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Gestão

Onde estão os professores negros?

A maioria das IES transformou a obrigatoriedade de abordar as relações étnico-raciais em palestras e cursos esporádicos e não tm ações antirracistas consistentes

Publicado em 18/11/2022

por Sandra Seabra Moreira

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“Muitos alunos negros me procuram para dizer o quanto é importante que eu seja professora deles, por eu ser uma mulher negra e que defende essa pauta. Há os que nunca tiveram um professor negro antes”, diz a jornalista e professora Márcia Maria da Cruz, única pessoa negra do departamento de jornalismo da Faculdade Promove, em Belo Horizonte (MG). Ela deu aulas na UFMG, na PUCMG e conta que sempre esteve entre os pouquíssimos professores negros dessas instituições. “Isso acontece nas universidades públicas e privadas. É uma lacuna real que existe no ensino superior de maneira generalizada.”

 

Márcia Maria da Cruz: “a falta de professores negros é generalizada no ensino superior”

 

Rubens Campos e Rita Donato também são professores da área de comunicação social e trabalham na UniSant’Anna, na capital paulista. “Quando comecei a lecionar no ensino superior, em 2007, contava nos dedos quantos professores pretos havia. Num universo de 120 professores, mal chegava a dez pessoas pretas; não autodeclaradas, mas aquelas que se via, que se podia contar. Por um período, aumentou esse número, mas ainda pouco. Depois da pandemia, o número caiu. Hoje em dia, continuo contando nos dedos”, fala Campos. Rita também é professora na Universidade Metodista de São Paulo e atesta o mesmo cenário nas duas universidades.

 

Leia: Saúde mental precisa da diversidade

 

De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Semesp, Márcia, Campos e Rita compõem os 22,6% de professores que se declararam negros ou pardos nas instituições de ensino superior privadas do País, em 2020. Na rede pública, o percentual é de 24,7%. A percepção dos professores entrevistados é a de que, em suas instituições, esse percentual é mais baixo. Eles também atestam que não há atividades ou iniciativas significativas voltadas às questões da diversidade étnico-racial. Campos comenta a existência de uma disciplina eletiva voltada ao tema: “No dia da prova, a sala estava vazia”. Também acontecem palestras eventuais. Rita menciona atividades desenvolvidas próximo ao dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Não há nas IES, de modo geral, a consciência da necessidade de ações antirracistas efetivas.

 

Para Rubens Campos, o tema “incomoda” (Foto: arquivo/revista)

Para Campos, a invisibilidade ou pouco interesse no tema tem a ver com o incômodo que ele causa

 

Ele cita Laurentino Gomes, em especial o Volume III da trilogia Escravidão, para entender o Brasil. “Ali o autor escreve que, a partir do século 19 até os anos 30, o País assumiu de vez uma cara, e é a que ficou até hoje: acabou a escravidão, mas os negros devem se manter no mesmo lugar. Essa forma de pensar em relação ao negro não mudou. O racismo está na cabeça das pessoas, no dia a dia, no comportamento das instituições.” Apesar disso, ele diz, houve melhora nos últimos anos em relação ao contexto que perdurou ao longo do século 20. E, apesar de o tema incomodar, ou justamente por isso, a discussão acerca do racismo precisa existir.

Uma mudança importante em curso é o aumento de estudantes pretos e pardos no ensino superior. De acordo com pesquisa do Instituto Semesp, o percentual de alunos matriculados no ensino superior brasileiro que se declararam pretos ou pardos chegou a 45,7%, segundo dados de 2020, sendo 44,8% na rede privada e um pouco mais na rede pública, 48,8%. Em 2015, esse percentual era de 41,6%, portanto, houve aumento de quatro pontos percentuais. É o resultado das cotas nas universidades públicas e programas como Prouni e Fies nas universidades privadas. Esses alunos buscam referências, inspiração, identificação.

 

Rita Donato é professora na Universidade Metodista de São Paulo (Foto: arquivo/revista)

Rita está cursando o doutorado e seu tema é o empoderamento da mulher negra

 

Ela conta que passou por processo de transição capilar, parou de alisar os cabelos e os deixou crespos:“por causa do cabelo crespo, é diferente a forma como os alunos me percebem e aceitam. É muito nítida a identificação das meninas negras comigo. Percebo que, pelo menos na área da comunicação, há muitas meninas negras se posicionando, ocupando espaço. Elas se aproximam e buscam questões fora da sala de aula”. Há o aumento no interesse dos alunos em relação às questões da diversidade étnico-racial: “penso que os alunos confiam mais quando é uma pessoa negra falando”, afirma Rita. Novas epistemologias e conhecimentos mais próximos das perspectivas desses estudantes são a grande mudança, opina Márcia.

 

Permanência na vida acadêmica

 

Na Metodista, a maioria dos alunos bolsistas é negra, conta Rita. Eles não conseguem sequer estagiar: “Eles trabalham em supermercados, por exemplo, em entregas, e não podem abrir mão de seus ganhos”. Alexsandro Santos, professor de mestrado e doutorado nos programas de pós-graduação em educação e no mestrado profissional em formação de gestores, da Universidade Cidade de São Paulo (Unicid), liderou pesquisa no Centro de Estudos e Memória da Juventude, acerca da lei de cotas, com enfoque racial. É fato que a implantação das cotas promoveu um avanço no acesso de pessoas negras à graduação, mas ele detalha: “Isso resolve uma parte do problema, a segunda parte é justamente a permanência desses estudantes na graduação e na pós-graduação”.

A garantia de permanência desses estudantes na graduação passa por três eixos de ação, de acordo com Santos: “Apoio financeiro, com bolsas de permanência remunerando estudantes pobres e negros, que podem estar vinculadas a prestação de serviços ou realização de atividades acadêmicas. O segundo eixo de ação é a criação e o fortalecimento, dentro das IES, de setores dedicados a fazer a escuta sensível e a propor políticas para o acolhimento desses estudantes e enfrentamento das situações de racismo estrutural que ainda acontecem dentro da universidade. São núcleos de diversidade, de estudos afro-brasileiros, que tenham o poder de propor medidas para a IES se corrigir. O terceiro eixo é apostar nos estudantes negros para que possam se tornar professores, um olhar atento para esses alunos no recrutamento das IES, uma espécie de banco de talentos com ações afirmativas”.

 

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Na pós-graduação, Santos aponta dois movimentos simultâneos que incentivam as instituições a contratar professores negros:

“A pauta da diversidade racial foi assumida nas estratégias da alta gestão das organizações. No caso da Unicid, em particular, há metas específicas para ampliar a diversidade racial. Eu percebo esse aumento, mas é um processo muito lento. Outra questão é que os critérios de avaliação da Capes têm exigido compromissos dos programas de pós-graduação, por exemplo, o percentual de professores negros no programa é uma métrica”.

 

Há, entretanto, fatores que continuam impondo barreiras para a ascensão na carreira acadêmica

 

“Na área da educação, formamos muitos mestres e doutores negros, mas, nos processos de seleção e contratação, as exigências de produção acadêmica para se manter no mercado impactam muito a desigualdade racial no Brasil. De um lado, tem o que Cida Bento chama de pacto narcísico da branquitude, que ainda opera nas IES. Por outro lado, há a dificuldade das pessoas negras de responderem às exigências meritocráticas da pós-graduação. Vou dar um exemplo: nenhum programa hoje contrata para dar aula na pós-graduação alguém que não tenha artigo publicado em uma revista classificada como A1. Publicar numa revista dessas requer um tempo para produzir pesquisa e custa caro para quem não está empregado, então, disputar vaga implica para além do título de doutor, que é só o primeiro passo.”

Alexsandro Santos, professor de mestrado e doutorado (Foto: arquivo/revista)

Entre as ações afirmativas que podem realmente mudar esse cenário, Santos aponta o programa de pós-doutoramento para pesquisadoras negras brasileiras, da Universidade de São Paulo (USP), que este ano distribuiu três bolsas de pós-doutorado no valor de R$ 8.479,20.

 

Editais para contratação de professores negros também contribuem

 

Por exemplo, o Grupo Ânima, com 18 mil educadores, 18 instituições de ensino superior e mais 570 polos educacionais, já lançou dois editais neste ano para contratação exclusiva de professores negros. “Cerca de 50% da população brasileira é negra. Nossa intenção é chegar a isso no quadro de professores. Há uma demanda dos estudantes negros e há um reconhecimento nosso da importância dessa presença, é um preceito pedagógico da Ânima. Contratamos 100 professores esse semestre e não facilitamos em nada, não baixamos a régua para contratá-los”, diz Kika Gomes, diretora de desenvolvimento organizacional.

Kika diz que não é uma ação fácil e atesta a resistência de parte da instituição. “Professores negros que já estavam aqui, supergabaritados, apoiam os que estão chegando.” Para abrir o diálogo, um grupo de discussão sobre as relações étnico-raciais se reúne semanalmente, com a participação de pessoas de diferentes áreas e hierarquias e também é responsável pelas ações afirmativas.

 

IES ainda patinam na gestão da diversidade

 

Não faz muito tempo, Nelson Piquet derrapou feio ao proferir uma fala racista para se referir a Lewis Hamilton. Pedro Bravo, presidente da Associação espanhola de empresários de jogadores, igualmente o fez em relação ao jogador brasileiro de futebol Vinicius Jr., do Real Madri. Esses casos ganham grande repercussão, é um avanço que sejam amplificados. Apesar dos pedidos de desculpas públicos – muito parecidos, por sinal, e protocolares – será difícil dissociar a imagem dessas pessoas às suas falas racistas. Também os casos de racismo que ocorrem cotidianamente, em comércios, nas ruas, vêm sendo denunciados na mídia. Youtubers e influenciadores, quando cometem erros similares, chegam a perder patrocínios. As grandes empresas, zelosas de suas imagens, também estão atentas ao que dizem seus representantes, pois declarações racistas causam prejuízo à imagem pessoal e corporativa.

Nesse contexto, é de estranhar que as relações étnico-raciais não sejam contempladas na formação de futuros profissionais. “Onde você vai aprender sobre isso se nas fases de socialização ou formação acadêmica sequer tomou contato com o tema? O estudo das relações étnico-raciais é obrigatório”, fala José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, única do País exclusiva para estudantes autodeclarados negros e que completará 20 anos em 2023. Ele conta que a luta antirracista no Brasil ganhou mais força a partir da Constituição de 1988, também por conta das discussões da Conferência Mundial contra o Racismo e Xenofobia de Durban, na África do Sul,em 2001:

“No conjunto, isso promoveu as primeiras grandes mudanças na agenda tanto do ensino superior público quanto do privado. Veio a Zumbi dos Palmares, junto com ela o grande debate em torno do reconhecimento da exclusão provocada pelo racismo e a necessidade de promoção de medidas de combate a ele.Vieram as cotas nas universidades públicas federais, depois extrapolaram para as universidades públicas estaduais e algumas municipais e, por fim, chegou, inclusive, à universidade privada através do Prouni”.

 

Leia também: A diversidade em sala de aula faz diferença na formação dos alunos

 

Vicente aponta a alteração na LDB, por meio da lei no 10.639/03, instituindo a história do negro e da África com uma dimensão obrigatória, e, no ensino superior, a necessidade de que todas as instituições cumprissem a disciplina de relações étnico-raciais.

Quase duas décadas depois, diz Vicente, “nós continuamos com as dificuldades que já tínhamos quando se promulgou a lei, com resistência formal ao próprio tema ou aos pressupostos da lei. Temos alguns professores que têm simpatia com essa agenda e colocam um esforço adicional para cumpri-la e instituições inteiras que não têm qualquer tipo de simpatia. Essa é a questão da educação brasileira, o grande desafio que se coloca para todo educador, toda instituição de ensino e para o Estado brasileiro, que precisa de uma educação em que todos estejam representados, que todas as histórias sejam internalizadas, acolhidas, que a diversidade, pluralidade do povo brasileiro seja valorizada, prestigiada”.

José Vicente, reitor da Zumbi dos Palmares (Foto: arquivo/revista)

A Universidade Corporativa Semesp criou o curso Diversidade, equidade e inclusão, ministrado este ano a seus associados, gratuitamente. No ano passado, foram ministrados cursos alinhados à agenda ESG – Environmental, Social and Governance: Equidade de gênero e liderança feminina, em parceria com o grupo Mulheres do Brasil e Estratégias antirracistas, com a equipe da Universidade Zumbi dos Palmares. Marcio Sanches, coordenador da Universidade Corporativa Semesp, conta que a iniciativa desses cursos está vinculada à valorização desses temas na agenda das organizações comerciais que lideram os mercados.

Nesse sentido, explica, é importante que as IES conheçam os temas em suas práticas de gestão, educando e capacitando suas equipes para incorporar atitudes nos processos, como também incluir esses temas nos cursos. A ideia é que as IES se capacitem para operar nesse padrão e também formem profissionais com competências para trabalhar em organizações que incorporam essa agenda. Sanches avalia que a adesão aos cursos foi boa, mas reitera a percepção de Vicente: “A sensação é que as IES ainda não se atentaram para a importância do tema”.

A reportagem foi capa da edição 270 (outubro/2022) da Revista Ensino Superior. Assine.

Autor

Sandra Seabra Moreira


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