NOTÍCIA
Condições particulares de atuação dos professores da instituição faz com que muitos deles prefiram atuar ali a trabalhar nas escolas públicas regulares
Publicado em 27/03/2017
“Ô, professora!”. Da porta de entrada do Complexo Brás da Fundação Casa, ao lado da estação de metrô e trem, a pedagoga Sônia Regina avistou um jovem que lhe acenava da plataforma. Provavelmente era um entre os mais de mil adolescentes que passam todos os anos no centro de internação onde trabalha. Após deduzir de onde o conhecia, gritou perguntando se ele estava estudando. Ele respondeu acenando com o caderno que levava na mão.
É esse tipo de devolutiva que faz com que Sônia identifique e defenda o potencial de transformação de seu trabalho. “Aqui dentro a gente tem tempo para criar um vínculo com o aluno e mostrar para ele que a escola é importante”, explica.
Ao final de 2016, a Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), abrigava quase 9 mil jovens infratores que descumpriram a lei no Estado de São Paulo. São cerca de 60 adolescentes por unidade e 15 alunos por sala, número três vezes menor do que é encontrado normalmente nas escolas regulares.
Ainda que com as restrições que assolam a educação pública em todas as suas vertentes, o trabalho com os jovens apreendidos é visto por alguns educadores como uma oportunidade particular em termos de realização profissional.
Edmilson Almeida, professor na Fundação, acredita que há razoáveis condições para fazer seu trabalho e aproximar o aluno da escola. Almeida é docente na Casa Governador Mário Covas há 4 anos e diz sentir-se mais educador agora do que em seus 27 anos na escola regular. Quando vinga, seu trabalho faz diferença. “Tudo aqui gira no propósito da cidadania, em fazer com que o aluno olhe para si mesmo como um cidadão em construção que falhou”, explica.
Para que o professor vá além do conteúdo e trabalhe a cidadania, é necessário ensinar ao jovem algo que ele realmente queira aprender e que tenha significado dentro de sua experiência, avalia Almeida. Uma estratégia na qual ele foi bem-sucedido foi a de ensinar a origem das palavras. “Eles adoram porque veem isso no dia a dia. É bom até mesmo para quebrar a ignorância, porque eles vêm de um contexto social e linguístico que os mantém alienados”, explica.
Além de trabalhar com salas de aulas menores, a medida socioeducativa exige a participação de uma equipe técnica de pedagogos, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros e agentes de segurança que devem oferecer suporte ao professor. Nos casos em que o adolescente ainda não está alfabetizado, por exemplo, são realizadas oficinas de letramento antes que o aluno volte a frequentar as aulas com os outros internos.
“Nós já recebemos dois alunos aqui, um do 9º ano do ensino fundamental e outro do 3o ano do ensino médio que não sabiam escrever o próprio nome, e em pouco mais de cinco meses já estavam dominando a leitura e a escrita”, conta Anderson Souza, pedagogo na Casa Governador Mário Covas.
Na rede pública, poucas escolas contam com uma estrutura articulada que permita esse tipo de intervenção. Ainda assim, Souza destaca a parcela de responsabilidade do corpo escolar na manutenção do analfabetismo desses alunos. “O menino chega ao 3º ano do ensino médio sem ler e escrever e a escola regular não percebeu?”, questiona.
Em seus 21 anos de trabalho na Fundação, não foram raras as vezes em que Débora, professora da Casa Topázio no Brás, deparou com olhares preconceituosos por trabalhar com menores condenados pela Justiça. “As pessoas não entendem que fazemos um trabalho pedagógico. Acham que os jovens ficam trancafiados e que não se desenvolvem aqui dentro.”
Em tempos de discussão sobre a redução da maioridade penal, a própria validade da medida socioeducativa é questionada. “Muitas pessoas acham que eles deveriam estar aqui para ser punidos, não para aprender”, explica Sônia. “Como educadora, não devo olhar para o adolescente como um bandido, mas como uma pessoa em desenvolvimento que precisa de orientação.”
Outro questionamento que sempre surge é o da segurança. Segundo a superintendente pedagógica da Fundação Casa, Marisa Fortunato, alguns professores da instituição se sentem mais seguros dando aulas dentro dos centros do que nas escolas regulares. É o caso de Edmilson Almeida: “Aqui, há pessoas de prontidão para agir em qualquer situação. Na escola não tenho isso, somos apenas eu e os alunos.”
Dez anos atrás, o cenário era outro. Quando começou a trabalhar na instituição em 2006, Almeida enfrentou sete rebeliões. “A primeira vez foi assustador, mas não era uma situação de ameaça. Os alunos depois até pediram desculpas por terem nos impedido de sair”, conta o pedagogo.
Ao final daquele mesmo ano, a instituição passou por uma reestruturação para diminuir os constantes levantes que marcaram a antiga Febem. Mesmo estando longe de ser um paraíso, a Fundação Casa passou a oferecer um atendimento descentralizado: desativou grandes complexos na capital e construiu pequenos centros difundidos pelo estado. Passados 10 anos do novo modelo, a taxa de reincidência diminuiu 13% na medida de internação, segundo dados da Fundação.
Ao serem apreendidos, os adolescentes devem, em tese, ficar no máximo 45 dias nos centros de internação provisória aguardando decisão judicial. Nesses períodos, o conteúdo visto em sala de aula é apresentado em módulos, em razão do curto tempo para a aprendizagem.
“Cada módulo aborda um tema voltado para a realidade desse adolescente, como trabalho, juventude, família ou questões da escola. Os temas por sua vez são divididos em atividades, que começam e terminam no mesmo dia”, explica a superintendente pedagógica da Fundação.
Apesar de parecer pouco tempo, a professora Débora Ribeiro defende que é suficiente para retomar o processo de aprendizagem, mesmo entre aqueles que chegam sem estar alfabetizados. “O aluno não vai sair dominando a escrita, mas entra em um processo alfabético e começa a escrever pequenos textos, o que é fundamental”, diz a docente, há 20 anos na instituição.
Para ela, a diferença está na própria privação de liberdade, que obriga os alunos a utilizar todo o tempo disponível em sala de aula para aprender. As salas pequenas ajudam a estabelecer vínculos com o professor. “Eles chegam aqui com uma referência muito negativa do mundo e da escola. Com o tempo, passam a a ter confiança em nós e o aprendizado rende.”
Ao serem transferidos para um dos 146 centros de internação, os adolescentes são agrupados de acordo com as séries que cursavam na escola regular. Caso não exista demanda suficiente, estudantes de níveis próximos são agrupados em classes multisseriadas, normalmente duas de fundamental – do 1o ao 5o ano, e do 6o ao 9o ano – e uma de ensino médio.
No caso das salas de aula que englobam diferentes níveis da educação, o conteúdo regular da escola passa a ser aplicado por área do conhecimento (ciências humanas, ciências exatas, ciências da linguagem, matemática e educação física) e não por disciplinas como é feito atualmente na rede.
A carência de apoio da Secretaria da Educação na aplicação do modelo multisseriado é um dos principais problemas pedagógicos relatados pelos educadores da Fundação Casa. O conteúdo fornecido pela rede estadual chega aos professores separado por séries, e cabe a eles programar um modelo de estudos que seja útil do primeiro ao último ano do ensino médio, por exemplo.
“Somos cobrados pela Secretaria para oferecer um planejamento multisseriado, mas não temos apoio para isso. A gente precisa de um currículo próprio para a medida socioeducativa”, explica Edmilson Almeida, responsável pela área de ciências humanas no centro de internação Governador Mário Covas.
Ainda que enfrente problemas como toda escola pública, as salas de aulas reduzidas, o apoio da equipe técnica e a própria obrigatoriedade do ensino fazem com que a Fundação Casa obtenha resultados considerados bons por quem trabalha ali.
Anderson não tem dúvidas de que a escola dentro da Fundação humaniza mais o aluno do que a educação regular. “Mesmo que esse menino volte para o universo do crime, ele não pode olhar para trás e dizer que aqui ele não teve a chance de repensar as próprias atitudes”, diz o pedagogo.
Grande parte dessa possibilidade se deve à maior proximidade de gestores e professores em relação aos estudantes, algo de que muitas vezes o menor infrator não desfrutou antes de ser apreendido. Não deixa de ser sintomático o fato de que o aluno só encontre esse tipo de atenção durante a privação de liberdade.
A estrutura da equipe pedagógica |
A Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) é responsável pela aplicação da medida socioeducativa ao menor de idade que descumpre a lei no Estado de São Paulo. O menor de 18 anos apreendido não pode ser processado de acordo com o Código Penal, tendo de ir para um centro socioeducativo, segundo as normas previstas pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e pelo Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo).
Durante a internação, o adolescente tem direito a frequentar a escola formal. Ele tem contato com cinco tipos de profissionais da área pedagógica: o professor da escola básica, o agente educacional, o pedagogo, o arte-educador, o professor de educação física e o professor de qualificação profissional. Professor da escola básica Pedagogo Agente educacional Arte-educador Professor de educação física Professores de qualificação profissional |