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Meu uai-cai

Anotações sobre o fim do mundo

Publicado em 10/09/2011

por Rubem Alves

Alguns dos meus livros estão espandongados: lombadas descoladas, folhas soltas, outras rasgadas. Estão assim pelas muitas vezes que com eles fiz amor repetido e furioso. Outros livros estão perfeitos. Nunca desejei fazer amor com eles. De todos os meus livros os que mais amo e que, por isso mesmo, estão em pior estado, são as obras de Nietzsche. Quando o li pela primeira vez, espantei-me e disse: "esse homem passeia por lugares da minha alma que não conheço!". Hoje é meu companheiro.

Ele escreveu em alemão. Mas o meu alemão é capenga. Tenho de usar o dicionário como bengala. Com isso perco o essencial: a música da sua escritura. Por isso valho-me das maravilhosas traduções de Walter Kaufmann para o inglês. Para traduzir Nietzsche não basta saber alemão – é preciso ser poeta.

Agora, na velhice, minha grande preocupação é o fim do mundo. A Terra está morrendo. Os cientistas já fazem cálculos acerca dos poucos anos que lhe restam. Convivo bem com a ideia da minha morte. Mas a ideia da morte da Terra é insuportável. Até já escrevi um "uai-cai". "Uai-cai" é o jeito mineiro de fazer hai-cais. "Uai", para expressar o assombro ante a vida. E "cai" para exprimir a tristeza de ver cair o que estava lá no alto. Meu uai-cai é assim: "o último sabiá canta seu canto…/Que pena!/Já não há ninguém para ouvi-lo…".

Relendo a A ciência alegre de Nietzsche reencontrei-me com o seu texto mais famoso, aquele em que ele diz que "Deus morreu". E de repente, à medida que eu o degustava antropofagicamente, o texto foi se apossando de mim, como se fosse vinho. Fiquei meio bêbado. E, na minha embriaguez, eu troquei palavras: onde ele escreveu "Deus" eu escrevi "Terra". O texto ficou assim:

A cena: um louco grita numa praça. Dirige-se àqueles que ali estão. Eles riem e zombam dele. "O que aconteceu com a nossa Terra?", gritou. "Nós a matamos – vocês e eu. Todos nós somos seus assassinos. Mas como é que fizemos isso? Como é que fomos capazes de beber os rios e comer as florestas? Quem nos deu a esponja  para apagar os horizontes do futuro? O que fizemos quando partimos a corrente que ligava a Terra à Vida? Para onde ela irá? Vagará  pelo Nada infinito? Esse hálito que sentimos não é o hálito da morte? E esse calor! Os gelos estão se derretendo. Já se vê o cume negro do Kilimanjaro, outrora vestido com a brancura da  neve. O mar subirá.  O  sol está mais quente e mortífero. Temos de nos proteger contra os seus raios. E esse barulho que ouvimos em todos os lugares – o ruído das fábricas, o barulho das bolsas de valores – não será, porventura, o barulho dos coveiros que a enterram?  O ar que respiramos é o ar da decomposição. A Terra está morta. Nós a matamos. Como poderemos nós, os assassinos da Terra, nos confortar a nós mesmos? A Terra, extensão dos nossos corpos, a mais sagrada,  sangrou até a morte sob nossos punhais… Quem nos limpará desse sangue?". Naquele mesmo dia, o louco entrou em várias bolsas de valores, bancos e indústrias e lá cantou o "Réquiem para a Terra Morta". A cada vez que tinha de se explicar, ele dizia a mesma coisa: "que são esses templos do progresso se não os sepulcros da  Terra?"


Rubem Alves

Educador e escritor

rubem_alves@uol.com.br

Autor

Rubem Alves


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