NOTÍCIA
Processo e produto correm juntos no ensino de filosofia, que deve ter como elemento norteador a formulação de conceitos. É o que defendem os autores de obra voltada a docentes do ensino médio
Publicado em 10/09/2011
Sílvio Gallo e Renata Lima Aspis |
Defensores do ensino de filosofia no ensino médio, os professores Sílvio Gallo e Renata Lima Aspis creem que a obrigatoriedade do ensino da disciplina pode ter efeito benéfico em várias frentes, como na formação de novos docentes e na sofisticação do repertório linguístico dos alunos. Mas, sobretudo, alinhavam a trajetória que defendem em sua obra recém-lançada, Ensinar filosofia: um livro para professores: uma prática disciplinar calcada no pensar filosófico, mais do que num currículo que se atenha a determinados autores ou à história da filosofia.
Gallo, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), concebe a filosofia como uma "atividade de criação conceitual", um processo ("a criação no pensamento"), do qual resulta um produto ("o conceito"). E que, sendo assim, "não importa tanto que conceitos vamos ensinar, quando dizemos que o ensino de filosofia deve ser um convite ao processo de criação conceitual". Ao que Renata, professora de filosofia no ensino médio e doutoranda na Unicamp, acrescenta: "o que é necessário é a clareza quanto às coordenadas epistemológicas, filosóficas, educacionais e didáticas". Leia a seguir a entrevista concedida ao editor Rubem Barros.
Há quem defenda, como o sociólogo Simon Schwartzman, um currículo do ensino médio que se restrinja à matemática, línguas e às ciências. Ou seja, sem filosofia, sociologia etc. O que pensam disso?
Renata Lima Aspis: Tudo depende de como se enxerga a função da escola. Dependendo do momento histórico, as chamadas políticas públicas condicionam e levam essa função para determinada direção. Sou favorável a uma escola que ofereça, no primeiro ciclo da Educação Básica, uma enorme variedade de experiências aos alunos: artes (visuais, auditivas, plásticas, corporais etc.) artesanatos, culinária, ciências, matemática, atividades físicas individuais e grupais, jogos de raciocínio, fruição de obras de arte, agricultura, línguas, filosofia etc. Ou seja, um currículo eclético. No ensino médio, um currículo aberto às escolhas do aluno.
Sílvio Gallo: Um currículo assim reduzido significaria uma colonização absoluta do pensamento. Estaríamos a afirmar que só pensamos segundo os critérios das ciências exatas e das matemáticas, utilizando-nos das línguas para transmitir esse pensamento. Tiraríamos dos estudantes a possibilidade de descobrir outros campos de pensamento e outras formas de pensar, como aquelas que encontramos nas filosofias, nas artes, nas ciências humanas. Não defendo, em hipótese alguma, um currículo "inchado", cheio de conteúdos e informações, muitas vezes inúteis. A educação escolarizada deve ser um convite às várias formas de pensamento e, neste sentido, quanto mais diverso for o currículo, melhor.
Entre as três potências do pensamento (arte, ciência e filosofia), a escola parece cada vez mais privilegiar a ciência, ainda que o ensino, em especial no Brasil, tenha dificuldades para fazer o raciocínio científico prosperar. Por que o desequilíbrio?
SG: Penso que o desequilíbrio se deve à importância atribuída à ciência no mundo moderno. Não foi por acaso que o positivismo prosperou e inscreveu-se como lema em nossa bandeira. E os positivismos, com outras roupagens, permanecem vivos e ativos, mesmo que o tom hoje seja de crítica a eles. Esse predomínio da ciência em nossos currículos (e trata-se de um predomínio de certos conhecimentos científicos, não do modo de pensar científico) é um efeito destes positivismos. Assim, um currículo que abra espaço para as artes e as filosofias, bem como para as formas científicas de pensar, mais do que para os conteúdos, pode significar uma importante transformação.
Creem que essa tendência expressa está relacionada a uma desvalorização do espaço público, lugar de nascimento da filosofia?
RLA: O espaço público tal qual existia na época do nascimento da filosofia, como classicamente estudamos, morreu ali mesmo, já faz muito tempo. Não priorizar a filosofia e a arte na formação das crianças e jovens tem a ver com o pouco interesse na criação. Não é interessante para o capitalismo financeiro nas sociedades de controle que os jovens sejam formados para serem criadores de suas próprias ideias, de suas saídas, do mundo, de si mesmos, ou seja, da realidade. Quase tudo hoje funciona a partir dos mundos já criados, a partir apenas das possibilidades de reprodução já fechadas que encontramos. Cabe a nós encontrar saídas para essa situação na empreitada de resistir ao movimento de resumo da vida à sobrevivência. Cabe a nós, principalmente aos educadores, criar turbilhões que permitam insistir em existir, em re-existir. Penso que podemos, em certa medida, fazer provocações acerca dessa questão em um curso de filosofia.
Vocês defendem que a ideia de processo, de percurso do pensamento está mais afeita ao raciocínio filosófico que a definição de um conteúdo mínimo. Mesmo se optando por esse caminho, não é preciso criar algumas "amarras" para dar concretude ao percurso?
RLA: Não somos favoráveis às "amarras" que os professores pedem porque algo assim poderia comprometer a criação. O processo de ensino é vivo, dinâmico e deve estar sempre em mutação sem formas que o padronizem. O que é necessário, isto sim, é a clareza quanto às coordenadas epistemológicas, filosóficas, educacionais e didáticas que podem dar essa concretude ao percurso à qual você se refere. Se os professores se lançam a uma investigação filosófica sobre o ensino de filosofia de maneira a irem criando suas ideias e intenções de prática, é isso o que garante a possibilidade de cursos que não se reduzem a repetições mecânicas de fórmulas.
SG: Não penso que processo e produto possam ser separados, ao menos no caso da filosofia. Se a concebemos como uma atividade de criação conceitual, e assim afirmamos, ela é um processo (a criação no pensamento) e tem um produto (o conceito). O que defendemos em nosso livro é que não importa tanto que conceitos vamos ensinar, quando dizemos que o ensino de filosofia deva ser um convite ao processo de criação conceitual. Mas isto não significa dizer que não será ensinado conceito algum. Sim, são necessárias algumas amarras que deem concretude: essas amarras são justamente os conceitos. Um ensino de filosofia que não lide com conceitos é inconcebível. Mas, desde que lide com eles, não importa tanto quais sejam. Isso dá ao professor uma liberdade de cátedra desejável e necessária para a criação.
Em seu livro, vocês realçam três significados mais usados da palavra disciplina, os mais usados: o de regramento coletivo; o de campo específico do conhecimento; o de ensino, instrução. Mas a ideia de autodisciplina, como forma de organização interna do pensamento e de expansão das possibilidades individuais de pensar e conhecer não anda muito relegada a terceiro plano?
SG: De fato, o exercício da filosofia é o exercício de uma disciplina, ou mesmo de uma autodisciplina do pensamento. Se o pensamento se nutre criativamente do caos, ele é a imposição de uma ordem, de uma disciplina. Sob este aspecto, o ensino da filosofia contribui fortemente para o desenvolvimento de uma autodisciplina no pensamento.
Assim como no campo da sociologia, há poucos professores de filosofia formados para lecionar no ensino médio. Como combater essa lacuna e, ao mesmo tempo, oferecer um percurso filosófico consistente?
RLA: Sempre achei que o fato de não haver professores formados em filosofia em número suficiente para lecionar no ensino médio não deveria ser um empecilho para a sua volta como disciplina obrigatória na escola. Neste momento, as universidades vão ter de repensar a formação de professores na área, o que já está acontecendo. E isso é muito bom. Em médio prazo teremos um número muito maior de professores e mais bem formados. Enquanto isso, essa lacuna tem de ser preenchida com o esforço daquele que pretende dar aulas de filosofia. Há estados brasileiros e municípios investindo em algum tipo de capacitação para esses profissionais e há muito material sendo editado.
Assim como ocorre com a filosofia, também na sociologia vive-se um momento de perguntas sobre o que e como ensinar. Profissionais dos dois campos têm trocado experiências e impressões?
SG: Embora sejam duas disciplinas com práticas bastante distintas, sei de eventos conjuntos que já foram realizados. Mas penso que é importante que cada campo construa suas próprias experiências.
No Brasil e em diversos países, jovens com muitos anos de escolaridade têm séria dificuldade de compreensão de textos escritos. Até que ponto uma linguagem empobrecida bloqueia o pensamento filosófico?
SG: Talvez ninguém tenha explorado melhor que George Orwell, em 1984, os efeitos do empobrecimento da linguagem sobre o pensamento. Se queremos que uma população pense menos, reduzimos a riqueza de sua língua; em contraposição, se queremos mais experiências no pensamento, precisamos investir num enriquecimento da linguagem. Certamente as dificuldades de leitura dos jovens brasileiros são um problema para o ensino da filosofia. Mas, por outro lado, podemos também pensar que o ensino da filosofia significará um reforço no exercício da linguagem.
RLA: A falta de habilidade e autonomia com textos pode ser um problema bastante grave no ensino de filosofia, já que a filosofia é fundamentalmente discurso. Na medida do possível, os professores de filosofia podem tentar uma parceria com os professores da área de línguas. Nas aulas de filosofia, especificamente, os docentes podem tentar ler alto para os alunos fragmentos de textos da tradição. Pode-se ler ainda uma segunda vez, parando, fazendo comentários e respondendo às questões dos alunos. Já fiz isso muitas vezes em situações em que os alunos não tinham problemas com textos na língua portuguesa, mas não tinham experiência na leitura de textos filosóficos. Certamente, o professor lerá Platão ou Nietzsche ou qualquer outro com uma ênfase e entonação esclarecedoras.
Quais as grandes diferenças entre a linguagem escrita e a audiovisual na formulação de conceitos? Discursos preponderantemente imagéticos podem representar formas de pensamento filosófico?
SG: Os conceitos possuem sua linguagem própria, que nem é exclusivamente escrita nem exclusivamente visual. Como a produção de conceitos se faz de forma imanente, a partir de uma multiplicidade de elementos (a construção de um conceito é justamente a combinação de uma série de elementos a partir de um problema) quanto mais linguagens diversas tivermos no exercício do ensino da filosofia, mais elementos teremos à disposição para a construção dos conceitos.