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Livros de atrelagem

Os perigos da literatura de autoajuda educacional, que se engata ao trem da mente, minando a resistência vinda do exercício da crítica

Publicado em 10/09/2011

por Gabriel Perissé

Muitos acadêmicos torcem o nariz (e com razão!) ao ler textos de autoajuda educacional. Que, por outro lado, são vistos como fonte de motivação por uma quantidade expressiva de professores. Como identificar esse tipo de leitura e distingui-la dos tradicionais livros de pedagogia ou de filosofia da educação? Os textos e os livros de autoajuda educacional são prejudiciais ou não? Atrapalham mais do que ajudam? São inspiração educadora ou, ao contrário, deformam e confundem os educadores?

Uma das características mais visíveis da literatura de autoajuda em geral é a pretensão de ajudar com receitas e fórmulas, eliminando o prefixo “auto”, de origem grega, que exprime a ideia de “a si próprio” e “por si próprio”. Ora, se fossem mesmo livros de autoajuda, a ajuda deveria partir do próprio ajudado. Os livros seriam então uma forma de ajuda… que ajudaria o leitor a se autoajudar, ou seja, a pensar e decidir por conta própria.

Os chamados livros de autoajuda são, na prática, livros de atrelagem: o leitor, como vagão sem motor próprio, engata-se ao trem (ao autor iluminado), e é guiado por este sem opor resistência ou exercer qualquer crítica.

Um autor de autoajuda dará ao leitor comandos enérgicos e firmes. Ludibriado pela falsa ideia de que está se autoajudando, o leitor recebe as ordens e com elas concorda. Parecem ecomendações irrefutáveis. Os comandos se iniciam com palavras cheias de autoridade:


Não esqueça que você não é apenas uma parede da escola…
Enxergue o mundo e seus
alunos com novos olhos…
Seja um professor atento
à alma de cada aluno…
Devemos dar nossa parcela
de contribuição para
mudar o mundo…
Inspire boas ideias na
mente de seus alunos…

Todos precisamos da ajuda de alguém. Independência total é morte, morte do ser social, que precisa de vínculos, que se relaciona, ajudando e sendo ajudado. O maior problema da autoajuda educacional está em propor uma falsa emancipação. Não somos independentes, mas deveríamos ser livres. O autor de autoajuda  finge acreditar na autonomia dos seus leitores, e começa a dar ordens (belas ordens) sobre como devem ver e atuar.


A ajuda manipuladora

A autoajuda educacional tem força e eficácia, ou não venderia tanto. Publicações dessa natureza tornam-se autênticos fenômenos editoriais, verdadeiros best-sellers. O discurso de autoajuda conquista a confiança dos leitores. Faz ou quer fazer com que acreditemos no autor daquele livro como um ser especial, possuidor de soluções geniais, fruto de alguma revelação ou de uma experiência fora do comum. Há um misto de ideias razoáveis e doses de charlatanismo no texto do autor, que não raramente introduz em suas considerações elementos espirituais e religiosos.

A religiosidade pode ser caminho de lucidez ou instrumento manipulador. A autoajuda educacional que lança mão de conceitos religiosos como o amor, a esperança, a fé, a abnegação, a entrega, a humildade não o faz no contexto teológico e eclesial. Retirando aqueles conceitos do âmbito que lhes é próprio, empresta às suas palavras uma aura mística, uma autoridade vinda do céu… E, por tabela, o professor será idealizado como um “missionário”, cuja vocação maior é “partilhar sonhos”, como um semeador chamado a espalhar a boa-nova de escola em escola.

O perigo dessa mistificação reside em obscurecer mais do que iluminar. Seduzidos pelo tom quase de oração desses textos reveladores, deixamos de lado o realismo necessário para analisar e enfrentar os problemas concretos da educação. Se o professor se transforma numa espécie de visionário, num “gerenciador de sonhos”, seja lá como se faz para gerenciá-los, a vida docente se descola do mundo, se despolitiza, se torna realidade etérea, feita de nuvens. Torna-se algo tão belo, tão entusiasmante, tão… alienante!

O autor (doador) da ajuda manipula com maestria as técnicas da sedução, seu discurso é envolvente,  hipnotizador. Vamos sendo cativados com sentenças cuja verdade transcende nossa compreensão. Aprender é um dom precioso. Ensinar é uma vocação divina. A sala de aula é o templo da cumplicidade e do afeto. Cada professor é um ser especial capaz de fazer a diferença. E essa pedagogia cheia de carinho vai conquistando nossa mente, levemente, docemente. Por um momento, somos tomados por uma indizível felicidade…


Professores ingênuos, autores brilhantes

Uma das estratégias manipuladoras da autoajuda educacional é apresentar o óbvio como descoberta genial. Leio, por exemplo, “que não existe nenhum momento da nossa vida em que não nos relacionamos com alguém” , e esse profundo pensamento parece tão verdadeiro que me vejo convidado a aceitar sem pensar. Sim, de fato, estamos sempre nos relacionando com alguém. Não há o que problematizar. O leitor acalentado pela obviedade, com a qual concorda, tende, dali em diante, a concordar com tudo.

A ingenuidade nos leva a aceitar tudo o que dizem os autores brilhantes da autoajuda educacional. Um deles, ao escrever sobre educação física, afirmou que “a educação física, como diz o nome, é uma educação para o trabalho com a habilidade do físico e da mente”. Ora, isso simplesmente não faz sentido. Se a educação física está relacionada ao corpo e não à mente, por que a mente apareceu na frase? Apareceu porque o autor se sente tão à vontade, e seus leitores estão de tal modo encantados com a leitura, que não há mais necessidade de rigor ou reflexão. Escreve-se qualquer coisa que venha à mente…

O autor de autoajuda educacional não educa. Vai do óbvio inquestionado ao arbitrário igualmente inquestionado. Daí a sua facilidade ao escrever. Não há autocrítica por parte do autor, nem espírito crítico por parte dos leitores. Aquela facilidade ao escrever se apoia na facilidade com que consumimos o que é oferecido. Nossa credulidade permite aos autores mais espertos, e menos preparados, brincarem com as palavras, irresponsavelmente. E brincarem, afinal, com nossa inocência.

Livros de autoajuda educacional podem prejudicar, e muito, a prática docente. Podem confundir e manipular. Mas também podem ser muito úteis. Relidos com mais cuidado e atenção, com certa “malícia”, nos ensinam a amadurecer como leitores e profissionais.

* Gabriel Perissé (
www.perisse.com.br

)
é doutor em Filosofia da Educação (USP), pesquisador
do NPC – Núcleo Pensamento e Criatividade

Autor

Gabriel Perissé


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