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Otávio na Livraria Cultura, em São Paulo |
Otávio Júnior, 27 anos, aprecia pequenas coisas. Ainda menino, foi ensinado pelos pais a agradecer a quem o ajuda. Não fosse essa instrução, não teria voltado ao Terminal Rodoviário do Tietê em 2003 somente para agradecer ao funcionário de um quiosque de lanches que lhe ofereceu comida num dia em que a fome era grande, e o dinheiro, pouco.
Mas Otávio também é uma pessoa de grandes sonhos: seu objetivo atual é transformar o Complexo do Alemão, comunidade carioca em que vive, na maior biblioteca a céu aberto do mundo. “É uma obsessão”, confessa. Otávio publicou recentemente o livro
O livreiro do Alemão , um relato de sua vida. O primeiro livro que leu, ainda com 9 anos, foi encontrado em um depósito de lixo no entorno de um campo de futebol. Enquanto os amigos brigavam para pegar brinquedos, ele conseguiu alcançar um exemplar antigo de
Don Gatón . “Era a história de um cachorro que corria atrás de um gato em uma casa enorme. Aquilo me fez pensar sobre a minha casa, que era um quarto, uma sala e um banheiro”, conta.
O contato com a leitura estava apenas começando. Otávio passou a frequentar bibliotecas municipais após as aulas para ler livros infantojuvenis. Em suas próprias palavras, virou um “rato de biblioteca”. De tanto variar a biblioteca (e, consequentemente, o bairro), passou a conhecer melhor o Rio de Janeiro. O interesse pela literatura aumentou também por influência da professora Maria Luzia Cunha, com quem estudou na 2ª série do ensino fundamental. Além de oferecer livros para que seus alunos levassem para casa, Maria Luzia os estimulava a conhecer bibliotecas e a discutir o que liam. “Muitos professores não têm paixão pelos livros. Como vão fomentar leitura sem ter experiência como leitores?”, questiona.
Entre seus escritores favoritos estão João Paulo Paes (
Ri melhor quem ri primeiro ), Roald Dahl (
A fantástica fábrica de chocolate ), Tatiana Belinky, Ricardo Azevedo (
Manual do Folclore e Aviãozinho de papel ) e Edith Derdyk (
Colecionador de palavras ) – todos foram citados durante um passeio pela Livraria Cultura, em São Paulo, durante o qual Otávio apontou os livros pelos quais tem mais apreço.
De leitor a escritor Em uma das tardes que passou em bibliotecas, Otávio teve uma ideia: se gostava tanto de ler, por que não poderia escrever? “Acabei recebendo vários nãos de editoras. Hoje entendo que não tinha preparo nenhum, porque estava iniciando uma carreira como leitor”, conta. Seu primeiro título –
As aventuras do pássaro mágico e outras histórias – foi impresso e financiado por uma gráfica em 2003, já que nenhuma editora se dispôs a publicá-lo na época. Paralelamente, ele iniciou uma “carreira” também no teatro. Aos 16 anos, começou a montar suas próprias peças, que eram encenadas em escolas do bairro. Envolveu-se tanto com a nova tarefa que acabou deixando a escola. “Minha mãe quis me esganar (…) A educação informal tem um papel muito importante nas comunidades. Os alunos mais contestadores, mais criativos, acabam largando a escola, que ainda tem baixa qualidade de ensino”, escreve em seu livro. Em 2004, o escritor voltou à escola para terminar o ensino médio, o que aconteceu dois anos depois. “Quando me afastei queria concluir outras etapas da minha formação. Voltei porque senti falta da educação formal e porque precisava de um diploma para entrar em uma universidade”, justifica.
A publicação de seu primeiro livro fez com que ele procurasse feiras literárias, como a Feira Literária de Paraty (Flip) e a 1ª Feira do Livro Infantojuvenil, em São Paulo. Ao observar a realidade do Complexo do Alemão – a livraria mais próxima dali fica a 10 km, a biblioteca, a 3 km -, decidiu adaptar a realidade dos eventos que conheceu para sua comunidade. Começou, então, o projeto “Ler é 10 – Leia Favela”, que culminou recentemente com a abertura da Biblioteca Hans Christian Andersen (uma antiga casa de forró foi adaptada para o projeto). Desde 2006, a ação, patrocinada pelo Instituto Kinder do Brasil e pela Associac¸ão dos Agentes de Fornecedores de Equipamentos e Insumos para a Indústria Gráfica (Afeigraf), envolveu mais de 10 mil crianças do morro em oficinas literárias e sessões de “contação” de história. Para abrigar as atividades no início, ele contava com a ajuda de escolas e de moradores, que cediam as lajes de suas casas. Com uma mala cheia de livros e um tapete, ele também contava histórias em becos e vielas da favela.
O escritor Luiz Ruffato foi ao Complexo do Alemão para visitar o projeto e ficou impressionado. “Achei fascinante como um jovem, contra tudo e contra todos, acreditava no poder do livro para transformar a vida de crianças cujos pais não lhes dão atenção e que estão em situação de risco”, afirma. Otávio, a quem Ruffato chama de “idealista”, tem bastante noção do alcance do seu projeto. “As crianças da favela ficam presas naquele complexo porque é tudo muito perto: escola, igreja, padaria. Através dos livros, elas descobrem outros países, outras galáxias, outros idiomas”, diz. Ele desenvolveu até um método para iniciá-las no mundo da leitura. Para crianças com dificuldades e iniciantes, ele dá livros de até 30 páginas. As outras, que apresentam mais familiaridade com a linguagem, recebem títulos mais volumosos. “Hoje tenho 70% delas nas 30 páginas”, conta.
Em 2008, Otávio ganhou o Prêmio Faz Diferença, do jornal
O Globo , na categoria jovem. Ele foi um dos 15 brasileiros eleitos a receber a premiação porque faziam diferença na área em que atuavam. Mas o escritor afirma que não chegou aonde pretende. “Quero que o morador saia de casa e depare com um livro na farmácia ou no bar da esquina”, explica, fazendo referência ao conceito de biblioteca a céu aberto. “Também tenho a ideia de colocar um caminhão cheio de livros que circule pela comunidade”, afirma. Além dos sonhos para o Alemão, ele tem projetos pessoais: quer cursar pedagogia para poder discutir a educação nacional. “E também quero encontrar maneiras de ampliar o atendimento nas comunidades do Rio de Janeiro”. De um jeito ou de outro, o posto de livreiro do Alemão parece falar mais alto.
Os dez livros do Alemão |
Os títulos mais lidos no complexo de favelas em que Otávio mora |
1 O menino maluquinho, de Ziraldo (Editora Melhoramentos, 2008) |
2 Poemas para brincar, de José Paulo Paes (Editora Ática, 2000) |
3 A bolsa amarela, de Lygia Bojunga (Editora Casa Lygia Bojunga, 2003) |
4 Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado (Editora Salamandra, 2007) |
5 Sítio do Pica Pau Amarelo, de Monteiro Lobato (Editora Brasiliense, 1995) |
6 Quadrinhos da Turma da Mônica, de Maurício de Souza |
7 Ou isto, ou aquilo, de Cecília Meireles (Editora Nova Fronteira, 2002) |
8 A casa da madrinha, de Lygia Bojunga (Editora Casa Lygia Bojunga, 2003) |
9 Flicts, de Ziraldo (Editora Melhoramentos, 2009) |
10 Contos de Grimm – Obra completa, dos Irmãos Grimm (Editora Itatiaia, 2008) |