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Da qualidade da educação – II

Os perigos da instrumentalização

Na coluna anterior procurei explorar os paradoxos decorrentes de uma concepção de ‘qualidade de educação’ que a vincula de forma imediata e fundamental a supostos meios de ascensão social e econômica, como a aprovação em exames vestibulares concorridos. Ao assim fazer, argumentava, destitui-se a experiência educativa de um sentido formativo próprio em favor de sua transformação em simples meio para a obtenção de um fim econômico que, paradoxalmente, não é buscado por qualquer valor intrínseco, mas como um novo meio para outros fins…

Caso se tratasse de um mero equívoco lógico e conceitual, suas consequências não ultrapassariam as empobrecidas discussões acadêmicas. Mas, impregnada em nossas representações e práticas escolares, essa concepção instrumental do papel da educação tem penetrado de forma perversa o cotidiano das escolas e os rumos das políticas públicas de educação. Tome-se como exemplo a identificação direta e imediata que se faz entre o desempenho em testes de rendimento da aprendizagem (Saeb, Enem, Saresp) e ‘qualidade da educação’. É evidente que a ‘qualidade da educação’ deve se materializar em aprendizagens que ampliem os conhecimentos dos alunos e ofereçam novas formas de atribuir sentido a suas experiências no mundo. É igualmente evidente que a posse de instrumentos confiáveis nos permite medir de forma relativamente fidedigna a posse de uma informação ou o grau de desenvolvimento de uma capacidade ou competência. O mesmo não se pode dizer do sentido educativo de uma experiência, como ler e interpretar uma poesia com seus alunos.

Experiências educativas não são mensuráveis por testes supostamente capazes de traduzir em grandeza matemática o rendimento da aprendizagem, embora possam ser estimadas a partir das experiências e expectativas de professores e alunos. De modo geral, professores e alunos sabem discutir e ajuizar sobre a excelência ou a pobreza de uma aula ou atividade. São potencialmente capazes de avaliar, ainda que só de forma retrospectiva, o impacto formativo de uma experiência ou o valor de um tipo de convivência que se estabelece no cotidiano das relações escolares. Abdicar dessa capacidade de julgamento crítico – e mesmo de seu dever – já deve ser considerado como indício de um grave fracasso no que concerne à qualidade de um processo educativo. E, no entanto, essa parece ser uma das consequências da adoção generalizada e acrítica desse tipo de teste como parâmetro único ou maior da ‘qualidade de educação’.

Mas há outras. Corremos o risco de transformar as atividades escolares em meros exercícios de treinamento para testes. De passar a adotar materiais didáticos menos pela convicção de seu valor cultural do que por sua suposta eficácia na preparação dos alunos para essa modalidade de avaliação. Se caminharmos rumo a uma escola na qual professores se vejam privados da oportunidade de criar critérios, julgar, escolher e se responsabilizar por suas escolhas, pouco adiantará nossa retórica acerca de objetivos educacionais como a autonomia, a responsabilidade e o espírito crítico. Parodiando Antonio Vieira, o ensinar que é falar, faz-se com a boca; o ensinar que é formar faz-se com a mão. Para instruir, bastam palavras; para formar o caráter são necessárias obras.


José Sérgio Fonseca de Carvalho


Doutor em filosofia da educação pela Feusp



jsfc@editorasegmento.com.br

Autor

José Sérgio Fonseca de Carvalho


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