Na região mais pobre do estado mais rico da nação, os problemas da educação no campo se parecem com os do resto do país
Publicado em 10/09/2011
Alunos do bairro Praia Grande a caminho da escola em Iporanga |
O sol bate forte no rio Ribeira do Iguape. São quase onze horas da manhã. O barco motorizado de Ubiritã Castelo Branco, o Bira, corre em alta velocidade até uma casa localizada no topo de uma das margens. "Os alunos! Não vão pra escola?", ele grita. Alguém responde da casa, e Bira segue viagem dizendo que as três crianças não iriam à escola porque estavam com catapora. É a segunda vez no dia que o piloto percorre o caminho entre a comunidade quilombola Praia Grande e o Porto da Figueira – trajeto que dura quase 20 minutos. Cinco horas antes, Bira havia levado sete alunos ao porto. Lá, eles encontraram Jucemar dos Santos, motorista da van escolar que percorreu, durante 40 minutos, a estrada de terra que os levou à cidade.
A comunidade quilombola Praia Grande, habitada por 26 famílias, está localizada no município de Iporanga, no Vale do Ribeira, quase na divisa com o Paraná. Além dela, há outras três reconhecidas pela Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp): Pilões, Maria Rosa e Nhunguara. A região do Vale do Ribeira, que congrega 23 municípios, é uma das mais carentes do estado. Em 2000, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Iporanga era de 0,69, valor bem inferior à média do Estado de São Paulo no mesmo período (0,814). Cidades próximas, como Registro, também possuem IDH maior: 0,77. A renda per capita em Iporanga fica abaixo da média estadual: 0,9 contra 2,92 salários mínimos.
A rede municipal de Iporanga conta com 11 escolas, sete delas localizadas em bairros afastados. Atende 745 alunos e emprega 63 professores, a maioria deles com formação em magistério, curso normal superior e pós-graduação lato sensu em Educação Especial ou Letramento, oferecida há três anos pela Secretaria Municipal de Educação, em convênio com a União de Ensino do Sudoeste do Paraná (Unisep). Recentemente, a rede passou por três grandes transformações. Uma delas é a vinda dos alunos que moram em Praia Grande, Andorinhas e Betari à cidade. Desde o começo de 2010, eles passaram a frequentar a Emef Nascimento Satiro da Silva, no centro da cidade. A escola que funcionava dentro da comunidade de Praia Grande foi fechada porque, de acordo com a secretaria municipal, era difícil encontrar professores que aceitassem ficar pela região para lecionar. No caso de Betari, a distância entre o bairro e o centro foi considerada pequena pela secretaria (6 km). "O transporte passava na porta da casa dos alunos", explica a secretária Rosimara Aedil Alves Fonseca. Além disso, o órgão identificou atraso na aprendizagem nos alunos dessas localidades. Segundo Rosimara, havia estudantes na 4ª série que não reconheciam as letras do alfabeto. Hoje, esses alunos estudam em período integral na Emef durante três dias da semana – a ação faz parte do projeto Prazer em aprender, cujo objetivo é integrar as crianças à nova escola.
Esse processo não é fácil. Tereza Ribeiro é avó de três crianças que saem todos os dias de Praia Grande para a cidade. Batizados com nomes de jogadores de futebol, o trio Raí, Ronaldo e Ruan (grafado assim mesmo, de acordo a sonoridade do nome) é motivo de preocupação tanto para a avó quanto para a mãe, Shirley. "Quando o rio enche, a água sobe pelo barranco todo. Ficamos preocupadas", relata Tereza. Além disso, a família, cuja renda mensal gira em torno de R$ 260, precisa lidar com os problemas de socialização dos meninos. "As pessoas ficam reparando se as crianças não vão vestidinhas, né? Eu me sinto mal. Daí, tenho de gastar do meu dinheiro pra comprar roupa", conta a avó.
Multisseriadas
No mesmo período, a secretaria municipal também intensificou o agrupamento de turmas de educação infantil e ensino fundamental em uma mesma sala. "Outros municípios do Vale do Ribeira, como Eldorado, Apiaí e Barra do Turvo, aglutinaram escolas, mas não salas. Nesses lugares, a média de alunos por sala é de 28. Somos os únicos que juntamos salas, e isso porque não há como pagar um professor para dar aula para um ou dois alunos", explica Rosimara. Segundo a secretária, foram gastos 78% da verba do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) com folha de pagamento.
A Emef Bairro Poço Grande, localizada no bairro de Jurumirim, foi uma das escolas em que o processo de aglutinação aconteceu. No ano passado, contava com duas professoras: no período da manhã, eram atendidas as crianças de 1ª a 4ª séries e, à tarde, vinham as crianças de educação infantil. Hoje, a professora Priscila Aparecida de Paula leciona para alunos da pré-escola, da 2a, 3a e 5a séries do ensino fundamental. "Dou aula me dividindo em sete. Às vezes faço assim: minha prioridade na segunda é o pré. Cada dia, dedico a uma série", conta. No dia a dia, a professora já se flagrou cantando "A galinha do vizinho bota ovo…" e, ao mesmo tempo, explicando multiplicação para a 3ª série e perímetro para a 4ª série. "Até a tolerância entre as crianças é mais difícil. Os maiores não entendem por que os menores pedem atenção o tempo todo", diz.
Segundo os professores ouvidos pela reportagem, o trabalho com as salas multisseriadas ficou mais difícil há dois anos, quando o sistema de ensino Objetivo foi implantado na rede. Sem questionar a qualidade do material (muitos o consideram ótimo), os docentes reclamam da falta de adequação das apostilas à realidade das salas que abarcam diversos níveis. Também gostariam que seu conteúdo contemplasse mais a realidade rural. Eles chegaram até a contatar o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp). De acordo com os docentes, a entidade acompanha o debate sobre a inserção dos apostilados.
O trabalho de Priscila em sala de aula, por exemplo, envolve quatro apostilas, com conteúdos diferentes e sem articulação entre si. "Se ao menos eles tivessem tentado fazer uma apostila com conteúdo casado…,por exemplo, 3ª e 4ª série com o mesmo conteúdo, mas com nível de dificuldade apropriado a cada série.", reflete, em tom de sugestão. Priscila reconhece que as multisseriadas são necessárias – "sabemos que quando a escola é mais longe, não há como transportar" – mas considera que a mistura de educação infantil com ensino fundamental e o uso da apostila são empecilhos ao seu trabalho.
Rosimara, secretária de Educação, explica que a implantação do sistema de ensino está relacionada ao projeto de melhoria da qualidade da educação no município. Após detectar que o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) estava abaixo do esperado, ela expôs ao prefeito os casos de Apiaí e Capão Bonito, cidades vizinhas que adotaram os apostilados e registraram melhorias. O prefeito decidiu, então, adotar o Objetivo. "Está começando a surtir efeito agora. Temos uma minoria que reclama, mas nem é tanto por questão do material, é mais questão política", diz. De fato, o Ideb da 4ª série do ensino fundamental aumentou entre 2005 e 2009: passou de 4,8 para 5,2. O Ideb nacional para a mesma série nas redes municipais está abaixo do alcançado por Iporanga em 2009: 4,4.
Com vestimenta quilombola, aluna assiste à aula descalça |
Marilda, merendeira, na porta da cozinha onde trabalha |
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Escola fechada no bairro de Praia Grande |
Estrada que leva à Emef Bairro Bento João |
Na mesma sala, alunos do pré e do ensino fundamental |
Particularidades
Não muito longe dali, na Emeief José Maciel da Silva Castelhanos, os professores identificam os mesmos problemas com o sistema apostilado. Naquela escola, há agrupamento de salas com duas séries (pré e 1ª série do ensino fundamental, 2ª e 3ª série e assim por diante). De acordo com eles, a apostila muitas vezes exige material diferenciado, que o aluno não tem. É o caso das tarefas que pedem pesquisa na internet – há crianças que moram em bairros nos quais a luz elétrica não existe. Além disso, os docentes se sentem incomodados com a pressão em terminar a apostila bimestralmente.
"Você acaba não trabalhando de acordo com a necessidade do aluno", aponta Edvalda Ursulina da Silva, que leciona para uma turma de 1ª e 2ª série. A filha de Eloir Camargo de Andrade, professor de matemática do segundo ciclo do ensino fundamental na mesma escola, estuda na sala de Edvalda. "Vejo que a professora tem de correr para atender os mais fracos, e aqueles que querem decolar não vão. O momento não chega", afirma.
A secretaria municipal de Educação afirma que o Objetivo oferece treinamento bimestral para que os professores das salas multisseriadas consigam lidar com as dificuldades que encontram. "Eles trabalham com a sequência didática em multisseriadas, sugerem como abordar os assuntos", diz Rosimara. Ela afirma que a maioria dos professores ("90% deles") diz que gostou do material porque ele exige muito. "É o que chega para nós", aponta. Para o professor Paulo Sergio Furquim, que leciona para a 4ª série da Emef Vitor Rodrigues da Mota, no bairro Serra, o quadro é outro. "Não é o que a gente ouve nas reuniões de capacitação", diz. Considerado líder pelos colegas no processo de discussão sobre as apostilas, ele registra apenas um encontro com a equipe do Objetivo tendo como finalidade abordar a questão das multisseriadas. "Tem, sim, reunião bimestral, mas não com esse foco", relata.
Paulo lembra que o questionamento sobre o sistema apostilado não está relacionado com a sua qualidade. Para ele, um município como Iporanga, que ainda padece com a falta de recursos materiais, deveria ter outras prioridades. A Emeief José Maciel da Silva Castelhanos, por exemplo, é construída em placa de cimento e coberta com tela de amianto. "Quando faz calor, ninguém entra ali", conta. A professora Edvalda lembra de outra carência: não há biblioteca escolar nas escolas de zona rural. "Os livros que os meus alunos leem são os que eu compro e levo para sala de aula. Agora a secretaria comprou algumas coleções que circulam pelas escolas. É como se a apostila fosse dar conta de tudo isso", aponta.
Além da ausência de bibliotecas escolares nas escolas da zona rural, há dias em que mesmo a chegada da merenda a essas regiões mais afastadas da cidade é tarefa complicada. A secretária Rosimara relata um esquema planejado para que a merenda alcance quinzenalmente a Emeief Bairro Bombas, onde só é possível chegar depois de caminhar três horas por um barro que mais lembra um pântano. "A gente chega até um pedaço. Pagamos alguém da comunidade para que a merenda chegue à escola", diz. Para chegar à Emef Bairro Bento João, localizada perto das comunidades quilombolas Pilões e Maria Rosa, em um dia de chuva, é preciso passar por uma balsa e uma estrada de terra escorregadia ao extremo, trajeto que dura meia hora. A merendeira Marilda conta que quando o tempo está assim, o professor acaba buscando os alimentos na cidade antes de chegar à escola. Isoladas na imensidão verde do que restou da Mata Atlântica, essas escolas dependem dos serviços de figuras caricatas da comunidade, como o barqueiro Bira, o motorista Jucemar e tantos outros anônimos.
Uma biblioteca adaptada |
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No caminho para Iporanga, no km 80 da rodovia SP 165, fica a Emef José Matheus de França. Ligada ao município Estância Turística de Eldorado, a escola chama atenção por uma pequena construção ao fundo de suas instalações, que traz uma placa com o seguinte nome: Biblioteca. Os pedreiros que trabalharam na recente reforma do prédio escolar construíram um depósito para cimento e outros materiais. Assim que o processo se concluiu, a ideia era destruir o depósito. Mas isso não aconteceu. "De um quartinho que não tinha serventia nenhuma… não tem energia elétrica, nem piso, nada, construímos a biblioteca. O importante é a leitura", relata a diretora Haydee Macedo. Nos dias de verão, quando fica difícil usar o quartinho por conta do calor, os alunos usam um carrinho de supermercado que foi reformado pela diretora para levar os livros para cá e para lá. "Não precisa de uma estrutura chique, com ar-condicionado. A criança vem aqui no carrinho, pega um livro e vai pra debaixo da árvore. É a realidade deles", diz. |