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O estímulo ao pensamento

Uma reflexão sobre como a história das ideias pode auxiliar as práticas dos docentes no campo das ciências naturais

Publicado em 10/09/2011

por Rogério da Silva Fonseca

Há na literatura sobre o ensino de ciências algumas queixas sobre o que podemos chamar de um "desvio de postura" dos profissionais responsáveis pela transmissão do conhecimento científico, como os professores e os escritores de livros didáticos. O desvio sugerido é aquele que acontece quando o homem de ciências começa a migrar sua forma de pensar para o estilo dogmático, muito mais adequado aos religiosos.

Não é difícil constatarmos essa mudança de postura no cotidiano escolar. Cada vez mais professores "pregam" o conhecimento para os alunos, como se fossem padres ou pastores de igreja evangélica. O conhecimento começa a ser tratado como dogma, como verdade absoluta e inquestionável. Tão inquestionável que começamos a abrir mão das evidências que norteiam os conceitos, hipóteses, teorias e modelos que ensinamos. Na sala de aula, infelizmente, os professores acabam por dar ao aluno o conhecimento pronto e acabado, mastigado e digerido. O que chega aos estudantes é somente o produto final do trabalho científico, a informação. Professores que já fizeram tal caminho desviante começam a enxergar o aluno como um depósito de informações, deixando-o em uma situação na qual a passividade é a única alternativa.

Essa maneira informativa ou dogmática de ensinar se faz presente desde o ensino fundamental até a graduação universitária. Reclamações de alunos são frequentes. No ensino superior, os alunos não aguentam mais os professores do tipo Power Point, software excelente para quem sabe usar, mas um verdadeiro tormento para o estudante quando nas mãos de professores dogmáticos. Resulta numa enxurrada de informações, condensada em uma sucessão de slides, exibidos sem pausa e, consequentemente, sem dar tempo para reflexão.


Construção conjunta


O interessante do ensino de ciências é quando há interação entre professor e aluno, de maneira que um ajude o outro na construção do conhecimento, bem ao modo do que recomenda o construtivismo de Jean Piaget. E uma ótima maneira de se fazer isto é usando a história da ciência como guia condutor da aula. Tudo tem uma história. Nenhum conceito ou modelo nasce do nada.

Mas quantos são os alunos que têm conhecimento das ideias construtoras dos modelos e conceitos que lhes são passados? Aliás, quantos são os professores que sabem isso?
Infelizmente, à pergunta acima, a resposta me parece ser "poucos, bem poucos". Respondo isto com um bom grau de certeza, pois tenho o costume de fazer pequenas pesquisas informais com professores universitários de bioquímica e com docentes que ministram ciências em classes de ensino fundamental. Aos primeiros, fiz um dia destes algumas perguntas estruturais sobre o conhecimento que propalam ter. Perguntei a eles, por exemplo, se sabiam dizer quais evidências nos levaram a pensar ser a membrana plasmática uma bicamada lipídica. Por que não uma monocamada ou uma tricamada como modelo? Eles não souberam responder. O mesmo se passa no ensino fundamental. Outro dia questionei entre colegas professores de ciências por que o modelo heliocêntrico foi tido como melhor que o geocêntrico. Ninguém soube dizer. Ninguém consegue citar sequer uma evidência científica para explicar o porquê de o heliocentrismo ser tomado como o correto. Nos livros de ciências para ensino fundamental também não há nada citado. Geralmente, o que é exposto nos livros é o conflito travado entre a Igreja e os intelectuais do século 16, tais como Nicolau Copérnico, Johannes Kepler, Giordano Bruno e Galileu Galilei. Mas nada de justificar a proposta do modelo por eles defendido.

Sucessivas gerações, uma após a outra, estão aprendendo ciência como dogma. Se no livro está escrito que a membrana plasmática é uma bicamada, então tudo bem, é uma bicamada e ponto final. Se no livro estivesse dizendo que se trata de um sanduíche de proteínas com lipídeos no meio, como já foi proposto na década de 1960, então seria o modelo sanduíche o aceito. Pronto. Depois é só beber o vinho e tomar a hóstia e está todo mundo formado.


Do dogma à reflexão

A abordagem de ensino que chamamos histórico-filosófica me parece ser a solução para que passemos de uma postura dogmática para uma reflexiva. Ao trilharmos a história da ciência, percebemos as dificuldades nas formulações de conceitos e construção de modelos. Esse exercício mental ajuda professor e aluno a desenvolverem um senso crítico racional aguçado. Aqueles alunos que seguirem carreira científica serão melhores cientistas. Aqueles que seguirem qualquer outra carreira serão, muito provavelmente, melhores profissionais, seja lá o que façam.

Encher a cabeça dos alunos de material puramente informativo para que estes decorem até a hora da prova não nos leva a lugar nenhum. Estimular o pensamento é muito mais vantajoso. Se quisermos construir uma nação independente em ciência e tecnologia, precisamos de mentes pensantes, e se quisermos cidadãos mais conscientes, também. O ensino de ciências pode ajudar nesta direção. Basta para isto que professores se empenhem no resgate do âmbito histórico da ciência que ensinam e no incentivo ao processo de questionamento e reflexão em sala de aula.

Os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, autores do livro A árvore do conhecimento – As bases biológicas da compreensão humana (Editora Palas Athena), nos brindam com uma bela analogia a respeito do conhecimento. Dizem eles que o conhecimento é uma árvore. E, como tal, é provido de raiz, caule, galhos e folhas. Não há árvores que só tenham folhas, assim como não há conhecimento autêntico feito somente de conteúdo informacional. Em uma árvore é necessário que se tenha raiz para fixação ao solo e absorção de água e sais minerais, caule e galhos para sustentação e exposição das folhas ao sol de modo que estas desempenhem sua função de síntese de matéria orgânica, alimentando, assim, toda a estrutura. Desta forma é o conhecimento. É necessário que saibamos as raízes que nos fazem pensar como pensamos, os contextos sociais e tecnológicos nos quais nasceram as ideias que sustentam os conceitos e modelos defendidos na atualidade. Isto é condição indispensável para termos uma ciência viva, que possa florescer e dar frutos futuros. Caso contrário, estamos lidando com um pseudoconhecimento, que nada mais é do que folhas ao vento.

Nesta senda de antidogmatismo, vale a pena citar um pensamento de Piaget que parece ser bastante adequado a nós professores de ciências:
"(…) cada vez que ensinamos prematuramente a uma criança alguma coisa que poderia ter descoberto por si mesma, esta criança foi impedida de inventar e consequentemente de entender completamente.(…)".

É exatamente essa situação sublinhada por Piaget que devemos evitar, que o dogmatismo no ensino de ciências venha a matar a curiosidade do aluno. Tomo aqui a liberdade de sugerir que onde se lê criança na citação leia-se estudante, fazendo com que essa ideia se estenda a qualquer idade.

Em um mundo imediatista como o que vivemos, muitas vezes acabamos nos vendendo ao mercado e, sejamos sinceros, nos entregamos à preguiça. Não à toa, alguns colégios adotam material apostilado de cursinhos para ensinar seus alunos. De forma geral, as apostilas são lotadas de conteúdo meramente informacional. E aí o ensino de ciências fica chato. Acaba reduzido a decorar fórmulas, modelos, conceitos etc.


Uma nova abordagem


Penso não ser esse o melhor caminho. Não podemos entrar na onda dos fast-foods, fazendo das escolas instituições do tipo fast-ideas. Temos um compromisso com a qualidade do ensino, com o "valor nutricional" do que fazemos. É necessário que pensemos em abordagens mais humanas para ensinar ciências, tal qual é a histórico-filosófica. É necessário rompermos com o imediatismo e com o dogmatismo, adotando uma postura mais reflexiva, da qual jamais
deveríamos nos desviar.


Rogério da Silva Fonseca


é biólogo graduado pelo Instituto de Biociência da Universidade de São Paulo, mestre em Ciências pela Fundação Antônio Prudente (Hospital do Câncer) e doutorando do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da USP

Autor

Rogério da Silva Fonseca


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