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No país de Salazar

Os professores são, ao mesmo tempo, os maiores aliados e inimigos de outros docentes

Publicado em 10/09/2011

por José Pacheco

Nos idos de 70, fui trabalhar numa escola do Portugal profundo, chão de terra, paredes-meias com uma corte de gado. Quarenta e oito maravilhosas crianças, mãos calejadas do uso da enxada, senhoras de segredos que eu sequer imaginara.
Trocamos saberes: ensinaram-me como conduzir ovelhas e a produzir queijo; ensinei-lhes os saberes dos livros que eles não tinham podido ler. Juntei uma pequena biblioteca, enquanto eles me abriam páginas do livro da Natureza. Acatávamos a recomendação do Comenius de levar a escola para debaixo da árvore (ou para debaixo da mangueira, como faz o educador Tião Rocha). E, assim, fomos
aprendendo uns com os outros, mediados pelo mundo…

até o dia em que me pediram que lhes dissesse
de onde vinham os bebês

.

Levei-lhes dois livrinhos de uma editora católica, que abordavam o assunto em pezinhos de lã. Eu sabia o caminho que pisava. Na bucólica paisagem, os toscos casebres abrigavam famílias fustigadas pelo abandono de séculos, morava um povo submisso aos desígnios de Deus e dos "coronéis" locais. Poderia faltar o pão, mas sobravam piolhos e preconceitos.

Os meus alunos aprenderam aquilo que a ignorância havia infectado de malícia. Expliquei-lhes aquilo que os seus pais sentiam vergonha de explicar. Mas, muito cedo, aprendi que o maior aliado de um professor é o outro professor e que o maior inimigo é, também, o outro professor. No dia seguinte, a escola estava vazia e um padre estava à minha espera.

Disse-me que algumas professoras tinham espalhado o boato de que o novo professor tinha posto crianças nuas a imitar relações sexuais. A população armou-se de foices e gadanhos e foi ao meu encontro. Escapei do linchamento por acaso, porque, nesse dia, fui por outro caminho. O padre protegeu-me da turba furiosa, dando-me guarida na sua residência. E, à noite, com a sua providencial ajuda, pude reunir os pais dos meus alunos.

Na aldeia, não havia energia elétrica. As luzes das tochas e das velas projetavam sombras nas paredes esburacadas, acentuavam os contornos dos rostos furibundos que me rodeavam. Pedi às crianças que falassem. Elas disseram que nada daquilo que as professoras disseram era verdadeiro, que o professor apenas tinha falado de dois livros, livros que vieram da igreja.

Desmontada a trama urdida pelas professoras, os pais exageraram nos pedidos de desculpa. A partir desse dia, com generosidade (e remorsos?) ofereciam-me ovos, carne de porco, queijo fresco.. Também me ofereceram casa gratuita, para lá ficar a viver. Mas decidi ir embora. Aqueles aldeãos mantiveram-se súditos dos senhores das terras e das almas. E a simplicidade dos costumes era terreno fértil para o fomento da ignorância.

Razão tinha Ivan Illich quando disse haver quem medisse o seu êxito pelo fracasso dos demais. Também na educação, a ignorância é condimento da sanha destrutiva contra qualquer projeto que escape à mediocridade reinante. A Escola da Ponte que o diga.

Hoje, os meios são mais sofisticados, mas em nada se distinguem dos de antigamente. Pseudônimos e anonimatos protegem os que atiram a pedra e escondem a mão. E a deturpação da realidade – à mistura com uma ponta de verdade, para a mentira ser segura – produz os mesmos nefastos efeitos. Os insultos e as "críticas" de certos comentadores das minhas crônicas não me surpreendem, como não me surpreendeu o fato de o povo português ter eleito Salazar como o cidadão mais ilustre da sua história. Em Portugal, a ditadura prolongou-se por 48 tenebrosos anos. Depois, os dinheiros da Europa travestiram-na de democracia. Hoje, são inúmeros os supermercados e escasseia a cidadania; dispomos de novas estradas para irmos a lugar nenhum.


José Pacheco



Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)



josepacheco@editorasegmento.com.br

Autor

José Pacheco


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