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O gato que gostava de cenouras

Coisas que nem a religião nem a educação podem modificar

Publicado em 10/09/2011

por Rubem Alves

O telefone tocou. Queriam uma entrevista sobre o livro O gato que gostava de cenouras. Não entendi o nome da revista, estou ficando meio surdo. Por vergonha, não pedi que repetissem. A entrevista  começou…

Gato gosta de peixe, de rato, de passarinho. Não gosta de cenoura. Numa terra de gatos, um gato que gostasse de cenoura seria uma aberração, vergonha para os pais, motivo de chacota e zombaria na escola…

O nome dele era Gulliver. Gullinho. Seus pais não sabiam do seu gosto por cenouras. Comê-las era um ato secreto. Seus pais só se preocupavam com o fato de que ele não comia os deliciosos ratinhos recém-nascidos, os pardais saborosos, os peixes cheirosos que lhe traziam. Gullinho era diferente. E isso fazia seus pais sofrerem, porque o que os pais mais desejam é que seus filhos sejam iguais aos outros.

O fato era que os pais de Gullinho ignoravam que ele, escondido, comia a comida proibida. A mãe acabou por desconfiar das incursões secretas do Gullinho e disse ao pai que seria melhor segui-lo para ver onde ele estava se metendo. Foi o que o pai "sogateiramente" fez. Gullinho caminhava com cuidado olhando para todos os lados para ver se estava sendo seguido. Andou até chegar ao sítio do senhor Joaquim. Havia canteiros com todos os tipos de hortaliça. Foi até o canteiro de cenouras e – oh! Coisa horrenda para um pai gato – começou a comer cenouras.O pai quase morreu de susto. O filho, que ele sonhara tigre, não passava de coelho. E chorou amargamente…

Foi procurar auxílio. Um padre  ameaçou Gullinho com o Inferno. "Deus é gato, Deus ordenou que comêssemos peixes, ratos e passarinhos. Comer cenoura é pecado mortal!" Não adiantou. Gullinho continuou a vomitar peixes, ratos e passarinhos…

Levaram-no ao psicanalista. A análise durou vários anos. Mas o que o Doutor Gatan lhe dizia com linguagem complicada não alterava o seu gosto: continuava a gostar de cenouras…
Foi então que um professor da escola entendeu o drama de Gulinho. Chamou-o para uma conversa: "Nosso destino está escrito nas células do nosso corpo num "chip" pequeno chamado DNA. Esse "chip" já está no feto. Determina a cor do seu pelo, dos seus olhos, se você vai ser menino ou menina, daltônico ou não, canhoto ou destro. Você nada pode fazer para  mudar as ordens que estão no seu "chip". E acontece o mesmo com o nosso gosto por ratos ou por cenouras…Não é pecado como o padre disse porque foi o DNA que o fez assim… Não é resultado de educação e nem pode ser curado, como se fosse uma doença, porque é o DNA que o fez assim… Igual ao daltonismo.

Gullinho olhou em silêncio para o professor e pela primeira vez entendeu tudo. Sentiu que um enorme peso fora tirado de cima dele. Entendeu então que ele podia gostar de cenoura porque fora o DNA que o fizera assim –  e ninguém tinha nada com isso.

Ainda estava na cama quando minha filha me acordou.
"Pai, você apareceu na "G-Magazine, a reportagem do gato…"
Tive de  reconhecer a minha ignorância literária.

"Mas o que é ‘G-Magazine?", perguntei.  Ela me disse. Entendi então o assunto da entrevista…


Rubem Alves


Educador e escritor



rubem_alves@uol.com.br

Autor

Rubem Alves


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