NOTÍCIA
Como essas instituições instauram práticas silenciosas de seleção de alunos, criando distorções nas redes de ensino
Publicado em 10/05/2016
A educação é um direito e as regras para matrícula numa escola pública são definidas, em lei, pelos sistemas de ensino.
Apesar disso, as escolas podem adotar processos e práticas que acabam por estabelecer mecanismos velados de seleção de estudantes, burlando a legislação e criando relações de hierarquia entre colégios situados numa mesma região. Tais práticas podem, ainda, reforçar divisões sociais hierarquizadas, preconceitos e processos de “guetificação” dos territórios, especialmente nas periferias urbanas.
Essas são algumas das reflexões desencadeadas pelos resultados de uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) em oito escolas públicas de São Paulo, na subprefeitura de São Miguel Paulista, localizada no extremo leste da capital paulista. Com cerca de 370 mil habitantes, a região apresenta relativo grau de heterogeneidade social, com diferentes graus de vulnerabilidade.
“A literatura aponta que existe um efeito do território sobre as desigualdades socioeconômicas, na medida em que a organização do espaço urbano é influenciada por essas desigualdades. Essa organização influi no acesso a saúde, lazer, educação, trabalho etc.”, contextualiza Antônio Augusto Gomes Batista, que coordenou a pesquisa com Vanda Mendes Ribeiro.
“A mesma coisa pode acontecer com a educação. O chamado ””efeito vizinhança”” entre uma escola e a comunidade onde ela se insere pode reforçar ou suavizar desigualdades socioespaciais”, complementa Batista.
Dos princípios às práticas
Tendo essa questão como pano de fundo, o Cenpec realizou uma pesquisa qualitativa em São Miguel Paulista, tendo em vista dois objetivos: de um lado, apreender os processos e práticas adotados por escolas públicas de periferia para selecionar os estudantes, a despeito da legislação.
De outro, o estudo procurou identificar os princípios que norteiam essas práticas – ou seja, qual o entendimento do que é um “bom aluno” e um “mau aluno” para uma escola e as motivações de fundo que levam um estabelecimento de ensino a selecionar seus alunos.
Essa pesquisa, como relata o coordenador, foi parte de um estudo maior, que incluiu um levantamento quantitativo, realizado com a finalidade de analisar os fatores que podem influir nos indicadores educacionais das grandes regiões metropolitanas (geralmente inferiores à média de sua região) com o fenômeno da segregação socioespacial nessas áreas.
Antonio Augusto Batista, do Cenpec: prevenção à indisciplina gera exclusão antecipada |
Durante quatro meses (outubro de 2011 a janeiro de 2012), foram entrevistados secretários, agentes escolares e auxiliares técnicos em educação das oito escolas investigadas.
A pesquisa, que teve caráter exploratório, adotou a metodologia batizada de “bola de neve” (snowball): ou seja, as entrevistas foram realizadas com pessoas que pertenciam ao círculo de relacionamentos dos pesquisadores, as quais, por sua vez, indicavam outros conhecidos. As entrevistas são realizadas até que ocorra a saturação, ou seja, repetição dos dados.
“Considerando o tema do estudo e o fato de ser uma pesquisa exploratória, essa metodologia mostrou-se como a mais adequada, pois para obtermos as informações que desejávamos era necessário que existisse um laço de confiança entre pesquisadores e entrevistados”, explica Bastista, que também é coordenador de Pesquisa do Cenpec.
A opção pelos secretários escolares como sujeitos de pesquisa deveu-se ao fato de que eles não ocupam uma posição de tomada de decisão dentro da escola, por isso os pesquisadores assumiram que eles se sentiram mais à vontade para passar as informações, além de estarem diretamente envolvidos com a matrícula.
Os critérios para a exclusão
A partir das informações obtidas, os pesquisadores constataram que em apenas uma das oito escolas que compuseram a amostra não se realizava seleção de alunos.
A prática assume vários tipos de contorno em quatro tipos de situação do cotidiano escolar: preenchimento do cadastro do aluno no sistema, solicitação de matrícula, solicitação de transferência e expulsão velada ao longo do ano letivo.
Embora sujeitas ao controle informatizado, a negação de cadastro foi das práticas identificadas na pesquisa, a fim de evitar que determinados alunos se matriculem. Como relatou uma secretária, quando a intenção é evitar que o estudante ingresse na escola, é feita uma anotação ao lado do nome do aluno com as iniciais NC, que significa “não cadastrar”. Caso o interessado questione a marcação, ele é informado que significa “nova chamada”.
Nessas situações, o responsável é orientado a procurar outra escola, a fim de ampliar suas chances de conseguir a matrícula. Já nos casos em que os pais procuram uma escola, com a intenção de matricular ou transferir o filho para uma instituição que considerem mais adequada, independentemente do local de moradia ou de trabalho, as justificativas prestadas para a solicitação podem ser decisivas no sentido de se abrir ou fechar as portas.
Ser irmão de alunos que já apresentaram problemas de indisciplina ou cujos pais interferiram negativamente no cotidiano da escola de interesse pode dificultar a matrícula. Da mesma maneira, quando o pai alega que pretende mudar o filho de escola porque no estabelecimento de origem não existem projetos assistenciais, também é motivo de recusa da matrícula.
“O processo de seleção é colocado em prática com base em critérios originados em julgamentos que relacionam interesses ou comportamentos das famílias ao que isso poderia significar no ambiente escolar”, analisam os pesquisadores. Ou seja, com base em prejulgamentos que relacionam a família ou o aluno com a possibilidade de se tornar um problema para a escola.
O depoimento de um entrevistado evidencia esse tipo de prejulgamento: “A maioria do pessoal que trabalha na escola mora ali próximo. Então, conhece a família, já viu a criança e já sabe como ela é, às vezes, até pelo sobrenome. Um exemplo: tem uma família que tem sobrenome X, e todos eles têm algum problema”.
Paralelamente aos prejulgamentos atribuídos às famílias ou aos próprios alunos, a pesquisa identificou alguns contextos em que o pedido de transferência tende a ser negado; por exemplo, quando é feito no segundo semestre letivo.
“Transferência a gente não tem como avaliar. Agora, no final do ano a gente tem. Porque se o menino está sendo transferido no final do ano e mora no bairro, o que ele tem? É que foi expulso”, disse uma entrevistada.
Seleção x Evitamento
Os pesquisadores apontam, então, que, ao que tudo indica, as escolas mostram-se preocupadas em não receber alunos supostamente indisciplinados, que possam, na visão da instituição, prejudicar seu trabalho. Ou seja, prevalecem os critérios negativos sobre os positivos, caracterizando um processo de evitamento mais do que de seleção.
Além dos prejulgamentos já citados, critérios associados ao imaginário do que seria um “mau aluno” também funcionam como fatores que justificam a recusa do estudante: a escola de origem, local onde esse estabelecimento se situa e a comunidade que atende, ou o local de moradia da família.
Em algumas circunstâncias em que não é possível comprovar o “bom comportamento” do candidato à vaga, ele é alvo de uma investigação seja por meio de uma entrevista com os pais e o candidato, seja por consultas à escola de origem ou pesquisas do prontuário escolar registrado em sistema para consulta das notas e da frequência.
A consulta ao prontuário parece ter como objetivo, analisam os pesquisadores, evitar o “desperdício” de uma vaga, pois entende-se que se o aluno falta muito às aulas, ele é um candidato ao abandono.
Os processos de expulsão, por sua vez, se dão por meio de uma pressão para que a própria família, constatando a dificuldade de a criança (ou jovem) acatar as regras disciplinares da escola, peça a transferência para outro estabelecimento, supostamente mais adequado a ela.
A expulsão, porém, marca o aluno, inviabilizando, muitas vezes, que ele seja aceito em outras escolas. Por isso, é comum que as famílias tenham de recorrer ao Conselho Tutelar para conseguir uma vaga.
Novamente, a indisciplina aparece como justificativa para a expulsão. “Quando o problema é na sala de aula, quando está afetando muito a sala de aula, os professores se queixam muito. Eles não definem [quem será expulso]; eles podem até é… não sei se a gente pode dizer…. pressionar ou solicitar… Vamos dizer sugerir. Ele sugere […] A direção às vezes dá o veredito final, vamos dizer assim (risos)”, relatou uma entrevistada.
A prevenção como mote
Um traço comum a todas as estratégias para evitar alunos indesejáveis, assinala a pesquisa, é o fato de assumirem um caráter preventivo, tendo em vista evitar problemas ou dificuldades para os estabelecimentos.
“Há uma espécie de antecipação de uma suposta indisciplina, de problemas que ainda não ocorreram”, afirma Batista.
Em síntese, o princípio do processo de evitamento é a crença na possibilidade de que tanto os alunos quanto as famílias conturbem o ambiente escolar, tomando como critério, principalmente, a indisciplina, a partir de uma visão do que seria um “mau aluno”.
“A intenção não parece ser expulsar os mais pobres, mas aqueles estudantes oriundos de contextos mais afastados da cultura escolar e que, por isso, dariam mais trabalho. São os supostamente indisciplinados”, sintetiza o coordenador da pesquisa.
Apesar do “medo da indisciplina” e do fato de que esse, provavelmente seja um problema enfrentado pelas escolas no cotidiano, não existem evidências de que os alunos excluídos sejam efetivamente indisciplinados – o que leva à suposição de que as decisões que levam à exclusão dos alunos se baseiam em estigmas e preconceitos.
Tais condutas podem ser compreendidas, embora não se justifiquem, no contexto das dificuldades que as escolas enfrentam para fazer frente ao comportamento e às atitudes dos alunos e realizar seu trabalho. No entanto, conclui a pesquisa, os procedimentos de exclusão identificados colaboram para acirrar as desigualdades sociais, pois, conforme descrevem os secretários escolares entrevistados, os mais expostos a esses procedimentos são as famílias menos escolarizadas e, portanto, menos capazes de questionar seu direito à educação.
Saiba mais sobre a pesquisa: |
> Título: Seleção velada em escolas públicas: práticas, processos e princípios geradores
> Autores: Luciana Alves, Antônio Augusto Gomes Batista, Vanda Mendes Ribeiro e Maurício Érnica. > Disponível em: http://migre.me/tyDE7 |