NOTÍCIA
Debate educacional precisa superar a simples listagem de diagnósticos de pontos problemáticos, há muito tempo conhecidos por todos, e chegar a análises multifatoriais mais elaboradas e propositivas
Publicado em 23/09/2016
Notícias sobre a baixa qualidade da educação estão nas manchetes de jornais brasileiros desde pelo menos a década de 1990, quando o país começou a implementar avaliações em larga escala como instrumentos de aferição do direito de aprendizagem. Em 1995, por exemplo, soubemos, por meio do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), que alunos da antiga 4a série do ensino fundamental eram incapazes de determinar a divisão exata por números de um algarismo (a média na avaliação naquele ano foi de 190,6, associando os alunos ao nível 3 de compreensão matemática, numa escala em que 10 corresponde ao nível mais alto de competência). Pouco mudou na década seguinte. Em 2005, estudantes na mesma etapa educacional seguiam com as mesmas deficiências na disciplina (a média naquele ano caiu para 182,4).
A avalanche de informações trazidas pelas avaliações em larga escala trouxe também uma chuva de diagnósticos feitos por representantes do poder público e pesquisadores. Jornalistas que cobrem a área sabem de cor as explicações de suas fontes sobre o que produz a baixa qualidade da educação. Invariavelmente, mencionam-se as falhas nos cursos de formação docente; os baixos salários e a baixa atratividade da carreira docente; a inexistência de um currículo nacional; a ênfase excessiva em avaliações; a precária infraestrutura (saneamento básico e bibliotecas são inexistentes em muitas escolas país afora); a violência e a vulnerabilidade de vários territórios onde as escolas estão situadas; a falta de acompanhamento psicopedagógico nas instituições de ensino.
Proponho que “viremos o disco” desse texto pronto. Para além da identificação das causas da baixa qualidade, é necessário explicitar e debater soluções que dialoguem com os contextos educacional e político brasileiro. Tal avanço depende, fundamentalmente, de uma mudança de foco no trabalho de jornalistas e pesquisadores.
Não faltam evidências de como o debate sobre as políticas educacionais estacionou no óbvio na cobertura jornalística. Em março deste ano, a Folha de S.Paulo publicou uma reportagem sobre o Censo da Educação Básica 2015, na qual relata que 40% dos professores não têm formação para a disciplina que ensinam. O então ministro da Educação, Aloizio Mercadante, associou o contingente de docentes nessa situação aos “baixos salários” e à “falta de atratividade para a carreira”. O diagnóstico de Mercadante não trouxe nenhuma novidade: o ex-ministro listou dois dos oito itens mencionados. A reportagem, por sua vez, limitou-se a relatar os planos do Ministério da Educação (MEC) para corrigir o problema: mais cursos seriam ofertados em universidades e institutos federais e via Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (Parfor). Não há questionamento sobre a desconexão da proposta de Mercadante com o diagnóstico que ele próprio faz. A oferta de cursos parece uma solução pouco adequada para atacar a origem do problema: os baixos salários e a falta de atratividade da carreira. A reportagem também não conecta a proposta do ex-ministro ao contexto educacional do país: se sabemos que os cursos de formação docente são deficientes, como a solução de Mercadante daria conta do problema?
O reduzido espaço para a cobertura educacional nos jornais diários talvez explique a falta de profundidade do debate. Mas mesmo na mídia segmentada, focada somente na cobertura de educação, há exemplos como o mencionado acima. No início deste ano, a revista Educação publicou uma entrevista com a coordenadora de educação da Unesco no Brasil, Rebeca Otero. Sobre a baixa qualidade, ela disse: “Para a Unesco, isso tem muito a ver com a questão da formação do professor e com os fatores associados à educação que estão relacionados a questões sociais, à violência, às drogas, essas coisas que permeiam também, em especial, as áreas mais vulneráveis da população do nosso território, áreas onde temos uma qualidade menor da educação”. Assim como o texto da Folha de S.Paulo, a fala de Otero patina no óbvio: apenas lista o que se tem debatido à exaustão para explicar a baixa qualidade do ensino. O passo analítico seguinte seria mais interessante. O que especificamente está errado com os cursos de formação docente no pais? Em que estamos errando? Uma entrevista mais rica discutiria que a maior parte dos docentes provêm da rede pública na educação básica e de universidades particulares de baixa qualidade no ensino superior. Quais políticas públicas podem desatar esse nó? Se há debate no meio acadêmico sobre o tema, não chega à mídia.
Como jornalista de educação, conheci diversas fontes que traçam diagnósticos mais elaborados sobre as mazelas educacionais. Há alguns anos, entrevistei a pesquisadora Bernardete Gatti, da Fundação Carlos Chagas, para uma reportagem sobre o currículo escolar. Ela apresentou um diagnóstico forte e sucinto sobre educação no Brasil, que dimensiona o tamanho do desafio do formulador de políticas públicas. Identificou outro nó do meio educacional: não há diálogo entre os cursos de formação docente, o currículo nacional (na forma dos Parâmetros Curriculares Nacionais, os PCNs), as matrizes das avaliações em larga escala, e o que se ensina nas escolas. Na época, ela disse: “a formação é genérica. Há uma ausência de orientação curricular. Uma matriz de avaliação como se fosse o currículo. E não sabemos se a matriz corresponde ao que é ensinado nas escolas”. Ela vai além da identificação das falhas nas quatro pontas (formação, avaliação, currículo e sala de aula), apontando um desencontro sem tamanho entre políticas públicas que deveriam estar alinhadas.
A reportagem de capa de março de Educação traz outro exemplo positivo nesse sentido. Durante os quase dez anos em que acompanho o noticiário educacional, este foi o primeiro texto que li sobre como o aparato burocrático do Estado afeta a educação. Em uma de muitas falas interessantes, Gabriela Lotta, professora de políticas públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC), sugere um descompasso entre o que é concebido em Brasília ou nas secretarias estaduais e o que deve ser aplicado na escola. Ela aponta a existência de um dilema: ou se criam normas genéricas e adaptáveis, mas que não garantem boa implementação, ou normas por demais específicas, mais passíveis de implementação, mas que não garantem boa adaptação. Como fugir desse impasse em um país tão diverso como o Brasil?
O entendimento sobre o que emperra o avanço da qualidade de ensino começa pela identificação de nós como os mencionados por Gatti e Lotta. Diante da complexidade do sistema educacional brasileiro, surpreende que ainda valorizemos (ou que publiquemos) simples listagens de problemas identificados há pelo menos duas décadas. Sabe-se que a qualidade de ensino é ruim. Há clareza sobre diversas causas isoladas desse problema. É necessário dar um passo além e diagnosticar a inter-relação desses problemas e como eles se inserem na estrutura federativa do país e nas redes pública e privada de ensino. A mídia e a academia precisam mudar o foco para uma discussão aprofundada sobre como esses nós desembocam na baixa qualidade de ensino. Ao se contentar em publicar ou fazer análises que estão aquém desse ponto, jornalistas e pesquisadores perdem chances preciosas de pautar não só o debate, mas também as ações do poder público.
Cientistas políticos como Frank Baumgartner e Bryan Jones vêm estudando o poder de agenda da mídia no que diz respeito à formulação de políticas públicas também desde a década de 1990. Em um livro publicado em 1993 (Agendas and Instability in American Politics, sem tradução para o português), eles propõem que a atenção da mídia a determinados assuntos pode anteceder ou preceder alterações de foco do governo. Quando precede tais mudanças, a cobertura da mídia chama a atenção para assuntos que não estavam no radar de formuladores de políticas públicas. As descobertas que a literatura de ciência política e políticas públicas trazem para jornalistas e pesquisadores empenhados nessa tarefa são, portanto, animadoras. Análises multifatoriais e propositivas feitas por jornalistas e pesquisadores podem não só elucidar como também ajudar a desatar o nó da qualidade educacional. Trocando em miúdos: nossas análises podem melhorar o debate e a educação. O país precisa urgentemente dos dois.