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Toda biblioteca é uma autobiografia

Alberto Manguel, ensaísta argentino radicado no Canadá, lança novo livro no Brasil e diz que ler é ter a memória de uma experiência antes mesmo que ela aconteça

Publicado em 10/09/2011

por Luiz Costa Pereira Junior

O leitor lê o que quer, o escritor escreve o que pode. A frase de Jorge Luis Borges é usada pelo ensaísta Alberto Manguel como um mantra: porque não se sabe como será interpretado, deve-se escrever como uma extensão da leitura.

O autor argentino radicado no Canadá participou da VI Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto) e divulgou
A biblioteca à noite e Todos os homens são mentirosos

(Companhia das Letras). O tema biblioteca é central em sua obra. Está em A história da leitura e Dicionário dos lugares imaginários, livros que marcaram o nome de Manguel no Brasil. Para ele, "toda biblioteca é uma autobiografia", na medida em que "revela o conjunto de possibilidades de quem sou".

Filho de embaixador, circulou o mundo. Aos 14 anos, ia à casa de Borges ler para o escritor, já cego então. Hoje, cita Borges ao menos três vezes em cada palestra. A citação ajuda o leitor a crer na realidade do texto e levar a gente mais a sério, brinca.

Agora, trabalha em novo livro de ensaios (O Leitor como metáfora) enquanto produz sua segunda novela, Um amigo de Platão, sobre dois homens que travam uma guerra em torno da verdade. Mas nada é verdadeiro, avisa Manguel, a não ser o que encontramos nos livros.
 

Ler de fato melhora as pessoas?



Fiz o secundário no Colégio Nacional de Buenos Aires, em meio à ditadura. Foi um professor de literatura de lá que me inspirou a escrever. Ele me fez descobrir a função humanizante da literatura, que a ficção é uma mentira que conta a verdade e a experiência dos personagens é, no fundo, a nossa experiência. Veja, os alunos desse colégio fizeram forte oposição aos militares. Pouco depois eu saí do país, mas soube que muitos de meus colegas foram denunciados, torturados e mortos. Uns vinte anos depois, voltei à Argentina para uma festa de ex-colegas. E descobri, chocado, que aquele professor era o informante dos torturadores. Ler em si mesmo não é mais que uma atividade essencial. Mas o valor do ato está dado pelo uso que fazemos da leitura.
 

Para Paul Virilio, o símbolo do século 20 foi a árvore preferida de Goethe preservada num campo de concentração. Um leitor refinado comandava a carnificina nazista.



Minha primeira reação foi rechaçar a literatura associada àquele professor. Mas percebi que a literatura é uma forma de manter atenção entre duas margens. Há incontáveis exemplos de leituras que conduziram a atos terríveis. O mais anedótico foi o daquele que leu
O apanhador no campo de centeio

, de Salinger, e entendeu pela leitura que havia de matar John Lennon. Por outro lado, há uma leitura que permite fazer uso da memória da experiência do mundo. Nesse caso, melhora nossa maneira de atuar.
 

Se, como o senhor diz, sabemos que o universo não tem sentido, por que lemos e escrevemos livros?



Em parte, ler é extensão de uma função biológica. Certos animais usam de camuflagem e outros criam defesas para atuar no mundo. Nossa espécie desenvolveu a imaginação, uma forma de construir o mundo antes de experimentá-lo. Se posso imaginar como é pôr a mão na boca de um tigre, sim, vou pôr a mão na boca dele. Essa imaginação faz com que inventemos histórias para reter nossa experiência. Para conhecê-las, desenvolvemos a leitura. Lemos e escrevemos para entender a expe-riência antes de tê-la e também para ativar a nossa própria experiência, para dizer que essa é a forma que sentimos e entendemos, para que as gerações futuras possam sabê-lo.
 

Como foi ler para Borges?



Quando ficou cego nos anos 50, ele se deu conta de que precisava dos outros para ler. Pedia a qualquer um, pois não lhe interessava uma leitura interpretativa. Eu era adolescente e trabalhava numa livraria. Um dia, ele me pediu. Era uma leitura sem entonação, que ele interrompia para entender como o texto foi construído. Sobretudo, queria que eu lesse contos porque era o momento em que voltara a fazer contos, que viraram
O Informe de Brodie

[1970]. Para mim, foi uma experiência mecânica.


Sua obsessão pelo tema biblioteca veio de Borges?


Sim e não. Tudo meu tem in-fluência de Borges. Mas meu interesse nos livros e em bibliotecas começou quando eu tinha 4 ou 5 anos. Sempre estive rodeado de livros, e desde pequenino eu ordenava as obras de certa maneira. O benefício de ter conhecido Borges foi ter contato com certos autores e uma certa forma de pensar a leitura, mas não diria que meu interesse sobre o tema começa a partir de Borges.
 

Por que tomou a leitura como objeto de pesquisa?


Não me definiria como pesquisador, mas uma pessoa que tenta entender o que faz. Quando menino, minha família viajava muito. Desde os 3 ou 4 anos lembro de estar em lugares distintos a cada vez. Não contava com um lugar fixo, sempre meu. Esse lugar, para mim, foi o livro. Lembro de sentir um alívio ao encontrar num livro o mesmo texto, com a mesma ilustração na mesma página. Essa foi para mim a expe-riência primária. Aprendi nos livros o que era a amizade, a morte, o amor, antes de conhecê-los na vida de carne e osso.
 

Quais os livros da sua biblioteca que considera essenciais?



Mudam todos os dias. Os importantes para nós dependem de quem somos no momento em que os escolhemos. Em certo momento, o mais importante pode ser
Alice no país das maravilhas

, esta manhã pode ser
A divina comédia

, esta tarde não sei o que será. Toda biblioteca é uma autobiografia. A minha é um conjunto de possibilidades de quem sou. Às vezes essa possibilidade coincide com certo título, às vezes me dou conta de que um título é a pessoa que eu fui há anos e é como visitar uma memória passada.
 

Qual o seu método de pesquisa?


Desordenado e amplo. Quem não sabe precisamente o que procurabusca em muitos lugares e direções. Se escrevia sobre Santo Agostinho, tinha de investigar tudo, pois dele nada sabia. Não tenho metodologia. Tenho curiosidade e uma forma de pensar distraída e associativa. Isso confere certa complexidade à produção de ensaios.
 

Isso permite criar ensaios melhores?


A novelista norte-americana Cynthia Ozick dizia que há duas metodologias para escrever ensaios: uma é recordar o caminho sabendo aonde chegar e a outra é passear pelo bosque, ir à esquerda, à direita, e é melhor nem chegar a alguma parte. Minha tendência é a de passear, pois não tenho uma mente rigorosa, mas há ensaístas de uma luminosa claridade, que sabem aonde vão desde o início. Borges, por exemplo. Não creio que se possa falar qual a melhor possibilidade. Só do que dá resultado ou não.
 

Qualquer assunto pode ser tratado dessa forma?


Qualquer um. Há ensaios maravilhosos sobre nada. O francês Xavier de Maistre escreveu [em 1794] um magistral, intitulado
Viagem ao redor do meu quarto

. Qualquer tema se presta à interrogação e talvez o ponto de partida seja este: fazer uma pergunta e chegar a uma melhor pergunta.
 

Como insere seus livros recentes em sua obra?


Quando comecei a escrever, eu o fiz consciente de que estava escrevendo como leitor, não como um escritor. Mas nos livros que fiz não sei se há uma progressão, um aumento de complexidade ou um melhor entendimento sobre algo, mas uma abertura de perguntas.
 

Aonde levam essas perguntas?


Percebi, ao fazer
Uma história da leitura

, que escrevia um livro com um número específico de capítulos, mas bem poderia ter cem mais. De alguma maneira o tema da leitura abarca todas as atividades humanas e os conhecimentos possíveis. Quando Borges imaginou uma biblioteca contendo o universo, falava exatamente isso. Ao pensarmos o mundo como livro, como espaço que lemos, a leitura define todas as atividades. Não posso pensar em nenhum tema que não esteja relacionado ou incluído no tema da leitura.
 

Como vê o modo como é escrito o ensaio contemporâneo?


Não há característica que defina o ensaio em um momento particular. Como gênero literário, vai mudando em relação não só aos escritores como aos leitores. Um da Grécia antiga não se diferencia tematicamente de um diálogo ou um poema filosófico, mas em certo momento há a intenção de tratar um tema de maneira particular, digamos em Plutarco, em Sêneca ou na literatura latina, em Cícero. Essa forma vai se definindo até Montaigne dar ao gênero a palavra "ensaio", como a ideia de algo que se está provando, de se tentar algo a partir de uma voz particular. Não é que fosse a primeira vez que foi feito, isso já existia em Cícero, em Sêneca. Mas Montaigne conscientemente diz ao leitor: "Estou a fazer um diálogo com você". Hoje, o ensaísta pode tentar novas técnicas ou limitar-se às conhecidas, mas faz o mesmo que todo escritor: estabelece um acordo. Não creio que haja um estilo particular no ensaio de nossa época.


A internet é a grande biblioteca atual?


A internet não é uma biblioteca. É um lugar de acumulação de informação. É importante e banal. Na Idade Média, numa sinagoga do Cairo, havia um tipo de depósito chamado Guenizá, onde era posto tudo o que era escrito. Porque podia conter o nome de deus, nada era destruído… Havia cartas, documentos importantes, e listas de compras, contas, rascunhos. Com a internet há o mesmo. Em minha biblioteca, encontro a informação que quero, sei o valor e o peso que tem. Mas na internet, em que poderia achar a mesma informação, não conheço o contexto, a relação entre um texto e sua fonte.
 

Mas sua função de acervo não seria inegável?


Há sites úteis, como o da Biblioteca Nacional da França, mas falta aparato crítico, curadoria na internet. Quando se criou a biblioteca de Alexandria, que pretendia ter tudo, o problema imediato era que nenhum leitor poderia fazer uso eficaz de tudo. A primeira coisa que fez Calímaco, um dos primeiros bibliotecários, foi criar catálogos racionais: "dentro dessa temática, estas são as obras importantes". Foi a criação dos primeiros cânones. Isso criou problemas também. Implicou, por exemplo, um tipo de censura. Se digo que algo é o mais importante, outras coisas são relegadas, pois não entram na seleção. Toda ordem significa um tipo de exclusão. Então, quando a internet oferece as primeiras seleções não é sequer pelas razões intelectuais que pautaram Calímaco. Há um sistema mecânico, que não tem que ver com a busca intelectual.
 

A literatura é uma forma de vencer o esquecimento. Há o risco de, na era da internet, voltar a esquecer?


Num diálogo de Platão, ele conta ou inventa o mito pelo qual o deus egípcio Tot oferece ao faraó o presente da escrita. O faraó o recusa. Se o aceitasse, os homens não mais recordariam, pois a escrita recordaria por eles. Séculos de literatura mostraram que a literatura serve para fomentar a memória. A acumulação indiscriminada e o mito de que as coisas caem na rede só durante um período fazem com que a internet exista só num eterno presente. Ela não tem passado. Toda a história da criação de uma ideia se perde e não há traços nem da correspondência – a maior parte dos e-mails se perde – nem dos graus de construção de uma obra literária.
 

Sem data e contexto, desorienta-se o leitor…


No computador, toda versão é apagada, a última é o que fica. Quando Montaigne publica seus Ensaios, leva consigo uma edição para corrigi-la em casa. Quando morreu, em 1588, o exemplar com as correções seguiu para edição. Está na biblioteca municipal de Bordeaux. Um de seus ensaios mais famosos é sobre a amizade. Quando fala da amizade com [Etienne de] La Boétie, Montaigne cunhou uma frase famosa da literatura francesa: se lhe perguntam por que o queria como amigo, não saberia responder, salvo para dizer que ele era ele e eu era eu. Na edição impressa em vida, a frase era: "Se me perguntam por que o queria, não saberia o que responder", ponto. No exemplar modificado, com tinta negra, Montaigne agregou: "Salvo para dizer que ele era ele". E logo depois, em azul, "e porque eu era eu". Temos aqui a evolução de uma das frases mais comoventes da França, sabendo que primeiro se pensou uma coisa, depois outra e em seguida uma terceira. Hoje teríamos só a frase final, comovente, mas sem história.


Acompanha a literatura brasileira? Qual de suas características lhe parece mais relevante?



Talvez um dos aspectos que mais me interessam nela é que parece ser uma literatura que cresce de sua própria inspiração. A literatura norte-americana é encerrada em si mesma, não conhece o resto do mundo. A brasileira conhece, mas se inspira em si mesma. De Machado de Assis a escritores mais contemporâneos, como Clarice Lispector, todos parecem escrever inspirados por suas próprias circunstâncias a partir de uma língua que vão criando. Vemos isso em Guimarães Rosa, por exemplo, um fenômeno que não conheço em nenhuma outra língua ou literatura.

*
O jornalista Luiz Costa Pereira Jr. foi à Fliporto a convite da organização do evento




 

Autor

Luiz Costa Pereira Junior


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