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Arte e Cultura

Onde formar literartistas?

O literartista é mais do que um escritor, é aquele que escreve porque não pode renunciar a escrever

Publicado em 15/02/2016

por Gabriel Perissé

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“Literartista” é uma palavra que ainda não consta dos nossos dicionários. Não confundir com “literatista”, que é o escritor medíocre, aquele que faz literatices e não literatura.

A diferença é pequena entre as duas grafias, mas é grande no campo semântico. O literatista pensa que é artista da palavra, mas não possui nem o dom, nem a técnica, nem a obsessão. O literartista é mais do que um escritor. Para não instaurar a confusão neste texto, deixemos de lado o literatista (sem “r”). Quero pensar tão somente no literartista, e em como podemos formá-lo em nossas escolas.

O literartista, em primeiro lugar, é aquele que escreve porque não pode renunciar a escrever, como ensinava Rilke. É um impulso que se impõe. O literartista escreve romances, ou poemas, ou contos, ou crônicas, ou ensaios, ou tudo isso e mais um pouco. Vive na linha, mas sempre se arrisca nas entrelinhas. Respira metáforas. Alimenta com suas letras aliterações e outras tretas. Vai de rima em rima até a próxima estrofe. Vai de ponto em ponto até a próxima página. Tem afeição por determinadas palavras. Odeia outras. Sua relação com as palavras é visceral. Qualquer falante pode simpatizar ou não com este ou aquele termo, mas no caso do escritor seu amor e seu ódio verbais têm motivos mais profundos. Motivos de ordem profissional.

A propósito de palavras que escritores gostam de usar, há um curioso livro publicado em Portugal, em 2007, reunindo textos de vários autores sobre sua palavra favorita. O organizador, Jorge Reis-Sá, gosta da palavra “árvore”, o poeta gaúcho Fabrício Carpinejar gosta da palavra “casa”, e outros tantos gostam de outras tantas como “tempo”, “coisa”, “caos”, “exílio”. Todo professor deveria gostar da palavra “educação”?

A outra atividade

Para o literartista, no entanto, escrever não é de todo suficiente. Outros materiais fazem seu chamado e conquistam-lhe a criatividade. Além de escrever, o literartista dedica-se a pelo menos uma outra atividade artística.

Há escritores que são pintores, como o carioca Oscar Araripe, que desenhou, com palavras, sua autoimagem de literartista:
Amo a linha, a sabedoria da mão, a exatidão do traço, o discernimento, a definição. Eu amo as coisas claras, e separo as cores das tintas – e quero a paisagem sem o homem, a paisagem do outro homem, o momento em que a arte e a natureza sejam um só – a caligrafia igual à pintura; a pintura igual à natura: a cura, a pintura, a natura. Eu quero a solidão da pintura; o seu silêncio (ainda maior que o da paisagem), o meu silêncio – e acho pintar como calar – um momento de ouro; e só.

Há escritores que são cineastas, como Jean Cocteau (que era também ator de teatro e escultor). O filósofo Gabriel Marcel escrevia peças teatrais e compunha músicas. O pintor Pablo Picasso, que foi escultor, ceramista, cenógrafo, ousou igualmente na poesia. O escritor Jorge Mautner canta e toca violino. Chico Buarque de Holanda é músico, letrista, dramaturgo e romancista. Ziraldo escreve, desenha, é pintor, dramaturgo, caricaturista, humorista. O escritor português Valter Hugo Mãe é artista plástico e cantor.

É uma vontade de criar mais, de experimentar as palavras no texto, mas também outras texturas e possibilidades. Uma escola insensível para esta vontade de descobrir sons, movimentos, cores, humores, composições, que permanece apegada a um currículo estreito, que atende a apenas alguns aspectos da formação integral, não abre espaço para literartistas.

Os literartistas terão de aprender em outros lugares. Quem perde é a escola, obviamente.

Criar e criar-se

Todas as escolas deveriam ser escolas com projetos literartísticos, e com professores literartísticos. Ou contratamos professores que o são, ou convidamos literartistas para atuarem como professores em nossas escolas. Sua presença despertaria talentos que já estão ali, aguardando apenas os sinais provocadores. Artistas provocam o surgimento de artistas. E artistas tornam a sociedade mais rica.

E outra característica, fundamental: os literartistas querem criar a si mesmos.

A inglesa Leonora Carrington era escritora, pintora e escultora. Não há nada seu traduzido em português. Num livro sobre sua vida, de Elena Poniatowska, ela aparece discutindo com o pai:
— Papai, estruturas totalmente diferentes apoiam nosso senso de realidade. É como na pintura: quando você começa a fazer uma alteração no meio de um trabalho em andamento, surge uma imagem diferente. É o que se chama pentimento.
— Do que você está falando, Leonora?
— Estou procurando uma outra forma de viver.
— Minha filha, a sua forma de viver é condicionada pelo seu nascimento, pela educação
que nós lhe demos, e pelas heranças familiares. Se você se comporta como uma
ingrata, acabará pagando caro por isso.
— Não, papai, eu aprendi outras formas de viver no mundo. Não sou uma criação
sua. Eu quero reinventar meu próprio eu. Estou indo embora.
Os literartistas conversam assim com a escola. E é comum que dela se afastem. Pagam o preço dessa “ingratidão”, e acabam recebendo muito mais em troca!

Gabriel Perissé é professor e pesquisador da pós-graduação em Educação da Universidade Católica de Santos – www.perisse.com.br

Autor

Gabriel Perissé


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