Dizer o essencial se compara à poda de uma árvore: aparar o excesso é sempre revigorante
Publicado em 10/09/2011
Escrever é cortar, disse um escritor que sabia do que falava. Isso assusta principiantes, a quem o difícil é produzir algo. Sofrem do problema de Kafka: "Quando finalmente consigo colocar uma palavra no papel, não tenho senão esta, e todo o esforço recomeça". Esse problema, contudo, só afeta metade da população. A outra metade é uma cachoeira ininterrupta de texto que se derrama sobre a página como uma comporta de Itaipu despejando um bilhão de litros de tinta por minuto e sem ter a menor noção de como chegar a um ponto final ou, quando o consegue, sem saber como voltar e reduzir essa extensão inesgotável de texto para atender aos telefonemas impacientes do editor que lhe faz a pior das ameaças: "Se não cortar, eu mesmo corto".
Aliás, poderíamos reescrever assim este último trecho:
"A outra metade é uma comporta de Itaipu despejando um bilhão de litros de tinta por minuto, incapaz de fazer ponto final ou de cortar algo, mesmo quando o editor ameaça: – Se não cortar, eu mesmo corto".
Caímos de 78 palavras para 38, e o essencial foi dito.
Procura
A primeira versão de um texto pode ser cortada sem perda de substância, porque a substância, o que o autor quer dizer, nem sempre está claro em sua mente no primeiro momento da redação. Todo mundo escreve procurando. Escreve reproduzindo com palavras uma série de impulsos mentais desencontrados. Ninguém concebe uma frase pronta, definitiva, reluzente, intocável. Frases desse tipo geralmente levam quinze minutos de poda e polimento. No máximo, podemos imaginar que o autor pensou, pensou, e quando se sentou para escrever já escreveu a frase definitiva; mas a poda e o polimento existiram do mesmo jeito.
A maioria das pessoas escreve de improviso, ou seja, vai verbalizando as ideias à medida que elas lhe ocorrem. Escrevem, como se dizia, "ao correr da pena". Nossas ideias, principalmente as ficcionais, nem sempre nos surgem sob a forma de palavras específicas. É mais comum que nos surjam como fragmentos de situações narrativas, cenas semivisualizadas, vontade de dizer certas coisas, de registrar emoções, narrar vislumbres de coisas não acontecidas… Sabemos mais ou menos o que deve acontecer, sentamos diante do teclado e o resto é improviso. Como esperar que desse improviso já brotem as melhores frases? Após o esforço inicial de trazer as coisas para o papel, começa outro esforço para tornar essas coisas mais parecidas com o que tínhamos em mente de início. Quando não sabemos o que estamos pensando, escrevemos pouco, as palavras pingam de uma em uma. Quando sabemos demais, não há dedos nem teclas que bastem. Já temos tudo pronto na mente mas é preciso cumprir essa tarefa exasperante de digitar as letras de uma em uma!
Começo
O que cortar? Uma das primeiras coisas é cortar aqueles fragmentos do discurso que não dizem nada mas que nos ajudam a manter o fluxo verbal. Coisas como "Para não falar de….", "antes de mais nada…", "acima de tudo…", "não é preciso dizer que…", "é interessante notar que…". Para que serve isto? Para o mesmo que serve o nosso "hããã…" ou "humm…" quando estamos respondendo algo em voz alta: para emitir diante do interlocutor uma falsa verbalização enquanto a verbalização verdadeira está sendo processada em outro setor da mente. Serve para dizer algo como "calma, não parei de falar, a vez ainda é minha, daqui a pouco direi algo que faz sentido".
E as enumerações? Quando enumeramos, tendemos a sair enfileirando detalhes, minúcias, fragmentos, exemplos, imagens, aspectos, até que um abençoado "etc." estanca a hemorragia. Mais outra: sinônimos. É muito comum a gente escrever algo como:
"Precisamos de uma sociedade mais justa, mais humana, mais equilibrada, mais democrática, mais sadia, mais igualitária…".
Tipos de texto
Estamos procurando a palavra que exprime melhor nosso sentimento, e fazemos uma lista dessas palavras no correr do texto. O momento de achar essa palavra é depois, na revisão; e cortar o restante.
Num artigo de ideias é bom chegar a uma prosa enxuta, com variedade de ideias, não de vocabulário. Uma prosa que diga as coisas com precisão, e, quando elas têm de ser imprecisas, que sejam ditas com uma imprecisão deliberada. No caso de textos literários, o momento de cortar é também um momento de saber que tipo de efeito queremos produzir.
O texto literário nem sempre procura a limpidez. Às vezes queremos exprimir (por meio de um personagem ou narrador) uma maneira de dizer as coisas que é turva, ou prolixa, ou incoerente. Tudo bem, contanto que, ao sairmos do âmbito do personagem, essas qualidades fiquem lá com ele.
Já vi muitos autores dizerem que sentem pena de cortar os próprios textos; me identifico com os que cortam com prazer. São dois prazeres sucessivos: o de derramar no papel tudo a que temos direito, e depois o de tirar tudo que não serve mais. São como o prazer de jogar futebol na lama e depois tomar um bom banho. Um texto não é uma pintura a óleo onde o que não nos agrada pode ser coberto com novas camadas. Melhor vê-lo como um jardim. Os trechos que estamos cortando são coisas que vão comprometer o que queremos para esse jardim, seja o rigor ou a espontaneidade, seja a harmonia ou o contraste. Cortar é também uma forma de criar. Na escrita, o começo do processo parece com a pintura; o final parece com a escultura.
Sugiro ao leitor interessado neste tema que procure edições antigas de Tutaméia e de Sagarana, de Guimarães Rosa, pela Editora José Olympio, ou a edição das Sete noites de Jorge Luís Borges pela Max Limonad, para ver reproduções em fac-símile dos manuscritos originais, mostrando os numerosos cortes, consertos e remendos de dois escritores que sabiam dar peso e função a cada palavra.
Braulio Tavares
é compositor, autor de Contando Histórias em Versos (Editora 34, 2005).
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