Pluralidade, liberdade e experiência comum
Publicado em 10/09/2011
A primeira escola que frequentei, o Externato São José, situava-se num bairro periférico de São Paulo, habitado por gente simples que reproduzia em suas casas um modo de vida que se assemelhava àquele de suas raízes rurais. Tínhamos hortas e criávamos galinhas em nossos quintais; havia quermesse nas festas juninas, carnaval de rua. Mas havia também uma certa aspiração à urbanidade, a um modo de vida distinto daquele em que estávamos inseridos; capaz de dar acesso a novas experiências simbólicas, a outras oportunidades profissionais. Era a escola que minha mãe, décadas antes, havia frequentado por quatro anos e na qual minhas irmãs e meu irmão também haviam iniciado seus estudos.
Em acordo com os costumes então vigentes, meu pai decidira que as meninas lá deviam permanecer, enquanto a mim e a meu irmão estava destinado o exame de admissão na renomada escola pública do bairro: o Colégio Estadual Infante Dom Henrique. Lembro da admiração que nutria pela jaqueta que compunha o uniforme: amarela com grandes caravelas bordadas às costas. Portá-la era sinal de distinção no bairro. Mas, a despeito do arrebatamento estético provocado por esse detalhe do uniforme – que, aliás, a mim nunca foi concedido – a notícia de que eu deveria abandonar o São José em favor do Infante me encheu de temor e tristeza. Havia me afeiçoado muito à professora que me acompanhara nos dois últimos anos do então ensino primário; as rotinas daquela instituição que quatro anos antes me assustaram, já me eram familiares e mesmo queridas. Senti a mudança como uma ameaça.
Não me lembro com precisão quando o Infante tornou-se a minha escola, a partir de quando a sensação de pertencimento superou o medo da mudança. Sei que já na 6ª série tinha amigos que então acreditava seriam inseparáveis, interessava-me pelas novas modalidades de esporte com os quais tivera contato, olhava com espanto e interesse os colegas mais velhos que ouviam um tal de Chico Buarque, as meninas de roupas e gestos que me pareciam ousados e provocantes. Passei a ter amigos negros, como o Celé, companheiros pobres que moravam em favelas, como o Gerson, a conviver com pessoas de diferentes credos religiosos ou com colegas engajados na luta política, como o Zé Flávio.
Hoje, ao evocar aqueles anos, compreendo a transformação que em mim se operava. O Infante foi minha primeira experiência em uma instituição pública que, ao acolher a pluralidade de formas de viver e de conceber o mundo, fazia da liberdade uma experiência vivida em comum; não uma sensação a ser experimentada no interior de um indivíduo isolado. Já não era mais o prolongamento dos laços privados que, por contingências do destino, me ligavam à minha família. Era um vestíbulo para a complexidade do mundo público, para a riqueza de seus conflitos, para o desafio de suas lutas. O Infante tornou-se, então, a minha escola. E até hoje o é.
A cada dois anos atravesso os mais de vinte quilômetros que hoje o separam de minha casa para votar na mesma sala em que estudei quando era aluno da 6ª série. Olho com estranhamento e familiaridade os seus corredores, a cantina, o pequeno espelho d’água no centro de seu pátio. Pergunto-me onde estará o Lopes, rapaz de origem humilde que nos encheu de orgulho ao entrar numa faculdade de medicina; o que foi feito do doce e lânguido Manezinho, que preferia o boteco às aulas de química. E lamento por todos aqueles que foram privados da oportunidade de fazer de uma escola pública a sua escola.
José Sérgio Fonseca de Carvalho
Doutor em filosofia da educação pela Feusp
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