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Currículo em debate

Prática docente revela grande distância entre o que se aprende e o que é possível ensinar

Publicado em 10/09/2011

por Valéria Hartt

Ensinar ou não a gramática que sempre se ensinou? Na sociedade grafocêntrica do século 21, como desenvolver no aluno competências para sua eficiente participação nas práticas sociais de leitura e escrita? Centrado nessa discussão – que não encontra eco nos programas de formação inicial de professores – o ensino da língua portuguesa vive hoje outro dilema, comum a todas as outras disciplinas: a distância entre o que o professor aprendeu e aquilo que vai, ou deveria, ensinar.

Muitos especialistas da educação e a própria Anfope insistem em dizer que o ensino disciplinar não atende mais às necessidades. Seria preciso introduzir a transdisciplinaridade, que sob a ótica de Roxane Rojo, da Unicamp, deve começar nas universidades. Ela defende uma reorganização de fundo, na maneira de entender o objeto de ensino no contexto de hoje.

"Deve haver uma formação específica para os professores responsáveis pelo ensino da língua, principalmente para aqueles que introduzem a criança no mundo da escrita", afirma Magda Soares, pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale, UFMG). Magda fala de uma introdução que transcende o senso comum de alfabetização para incorporar também o conceito de letramento, com práticas sociais de leitura e escrita. Requer do professor uma formação ampla.

"São conteúdos que o habilitam para o trabalho com a língua escrita, em suas diversas facetas – fonológica, morfossintática, textual, discursiva; conteúdos psicológicos que permitem compreender os diferentes processos cognitivos de aprendizagem; conteúdos sociológicos para a compreensão das práticas sociais que envolvem a língua escrita. Infelizmente, todos ausentes da formação inicial de professores", aponta.

E o que sobra na grade curricular de Letras parece carecer de sistematização. Muitas licenciaturas ensinam letramento sem o prévio ensino de fonética.


Revisão urgente

Na área de História, a crise curricular entra em confronto com seu objeto de estudo. "Muitas faculdades de licenciatura não conseguem trabalhar conceitos básicos para a formação do profissional de história. Historiografia, fonte e representação, pressupostos fundamentais, não constam do currículo. O livro didático acaba sendo a tábua de salvação desses docentes", critica Helenice Ciampi, professora da Faculdade de Educação da PUC/SP.

Autora do livro Ensino de História: Revisão Urgente, (Educ, 2005), Helenice fala de dificuldades que há 20 anos se arrastam sem solução. Na década de 90, o Ministério da Educação buscou novos parâmetros para a estrutura curricular dos cursos universitários de história, refletindo um movimento esboçado em 86, com a publicação do Diagnóstico e Avaliação dos Cursos de História no Brasil (Sesu/MEC).  O documento apontava a necessidade de maior entrosamento entre os departamentos de História e as faculdades de Educação. Enfatizava também o efeito nocivo da instituição dos "Estudos Sociais", herdada do período militar.

No entanto, o Censo de 2000 revela a existência de cerca de 400 cursos de graduação em história, ainda polarizados no embate entre a especialidade e as disciplinas pedagógicas, assim como persistem até hoje algumas licenciaturas de Estudos Sociais. (Inep/MEC, Sinopse Estatística da Educação Superior. Censo 2000).


Fora de contexto

No campo das ciências, as falhas verificadas nos ensinos fundamental e médio começam a repercutir nos cursos de formação docente. Exemplo disso é a iniciativa do Instituto de Matemática da USP, que no ano passado implantou na licenciatura a "Matemática na Educação Básica", com o objetivo de enfrentar problemas que há tempos afligem o ensino da disciplina. No programa, temas como operações com frações e o conceito de volumes, que transcendem a forma restritiva da visão embasada em formulações, mas são tratados como tal.

Nas ciências naturais, o movimento é o mesmo. Implantou-se, na recém-criada unidade da USP Leste, a licenciatura em Ciências Naturais para o Ensino Fundamental. Reúne conhecimentos de astronomia, química, biologia, física, geociências, e procura preparar o professor com visão multidisciplinar.


Docentes carecem de introdução no mundo da alfabetização que os tire do senso comum e os habilite a trabalhar com diversas facetas do letramento Magda Soares, do Ceale/UFMG

É um movimento ainda tímido, mas que aponta para a superação da territorialidade acadêmica que impõe barreiras para que os cursos de formação inicial de professores teçam um alinhavo entre o conhecimento cotidiano, os saberes científicos e o conhecimento escolar.

O ensino de biologia, por exemplo, conquistou seu lugar na escola secundária ainda nos anos 30, marcado pelo mesmo debate que aparece hoje nos cursos de formação: a resistência em reunir em uma só disciplina as cadeiras de zoologia e botânica.

Com o conhecimento fragmentado ou carente de sistematização, falta a muitos docentes ferramentas para estabelecer os limites da transposição didática – a transformação do objeto do saber em objeto de ensino. Sem isso, é fácil cair nas armadilhas e reafirmar o senso comum, distante da construção científica e de sua referência original. O problema acontece e não apenas em biologia, mas também em química, física e matemática. Extrapola a atuação docente e acomete os livros didáticos, em particular os dirigidos ao ensino fundamental, o que não isenta o ensino médio das mesmas mazelas.

Não se pode ensinar sem saber o que, mas muitos conhecimentos são prerrogativa dos bacharelados e, se tanto, das licenciaturas de especialidades.

Os cursos de pedagogia, vistos ainda como construção de um saber menor, têm punido a formação do professor polivalente, que vai atuar na educação básica.

Outro debate aponta para o modelo de ensino, ainda carente de uma atividade didático-pedagógica menos prescritiva e mais sustentada em princípios investigativos e processos de reflexão.

Por essas e outras, o ensino das ciências está longe de enfrentar o desafio de contextualizar seus conteúdos e desvencilhar-se de uma prática livresca e distante de experimentação.

Autor

Valéria Hartt


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