NOTÍCIA

Edição 221

Quem são os professores voluntários de língua portuguesa para refugiados

Profissionais de áreas diversas se dedicam ao ensino do idioma a refugiados, criando metodologias com foco na integração das pessoas à cultura, ao trabalho e à educação formal

Publicado em 31/08/2015

por Camila Ploennes

 

© Gustavo Morita
Rosane de Sá Amado dá aula de português para refugiados atendidos pela Missão Paz, no bairro da Liberdade

 

Em 2014, quando começou a coordenar cursos de português para refugiados em duas organizações diferentes na região central de São Paulo, a doutora em linguística Rosane de Sá Amado, professora da graduação em letras da Universidade de São Paulo, não imaginava o quão alta seria a rotatividade de professores com quem trabalharia. A prática de ensinar a língua oficial do Brasil àqueles que chegaram por aqui temendo guerras, conflitos e perseguições em seus países de origem mostraria a Rosane todos os desafios de começar um projeto do zero, embora o ensino do idioma para falantes de outras línguas já fosse tema de suas pesquisas na USP.

Do ano passado para cá, a pesquisadora coordenou 13 professores diferentes no curso de português para os refugiados atendidos pela Missão Paz, no bairro da Liberdade. Apesar de chegarem com boa vontade, como relata, muitos dos voluntários acabam desistindo em função das dificuldades enfrentadas, como a falta de infraestrutura e de recursos pedagógicos.  Para driblar especialmente o último problema, a linguista tem ajudado a sistematizar a metodologia do curso. “Comecei na USP um projeto que visa justamente à elaboração de um material didático específico. O resultado ficará disponível on-line para quem quiser baixar”, adianta a professora.

Rosane avalia que, como muitos alunos param de frequentar o curso quando encontram um emprego, é preciso pensar em métodos rápidos e eficazes. Outro aspecto que precisa ser observado é o fato de que as turmas são compostas por falantes das mais diversas línguas, como crioulo, lingala, iorubá, suaíli, árabe, hindi, urdu, inglês, francês e espanhol.

A diversidade linguística nas salas de aula de Rosane traduz os números divulgados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) sobre os pedidos de refúgio. No ano passado, o Brasil foi o país da América Latina que mais recebeu solicitações, apesar de estar geograficamente distante dos principais conflitos e ser apenas o 75º na lista dos países com mais refugiados no mundo.

Por aqui, o registro de novos pedidos subiu 41% de 2013 para 2014. Foram 8.302 solicitantes no ano passado e 5.883 no ano anterior. O número de pedidos, porém, não é igual ao de concessões. Para se ter ideia, no país vivem hoje 7.289 refugiados reconhecidos, de 81 nacionalidades, segundo o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão interministerial presidido pelo Ministério da Justiça.

Sírios, colombianos, angolanos e congoleses são os mais presentes, mas também há libaneses, liberianos, palestinos, iraquianos, bolivianos e serra-leonenses na população de refugiados. Os haitianos, que têm procurado o país desde o terremoto de 2010, não estão nessa conta, pois recebem visto de permanência por razões humanitárias.

Cruzada pela língua

A diferença entre a quantidade de pessoas que já conseguiram o status de refugiado e o número de solicitantes não muda a demanda pelos cursos de português. O domínio da língua é visto como um item de primeira necessidade na busca por trabalho e no acesso a serviços básicos.

O estado brasileiro que mais recebeu pedidos em 2014 (26% do total) foi São Paulo. Não à toa, o Comitê Estadual para Refugiados da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania se reuniu no último mês de maio para discutir políticas públicas voltadas a essa população, reconhecendo que a língua ainda é um obstáculo no caminho para a educação. Segundo o grupo, a Secretaria de Educação passou a mapear iniciativas de inclusão que possam ser ampliadas para a rede básica de ensino. Na capital paulista, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) está na fase de divulgação de um mapeamento da oferta específica de cursos de português para imigrantes e refugiados na cidade.

“Há uma oferta considerável de cursos para imigrantes latinos, mas quase não temos opções para o solicitante de refúgio. Por isso comemoramos sempre que um coletivo começa a oferecer aulas, ainda que na maior parte das vezes façam do jeito que dá”, afirma Wendy Villalobos, gestora do projeto Trilhas da cidadania: a língua portuguesa pela cidade, que ofereceu cursos de português para esse público entre 2012 e o primeiro semestre de 2015, na região da Luz.

Durante suas cinco edições, a iniciativa ensinou 100 pessoas a falar o idioma. Com uma formação fora da área de letras – em relações internacionais, com pós-graduação em gestão de projetos -, Wendy também atuou como professora no projeto e trabalha agora em um objetivo parecido com o de Rosane: a sistematização de uma metodologia de ensino para refugiados.

Ela conta que nos últimos dois anos, o Trilhas da cidadania foi procurado por outras iniciativas interessadas em seu método, que alia sala de aula a saídas pela cidade. “Começamos em agosto uma nova etapa. Encerramos o atendimento direto das turmas, pelo menos por ora, para reunir processos da nossa experiência e publicá-los aos possíveis interessados, entendendo que não há fórmulas, mas apontamentos”, explica.

Outro curso de português para refugiados que tem professores envolvidos em pensar a didática é o oferecido pelo Cursinho Popular Mafalda, na zona leste de São Paulo. “No começo não tínhamos material, fazíamos como era possível e sentíamos falta de algo um pouco mais sistematizado. Por isso, nos reunimos para confeccionar um material 100% autoral”, explica o professor Leandro Almeida Lima, de 23 anos, que é formado em relações internacionais, como Wendy, e concilia um emprego de segunda a sexta com o voluntariado aos sábados no Mafalda.

Foco na fala

Os modos de organizar cada curso e a formação dos professores podem variar muito, mas há características comuns às iniciativas, como a prioridade para o desenvolvimento da oralidade e a preocupação em apresentar traços marcantes da cultura e da cidadania brasileira durante as aulas. “As pessoas estão em uma situação difícil, então as aulas precisam fazer bastante sentido. Elas pensam na família, que muitas vezes ficou nos países de origem, e em como vão trabalhar para conseguir comer. Nesse processo de se adaptar para sobreviver, a língua é muito importante e os códigos da cultura e da cidadania brasileiras também são. Por isso, fazemos um levantamento dos interesses dos alunos”, conta Wendy.

 

© Gustavo Morita
Alunos das mais variadas origens e condições frequentam os cursos de português para refugiados

 

Nesse contexto, o que mais acaba interessando os alunos é a dinâmica para buscar trabalho: os documentos necessários, como fazer um currículo e como se portar em uma entrevista de emprego e nas relações de trabalho.

Wendy acrescenta que o Trilhas da cidadania tinha ainda o cuidado de mostrar na prática atividades cotidianas, como pegar o metrô, ir ao posto de saúde e ao mercado. “É legal quando eles começam a se enxergar nessa história, ao perceber, por exemplo, palavras de origem africana no português brasileiro, ficando frente a frente com a influência de seus povos aqui no Brasil”, afirma.

Referência

Com 20 anos de história, o curso de português para refugiados oferecido pela parceria entre Senac e Sesc Carmo, na região da Sé, no centro de São Paulo, serviu como referência para o projeto desenvolvido por Wendy.  De acordo com Nielsi Gonçalvez de Souza, coordenadora da área de idiomas do Senac Francisco Matarazzo, e uma das responsáveis pelo programa, as aulas procuram simular situações de comunicação do dia a dia e trabalham a parte escrita conforme a necessidade dos alunos. Desde 1995, cerca de 2 mil pessoas concluíram o curso, segundo Cristina Papa, técnica do Sesc Carmo, que recebe aproximadamente 80 alunos por ano.

Clariana Lucas, atual professora do Senac selecionada para ensinar português aos refugiados no Sesc Carmo, já foi precedida por pelo menos sete docentes. Para ela, o principal desafio é estar sensível e atento às questões que afetam a turma. Por exemplo: “pegar no pé” do aluno que tinha formação específica em seu país, como engenharia e direito, e precisa trabalhar em áreas pouco ou nada ligadas à sua profissão enquanto aguarda uma possível validação de diploma.

No Cursinho Popular Mafalda, Leandro vive uma experiência parecida. “O perfil dessas pessoas é muito diferente do imigrante econômico, que sai de seu país porque não tem emprego. Nós recebemos pessoas que fugiram do país de origem por falta de segurança ou porque o próprio Estado as persegue”, detalha. Para o internacionalista, uma das principais dificuldades é tentar ajudar as pessoas a lidar com as diferenças culturais sem adotar uma postura paternalista.

Idade escolar

Apesar de a maioria dos solicitantes de refúgio ser composta por adultos (96%), os cursos de língua portuguesa são um termômetro da demanda por Educação Básica para crianças e adolescentes em idade escolar. Segundo Simone Gomes, assistente social da Missão Paz, é comum os pais relatarem à instituição dificuldades para matricular os filhos nas escolas públicas. Por isso, o setor de educação, coordenado por ela, presta um serviço de mediação entre os estrangeiros e as escolas para preservar o direito de acesso ao ensino. “Muitas vezes, eles se deparam com uma lista de documentos requisitados pela escola e que, na verdade, não é necessária para a matrícula. Nesses casos, entro em contato com a delegacia de ensino ou com a secretaria para garantir o atendimento na rede pública”, explica.

Paralelamente, Simone visita escolas para conscientizar funcionários e estudantes contra a xenofobia. Além disso, está planejando um curso de língua portuguesa para pais e filhos. “A ideia de trabalhar com as famílias é importante, porque temos notado que as crianças sociabilizam rápido, mas os pais nem sempre conseguem acompanhar o cotidiano delas na escola”, analisa.

Essa urgência também foi identificada no Cursinho Popular Mafalda, que já tem uma turma com educadores para crianças. “Observamos que as mulheres, em sua maioria, só frequentavam as aulas se fossem com os seus filhos. Assim, para incentivar a participação delas nas aulas e o melhor aproveitamento, criamos a turma para os filhos enquanto os pais têm aula”, destaca a coordenadora Jacqueline Feitosa.

Até mesmo nas turmas voltadas a jovens e adultos, os professores acabam acolhendo as famílias como um todo. “No segundo semestre de 2014, mantive contato com alunos pelas redes sociais e fiquei bastante feliz ao ver que um deles, pré-adolescente, entrou na escola”, comenta Leandro Lima, do Cursinho Mafalda.

No Trilhas da cidadania, Wendy conta que os professores também já receberam alunos de 18 anos e uma criança, que fez o curso com a família em 2014. “Se tivéssemos mais crianças, teríamos usado outras metodologias. Nessa turma, formada principalmente por sírios e iraquianos, o professor fez um trabalho específico sobre desenhos com esse menino, que acabou fazendo uma exposição do que produziu sobre seu país de origem na formatura”, lembra.

Além das iniciativas de inclusão das crianças, os cursos também têm procurado orientar os jovens e adultos para a educação formal. “Procuro faculdades e universidades que oferecem cursos gratuitos para esse público”, conta Simone, da Missão Paz. A Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), por exemplo, abriu inscrições neste ano para quem já está com a situação de refugiado reconhecida. “Também oriento como realizar o Enem e escolher outros cursos”, completa.

O que levou professores a ensinarem português para refugiados? Leia os depoimentos:

 Clariana Lucas, professora do curso do SESC/SENAC
Minha formação é em história pela Unicamp e ensino língua inglesa há dez anos para diversas faixas etárias. Também já lecionei história e biologia em cursinhos comunitários e atendi alunos da Escola Americana que precisavam de aulas de reforço nessas áreas. Há um ano comecei a trabalhar com alunos com deficiência auditiva profunda e leciono para solicitantes de refúgio desde fevereiro deste ano. Para mim, foi muito interessante aprender que todos os alunos de língua estrangeira, seja portuguesa ou inglesa, precisam ser constantemente estimulados a criar estratégias de aprendizado e a praticar o idioma. Por mais que a maioria dos alunos refugiados já seja fluente em duas ou três línguas, essa fluência foi adquirida ao longo da vida, desde a infância, na escola e nas interações cotidianas. Ainda que eu já soubesse disso com base em leituras, foi muito revelador – e engraçado – perceber que tenho que ‘pegar no pé’ para que os alunos façam exercícios em casa ou tentem conversar mais com brasileiros.

 

 Leandro Almeida Lima, professor do Cursinho Popular Mafalda
Eu me formei em relações internacionais na USP em 2014 e desde setembro do ano passado sou voluntário no curso de português para refugiados e solicitantes de refúgio do Mafalda. Durante a semana, trabalho em uma consultoria de comunicação estratégica. Quando eu li o anúncio de que o curso estava procurando professores, eu vi a oportunidade de ter uma vivência real com um tema que está muito presente no que estudei. Esta é minha primeira experiência como docente e, antes de começar a dar aulas, eu conversei com amigos que lecionavam idiomas e me planejei, selecionando artigos de jornais, músicas e preparando explicações. Além de oferecer ferramentas básicas para eles se comunicarem com eficiência, faço uma contextualização histórica, porque as pessoas vêm de culturas muito diferentes. Minha turma era a de francófonos, composta principalmente por congoleses, que saíram de seu país pela grande instabilidade política. Mas também tinha alunos do Camarões, do Mali e de Burkina Faso.

 

Patrícia Garcia, professora da turma de português intermediário na Missão Paz
Sou professora voluntária desde maio de 2015, mas minha formação é em recursos humanos. Não tenho experiência anterior na docência e atualmente estou desempregada. Enquanto procuro trabalho, me dispus a ensinar português para refugiados, solicitantes de refúgio e imigrantes na Missão Paz. Para mim, o principal desafio é a comunicação com os alunos, pois tenho apenas conhecimentos básicos de inglês e não falo francês, idioma oficial dos haitianos, por exemplo. Mas como o foco é o português, acabo usando pouco as outras línguas. É interessante notar que boa parte dos alunos cursou o ensino superior em seus países de origem. Ou seja, tenho alunos formados em jornalismo, tecnologia da informação, enfermagem e matemática que, mesmo falando três idiomas, consideram a língua portuguesa difícil. Gosto muito das observações que eles fazem sobre o país, como a de que “aqui as pessoas andam correndo”. Além disso, na troca de experiências, eles me ensinam um pouco de francês e a cada aula aprendo um pouco sobre suas culturas, hábitos, costumes e opiniões.

 

Rosane de Sá Amado, docente e pesquisadora na USP e professora-coordenadora na Missão Paz e no Oásis Solidário
Minha formação é em letras árabe-português, com mestrado e doutorado em linguística pela USP, onde sou professora da graduação desde 2004. Também atuo na pós-graduação, em pesquisas sobre português para falantes de outras línguas (estrangeiros em geral, indígenas, e atualmente, imigrantes refugiados). No ensino de português para falantes de outras línguas, dei cursos de português para indígenas e para estrangeiros e atuo na formação (orientação de pós-graduação) de alunos com intenção de serem professores de português como língua estrangeira. Comecei a lecionar e a coordenar, concomitantemente, português para refugiados em julho de 2014, tanto na Missão Paz quanto no Oásis Solidário. Apesar dos desafios, o trabalho é extremamente gratificante! Incentivo meus alunos de Letras todo semestre para que participem como voluntários, porque nós aprendemos muito mais do que ensinamos.

 

Wendy Villalobos, gestora e uma das professoras do projeto Trilhas da Cidadania
Sou formada em relações internacionais e pós-graduada em cooperação em RI e gestão de projetos; também fiz um curso de teatro. O desafio de ser professora de português para refugiados e solicitantes de refúgio é você se tornar a grande referência das pessoas, que chegam sem dominar a língua. A vontade é de cuidar de todo mundo, mas há limitações. Então, você vira professor e articulador de redes de apoio. Além disso, é penoso ver alguns alunos aparentemente deprimidos e que tragédias acontecem a suas famílias enquanto eles estão longe. Por outro lado, mantenho contato com vários ex-alunos e é muito legal ver que estão trabalhando e construindo uma história de vida na cidade. O impacto dessa experiência foi muito grande. Eu já tinha dado aulas de teatro para adolescentes e crianças, mas foi completamente diferente ensinar português, cultura e cidadania para um público tão diverso. Era uma troca intensa em que eu contava sobre o Brasil e dava espaço para eles contarem sobre onde vinham, suas histórias e os preconceitos que viviam.

 

Autor

Camila Ploennes


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