Alguns aspectos que vão além das "competências" na atuação docente
Publicado em 10/09/2011
O final do ano evocou em minha memória um rito típico da vida de professor do ensino básico: o conselho de classe. Reuníamo-nos com diários de classe, provas finais, anotações e algum bom humor. Havia uma professora de português que, a cada aprovação de um aluno com desempenho sofrível, bradava: "mais um analfabeto que jogo no mundo". Por vezes era um desempenho meramente medíocre e os colegas protestavam, mas ela insistia. Havia ainda a de matemática que era capaz de fornecer com precisão o número de exercícios que determinado aluno tinha deixado de entregar naquele ano, seu percentual de faltas, a média ponderada e o desvio padrão! Mas nunca lembrava o rosto ao qual correspondiam aqueles dados e pedia auxílio aos colegas para saber a quem se referiam as discussões. Havia Marcelo, de geografia, a lembrar que André era ótimo jogador de futebol e que podia continuar na escola, mesmo sem dominar trigonometria…
Nessas ocasiões, sentíamos, ainda que fôssemos incapazes de conceituá-lo, que uma boa escola é muito mais do que a mera reunião de professores individualmente competentes. Ser ‘infinito’ é uma propriedade do conjunto de números naturais que não está presente em nenhum de seus elementos individualmente considerados. Instituições sociais, como a escola, têm dinâmicas, qualidades, virtudes e defeitos próprios de seu caráter institucional. Não derivam direta ou exclusivamente dos indivíduos que as compõem. Vinculam-se à história e à imagem que construíram; ao tipo de relação que são capazes de criar no espaço ‘entre-os-homens’, à sua capacidade de comprometer-se com o futuro. Por isso, uma escola pode manter sua excelência apesar do fluxo incessante de profissionais. Ou decair a despeito de sua permanência.
Tudo isso parece soar como mera trivialidade. Mas tende a ser solenemente esquecido em quase todas as formulações de políticas públicas e diretrizes acerca da formação de professores. Nelas se concebe a boa – ou ‘sólida’ – formação de um professor como decorrente da posse de certas ‘competências’, técnicas e informações que seriam capazes de transformá-lo em um ‘indivíduo’ capaz de ensinar outros ‘indivíduos’. Como se a relação entre professor e aluno não fosse mediada por uma instituição com histórias, valores, princípios e práticas. Como se não fosse produto de uma cultura peculiar que carece de ser estudada e reconhecida. Não porque de seu conhecimento possamos derivar ‘técnicas’ infalíveis, mas porque em seu desenvolvimento podemos nos situar como agentes institucionais que a conservam na medida em que a renovam e recriam.
É essa imagem simplificada da tarefa docente que tem embalado os filmes ingênuos de Hollywood nos quais o bom professor é um herói isolado, moralmente ‘superior’ aos pobres ‘burocratas’ do ensino. E alimentado a indigência crítica de nossos intelectuais, que têm se alternado entre a adesão acrítica da visão tecnicista e sua rejeição romântica. Numa coisa ambos concordam: o bom professor é um indivíduo dotado de qualidades (como ser ‘crítico’, ‘reflexivo’ etc.) cuja posse dispensa o conhecimento e o compromisso institucional.
José Sérgio Fonseca de Carvalho
Doutor em filosofia da educação pela Feusp
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