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Ensino Médio

No gene da questão

Os rápidos avanços da genética pessoal aceleram a necessidade de respostas para questões éticas, legais e sociais relacionadas à possibilidade de prever doenças e características de humanos ainda não nascidos

Publicado em 05/11/2013

por Luciano Velleda







Corbis
Alunos visitam laboratório parte da exposição do Genoma Humano, nos Estados Unidos: eles aprenderam conceitos e processaram amostras de seu próprio DNA

Quando, no começo deste ano, o jornal americano The New York Times publicou artigo assinado pela atriz Angelina Jolie, em que ela anunciava ter feito uma dupla mastectomia para prevenir a possibilidade de desenvolver câncer de mama, os intrincados desafios da ciência genética romperam os tubos de ensaio dos laboratórios e chegaram ao grande público. O impacto da notícia de que a atriz mundialmente reconhecida por sua beleza e charme optara, por sua própria vontade, tirar os dois seios, só não foi maior do que o despertar da consciência de já ser possível realizar testes para estimar a probabilidade de desenvolver, ou não, inúmeras doenças. No caso de Angelina Jolie, o teste de seu DNA indicou que a atriz americana tem uma deformidade no gene BRCA1, o que em seu caso representava 87% de chance de ter câncer de mama. Com a retirada dos seios, esta probabilidade caiu para 5%.

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O atual avanço da medicina molecular tão em voga no momento é resultado do Projeto Genoma Humano, iniciado em 1990, e coordenado pelo Departamento de Energia do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos. Quando começou a ser implementado, os principais objetivos do projeto eram: identificar todos os genes humanos; determinar a sequência dos cerca de 3,2 bilhões de pares de bases que compõem o genoma do Homo sapiens; armazenar a informação em banco de dados; desenvolver ferramentas de análise dos dados; transferir a tecnologia relacionada ao projeto para o setor privado; e colocar em discussão os problemas éticos, legais e sociais que pudessem surgir com as pesquisas. Previsto para durar 15 anos, o Projeto Genoma Humano terminou em 2003, com dois anos de antecedência.


Saber ou não saber
Os inéditos resultados anunciados na ocasião deram início a um novo ciclo científico da humanidade, revelando à sociedade alguns dos mais surpreendentes mistérios da criação da vida. Entre os resultados apresentados ao mundo, o Projeto Genoma Humano indica que cerca de 50% da função dos genes identificados é desconhecida; a sequência do genoma humano é 99,9% exatamente a mesma em todas as pessoas; cerca de 2% do genoma codifica instruções para a síntese de proteínas; mais de 40% das proteínas humanas preditas compartilham similaridade com as proteínas de moscas e vermes; e algumas sequências gênicas específicas foram associadas a numerosas doenças e disfunções, incluindo câncer de mama, doenças musculares, surdez e cegueira.    


Os testes baseados no DNA do indivíduo estão entre as principais aplicações comerciais das novas descobertas da genética. Filha de uma mulher que morreu vitimada pelo câncer de mama, Angelina Jolie já suspeitava do risco que também corria. Graças aos resultados do Projeto Genoma Humano decidiu, então, testar seu DNA. Descobriu que de fato tinha elevada possibilidade de sofrer da mesma doença e resolveu agir com uma radical medida preventiva. Tais testes de genes podem diagnosticar e confirmar doenças, fornecer prognósticos e, com diferentes níveis de precisão, dar indicativos futuros de doenças que o indivíduo pode desenvolver ou transmitir aos seus filhos. Atualmente, há centenas de testes disponíveis para fins clínicos – e muitos outros em breve serão possíveis. A maioria desses exames é capaz de detectar mutações associadas a doenças genéticas raras e disfunções que apresentam um padrão mendeliano de herança (que depende de apenas um gene).


“É como um confessionário”
Embora extremamente importante para diagnósticos de doenças, os dilemas éticos associados à medicina molecular são muitos e, em grande parte, com exemplos ainda inimagináveis para a maior parcela da sociedade. A atriz americana foi beneficiada por poder diagnosticar a alta probabilidade de desenvolver uma doença para a qual há tratamento. Mas e se o diagnóstico fosse para uma doença em que não há cura? Valeria a pena saber? Tal questão é apenas uma de muitas que são levantadas por geneticistas de diversas nacionalidades, entre eles a doutora Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano, ligado ao Instituto de Biociência da Universidade de São Paulo (USP).


Para cada pessoa que a procura com desejo de testar seu DNA, Mayana costuma perguntar: “O que você quer saber? Por quê? O que vai fazer com essa informação? Como isso pode ajudar você?”. Afinal, diz ela, descobrir uma alteração num teste de DNA é algo que, dependendo da informação, pode causar sérios abalos psicológicos e familiares. Em palestra recente na Unicamp, a coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP afirmou que os testes de DNA estão cada vez mais viáveis financeiramente e em breve custarão cerca de US$ 1 mil dólares, aumentando o número de pessoas interessadas. “A sala do aconselhamento genético é como um confessionário”, disse ela, em recente palestra na Unicamp.


Na ocasião, Mayana listou uma série de dilemas éticos e até mesmo filosóficos em torno do tema. Para além de questionar a vantagem ou não de se tornar conhecedor da propensão de desenvolver no futuro uma doença para a qual não há cura no presente, a respeitada geneticista brasileira cita casos em que o pai testa o DNA do seu filho por algum motivo de doença e o resultado revela não ser ele o pai biológico da criança. “Há casos em que a verdade pode desestruturar uma família”, opina, revelando que a incidência de falsidade paterna é de 10%. Em outras situações, Mayana conta que alguns pais se sentem culpados ao saberem que passaram uma mutação genética para o filho; e há mães que decidem interromper a gravidez. “E se a pessoa faz o teste para investigar uma determinada mutação e o resultado indica outra? Deve-se contar ou não?”


O poder da informação
A utilização dos resultados obtidos por meio de testes de DNA ainda carece de legislação em muitos países, inclusive no Brasil. Na Inglaterra, por exemplo, já há casos de planos de saúde privados que exigem teste de DNA do cliente antes de efetuarem a cobertura médica, com o intuito de avaliar as chances do desenvolvimento de diabetes, doenças cardíacas, obesidade ou tipos de câncer. No Brasil, até o momento, não há regulamentação para o tema. O mesmo vale para a escolha de sexo do bebê. Enquanto nos Estados Unidos e na Inglaterra é proibida, em Israel é permitido para casais que já tenham a partir de quatro filhos do mesmo sexo. No Brasil, só há lei sobre o tema para tratamento de fertilidade. Em um cenário de vácuo normativo, Mayana Zatz reflete: “Será que empregadores poderão exigir testes de seus funcionários para saber probabilidades de doenças, tendências criminais ou níveis de inteligência?”, questiona.


No âmbito da reprodução, a especialista brasileira conta que há nos Estados Unidos determinada empresa que permite pais surdos  optarem por ter filho também surdo “para se comunicar melhor”. Condição semelhante existe para pais anões que querem ter filho também anão. Ainda nos Estados Unidos, a empresa 23andMe acabou de anunciar, na primeira semana de outubro, a patente para um teste de DNA que permite a escolha de características do bebê a partir de espermas e óvulos doados. A polêmica consiste na possibilidade de escolhas consideradas fúteis e triviais por especialistas em genética, tais como a cor dos olhos, a estatura, a expectativa de vida e até mesmo o porte atlético do bebê a ser concebido. Para Mayana Zatz, este tipo de utilização da medicina molecular é inadmissível. “Filhos não são brinquedos”, declarou a geneticista da USP ao jornal Folha de S.Paulo.


Além de não concordar com o anúncio da 23andMe, empresa fundada com capital de US$ 3,9 milhões do Google e outras empresas de biomedicina da Califórnia, Mayana também questiona a possibilidade de a empresa cumprir suas promessas. Segundo ela, é possível selecionar características com herança mendeliana, de apenas um gene, como a cor dos olhos. Porém, no caso de aspectos como longevidade ou predisposição atlética, que dependem da combinação de uma série de fatores, “é impossível”.


O risco da eugenia
Durante a palestra na Unicamp, Mayana narrou o caso de um jovem americano nascido a partir da experiência de fertilização com esperma selecionado de um “banco de talentos” desenvolvido pelo milionário americano Robert Graham. O banco funcionou de 1980 a 1999, e 215 bebês nasceram a partir da inseminação do esperma de homens inteligentes, entre eles dois prêmios Nobel. No livro The Genius Factory, o autor David Plotz conta o que houve com 30 destas 215 crianças. Uma deles, o hoje jovem Doron, declarou ao autor: “A ideia de fabricar gênios é cretina. O fato de eu ter QI alto não me torna melhor. Há uma enorme expectativa em torno de mim e eu não fiz nada de especial. Não acho que o fato de ser inteligente te faz uma pessoa melhor. O que faz diferença é ser criado por uma família que te ama, sem pressões ou expectativas. Se eu tivesse um QI de 100 e não de 180, não faria diferença alguma na minha vida”.


Nesse cenário que lembra filmes de ficção científica, Mayana Zatz faz questão de afirmar que ninguém deve ser testado, e que realizar um teste genético é decisão exclusiva do adulto ou dos pais em casos em que o filho é portador de doença genética a ser diagnosticada. A geneticista da USP só recomenda testes de DNA em pessoas “que têm ou tiveram uma criança afetada ou parentes próximos com doenças genéticas na família, casais que tiveram uma criança malformada, abortos de repetição (dois ou mais) ou em alguns casos de casamentos consanguíneos”.


Atualmente são conhecidas mais de sete mil patologias humanas, mas não há testes para detectar todas elas. Segundo Mayana, o teste pode excluir a possibilidade de desenvolvimento de determinada doença, mas jamais haverá a garantia plena de que um casal terá um filho “normal”, ou que não vá desenvolver as chamadas doenças de início tardio, como Alzheimer ou Parkinson. “A nossa filosofia é a de não testar pessoa saudável para doenças de início tardio enquanto não houver tratamento para elas”, esclarece. Para a geneticista, o desafio é saber se teremos ou não sabedoria para lidar com o conhecimento do nosso genoma. “Essa é a grande questão.”







Pesquisas continuam

O sequenciamento do DNA humano, publicado em 2003 como resultado do Projeto Genoma Humano, desde então está disponível para os cientistas do mundo todo, e tem sido a base de diversas pesquisas engajadas na descoberta de genes associados a doenças. Muitos outros projetos de genoma já foram realizados na última década, como de micróbios, plantas e animais, e outros tantos estão em curso, permitindo o cruzamento de informações e comparações entre os organismos. A pesquisa biomolecular do Brasil tem ocupado lugar de destaque neste amplo cenário do estudo genético. Com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), diversos projetos de genoma já foram e continuam sendo realizados no país. Um dos primeiros de relevante sucesso foi o sequenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, encomendado pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. A bactéria atinge as uvas da região vinícola da Califórnia. Instituições de pesquisa brasileiras já atuaram também no mapeamento genético do gado bovino, e ainda no genoma do café, do eucalipto e da cana-de-açúcar, com fins de aumentar a produtividade, criar culturas mais resistentes a doenças e insetos, desenvolver biopesticidas, entre outras possibilidades. No campo da saúde, o Genoma Câncer, projeto executado pela Fapesp em parceria com o Instituto Ludwig de Pesquisas em Câncer, com sede nos Estados Unidos, identificou 950 genes relacionados à doença. O resultado abre caminho para a compreensão dos diferentes níveis de agressividade dos tumores e o consequente desenvolvimento de novos tratamentos mais eficazes.

Autor

Luciano Velleda


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