mensurar e fazer o possível para melhorar", avalia. "E acho que no Brasil é igual: se pegarmos o governo Lula, talvez tirando os dois primeiros anos nos quais houve um desvio da atenção ao ensino básico que era dada no governo anterior mas que depois a retomou, no fundo, mesmo que ele não reconheça, o governo atual tem dado continuidade e aprofundado políticas adotadas no governo Fernando Henrique."
Veloso afirma que tais medidas são políticas de Estado, "o que não quer dizer que educadores e economistas concordem, mas acho que há um certo consenso de que qualquer política educacional bem feita tem de avaliar o resultado e usar essa avaliação para aprimorar". "É uma questão de princípio e não de ideologia", conclui.
José Leon Crochik, professor da Instituto de Psicologia da USP, também acredita que "estamos na era das grandes avaliações, não só no Brasil, mas em todo o mundo". E pondera que "isso é muito ruim quando se cria um ranking que torna a escola uma questão de mercado, mas, por outro lado, há uma preocupação com o índice de qualidade e com metas a serem perseguidas".
Escola e Estado
A determinação dos modelos de educação pelo Estado, ainda que seja para, na abordagem de certos espectros políticos, servir aos interesses privados, coloca nas mãos dos governos um importante instrumento ideológico. Em regimes despóticos, a ingerência do Estado é mais perceptível, mas ela não deixa de acontecer também em sistemas políticos democráticos.
Marcos Cassim problematiza que "se a escola não está sob a tutela do Estado, a sociedade não a reconhece, pois não há um certificado". "A escola não apenas produz o conhecimento, mas também o certifica."
Entretanto, ele enfatiza que se confunde educação com escola. "Escola é uma instituição do Estado e a educação é processo. A escola como aparelho do Estado é organizada de acordo com a visão desse Estado e das classes dominantes, mas no interior da escola acontecem processos diversos, às vezes não como afirmação, mas como negação", explica.
Para a professora da Faculdade de Educação da Universidade de Passo Fundo Rosimar Esquisani, é possível haver contraideologia em relação ao Estado. "No Rio Grande do Sul, temos a gestão democrática do ensino público que tem dado certo em muitas instituições de ensino", revela. A escolha de diretores, a descentralização administrativa e a participação da comunidade nas decisões da escola podem alimentar ideologias muitas vezes contrárias ao que é de interesse do Estado ou de grupos dominantes.
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Vale ainda ressaltar que muitas escolas hoje estão aparelhadas com redes de computadores e atendem a um alunado cada vez mais inserido em realidades tecnológicas que dividem espaço com conteúdos preparados pelo professor, com o material didático e com as diretrizes da escola. Ainda que a maior parte dos modelos educacionais se sustente na lógica livresca e do professor como guardião do conhecimento, os canais de consulta ao redor e dentro da escola são mais numerosos do que em outros tempos.
Sílvio Gallo acredita igualmente que a educação também pode produzir contraideologia o tempo todo, mesmo no espaço da escola. Ele observa que "na medida em que a educação é tratada como coisa pública, existe o lado importante do investimento do Estado na formação dos cidadãos e também o controle efetivo que o Estado exerce". Contudo, ressalta que "ao mesmo tempo que isso acontece, nós temos no âmbito das relações cotidianas da escola reações por parte dos professores, dos estudantes e do corpo diretivo. Não há uma assimilação direta e acrítica por parte desses indivíduos".
Para Gallo, nenhum modelo progride se não houver uma aceitação de todas as esferas envolvidas na educação, principalmente do docente. "O professor é o verdadeiro ator desse processo todo. Uma política educacional só acontece se o professor a assumir e a realizar."
Professores ideológicos
No cenário da educação brasileira é muito comum emergirem críticas a professores que expõem dentro da sala de aula suas afinidades ideológicas. Não são poucos os que defendem que a escola deve manter uma postura neutra e ensinar o que deve ser ensinado sem pender para discursos políticos. Mas será que a neutralidade na educação é atingível ou, até, desejável?
"O que vemos nessas críticas ao professor ideológico são pessoas de extrema-direita criticando professores de extrema-esquerda ou pessoas de extrema-esquerda criticando professores de extrema-direita", crê Sílvio Gallo. Para a sua colega da Faculdade de Educação da Unicamp Ana Lúcia Goulart de Faria, "todo conhecimento é engajado, seja para as coisas melhorarem para todos, seja para melhorarem só para alguns."
Já José Leon Crochik alerta que "quando a educação se pretende neutra, equidistante, como se fosse possível abrir mão de si mesma e assumir um lugar imaginário sobre todo o mundo, aí se esposa talvez uma das piores ideologias".
No ponto de vista de Odair Sass, as críticas aos "professores ideológicos" acontecem porque "a ideologia não é vista na própria sequência pedagógica", ou seja, nas políticas educacionais, no material didático, na infraestrutura da escola. "Ela é individualizada na figura do professor."
Marcos Cassim identifica a ideia de neutralidade na educação como uma herança do pensamento positivista. Para ele, mesmo que a escola não se envolva em questões políticas, principalmente de política partidária, é preciso pensar a política como a capacidade de contribuir nas decisões.
Saviani também descarta a possibilidade de uma educação em que a questão ideológica não esteja presente. "Não existe conhecimento desinteressado. A ideologia é um elemento integrante da vida humana. O homem age sobre a natureza para transformá-la no interesse de sua própria sobrevivência. Ele conhece para dominar, conhecimento é poder."
Gallo acrescenta um aspecto desse processo: a formação de docentes. "A gente não tem homogeneidade na formação de professores. Vemos muitas críticas à universidade pública dizendo que formam professores ideológicos, que elas não preparam tecnicamente o professor, mas sim politicamente. Mas será que faz sentido uma formação estritamente técnica do professor? Uma boa formação técnica não está desvinculada de uma boa formação política e vice-versa", reflete.
A discussão, entretanto, recai sobre a capacidade de mediar debates e tensões ideológicas dos professores que se formam. Crochik nota que "a formação dos professores de uma maneira geral é muito imediata, concreta, precária, pouco afeita ao raciocínio, à imaginação, àquilo que seria próprio de um homem formado".
Os problemas de preparo desses professores acabam colocando na sala de aula profissionais acríticos ou doutrinários, o que, evidentemente, não é nada vantajoso para qualquer modelo de educação que se pretenda plural. "Não sou favorável a defender doutrinas na escola, mas sim que se passem as ideias dos pensadores de cada doutrina. Sou partidário da leitura do movimento da sociedade e das contradições visíveis nela", revela Crochík.
E como ficam os estudantes nesse processo de enfrentamento ideológico? Disse certa vez o crítico literário e cultural galês Raymond Williams sobre o processo de alfabetização na Europa depois das revoluções burguesas: "não há como ensinar uma pessoa a ler a Bíblia sem também ensiná-la a ler a imprensa radical".
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