NOTÍCIA

Edição 231

Como funciona o bem-sucedido ensino técnico da Alemanha

Sistema dual alemão, baseado em parceria com as empresas, exige boa formação tanto dos docentes de aulas teóricas como dos instrutores práticos

Publicado em 08/08/2016

por Filipe Jahn

Como funciona o bem-sucedido ensino técnico da Alemanha

Um dos países em que o ensino profissionalizante é, reconhecidamente, dos mais bem estruturados no mundo, a Alemanha não oferece um caminho fácil para quem quer se tornar docente na modalidade. Porém, aqueles que conseguiram trilhá-lo e chegar à docência na educação profissional dizem que o esforço vale a pena, corroborando a cultura germânica da recompensa à dedicação.

Isso acontece porque a etapa é a grande vedete da educação alemã. O sistema dual, onde estudam 90% dos alunos da educação profissionalizante, é uma referência de qualidade para outros países, sejam do 1o ou do 3o mundo, pois consegue formar alunos de bom nível de instrução tanto no que tange à cidadania, como também no que diz respeito a seus atributos para o mercado de trabalho. Talvez em especial nesse segundo quesito.

Para se ter uma ideia da potência da modalidade, 54% da força de trabalho de todo o país vem do ensino profissionalizante. Segundo o Departamento Federal de Estatísticas da Alemanha (Destatis), 2,5 milhões de alunos cursam atualmente a modalidade. Além disso, não apenas o Estado mas também as empresas têm um papel decisivo na formação do docente, o que coloca a profissão no centro de um sistema educacional organizado para ser a grande base de desenvolvimento econômico da Alemanha, num modelo com bons níveis de integração.

Veja também: Como é ser professor do ensino técnico em São Paulo

E, sim, as empresas têm voz e influência até mesmo nos currículos de formação docente. Para entender as motivações desse processo, é preciso antes conhecer o perfil do docente do ensino profissionalizante alemão. A docência do ensino técnico no país está dividida, basicamente, em duas figuras: o professor e o instrutor.

O primeiro é responsável pelas aulas teóricas, seja de disciplinas gerais, como alemão e inglês, ou específicas da área técnica. Já o instrutor é responsável pela parte prática. Só que esse tipo de docente não ensina na escola e não é contratado pelo Estado. Ele é um profissional de uma empresa privada.

No sistema dual, os alunos passam apenas entre um e dois dias na escola, aprendendo teoria com professores. No restante da semana, recebem treinamento prático em uma empresa, a título de estagiário remunerado. Ou seja, o instrutor é a figura responsável por ensinar, acompanhar e avaliar o aprendizado e desempenho do estudante durante a maior parte do seu curso no ensino técnico.

Empresas em parceira com o Estado
A principal diferença do ensino técnico alemão em relação ao resto do mundo é a participação e influência das empresas em todos os passos da formação de um aluno dessa etapa do ensino.

Se hoje o ensino técnico é o grande motor da economia alemã, foi há mais de 40 anos que as mudanças começaram. Mais precisamente em 1970, com a fundação do Instituto Federal de Formação Profissional (Bibb).

O órgão, subordinado ao Ministério da Educação e Pesquisa, é composto por membros de associações patronais, sindicatos de trabalhadores e representantes do Estado. Em conjunto eles definem e atualizam currículos, elaboram regulamentos e garantem que o aluno está recebendo a educação certa para entrar no mercado de trabalho e ser o tipo de profissional de que o mercado precisa.

As atualizações de currículo costumam acontecer a cada 5 anos. Caso um currículo seja considerado defasado por alguma empresa, ela pode pedir no Bibb uma mudança. “Essa petição é discutida com todos os membros da área. Quando se chega a um consenso, as mudanças são feitas sem perder tempo”, explica Diana Cáceres-Reebs, diretora do Bibb.

Por esses motivos não há lei que exija a participação das empresas no sistema dual. Todas as 447 mil que fazem parte são voluntárias. Elas são responsáveis por 564 mil vagas preenchidas e arcam com todas as despesas do aprendiz, que recebe em média 800 euros (R$ 3.200) por mês para aprender enquanto trabalha.

Tornando-se um professor
Qualquer pessoa que quiser se tornar-se professor do ensino técnico alemão precisa ter um diploma universitário. Há uma pequena exceção, para os chamados “professores práticos”, que dão aulas-suporte específicas na escola a alunos que precisam de reforço. Ainda assim, esse profissional, que é uma minoria no cenário, precisa ter se formado em uma escola técnica, deve ter experiência de vários anos na profissão, passar por um exame de competência e frequentar um curso sobre pedagogia antes de poder ter acesso à sala de aula.

Para a maioria, o caminho é composto por três fases. A primeira envolve o curso universitário, no qual o futuro professor precisa atender disciplinas correspondentes à área que pretende seguir. Mas para escolher a área que deseja é necessário, além do certificado que permite a entrada na universidade, ter experiência ou treinamento comprovado na área. Assim, essa medida faz com que o perfil dos professores de ensino técnico na Alemanha seja de ex-alunos do sistema dual que resolveram seguir a carreira docente.

Além das aulas da área principal, o universitário também precisa frequentar aulas de psicologia e pedagogia. Algumas áreas de estudo e estados do país também exigem que tenha uma experiência prática, dando aulas.
Todo esse período costuma durar entre quatro e cinco anos e é concluído somente após o estudante passar por um exame organizado pelo Estado, que avalia o nível de aprendizagem.

A segunda fase é um estágio probatório, conhecido como Referendariat, no qual o novo professor acompanha as aulas de outros professores, ensina com a companhia de um veterano e, no final, dá aulas sozinho em escolas designadas. Essa fase dura entre um e dois anos e só é concluída quando o professor passa por um segundo exame organizado pelo Estado.

A terceira e última fase dura até o final da carreira do professor e consiste em garantir que o docente receba formação continuada enquanto estiver exercendo a profissão.

Cada um dos Länder, a versão alemã dos estados, é responsável pela formação continuada de seu corpo docente e as regras e objetivos são expressos por lei. Ou seja, a atualização de um professor de ensino técnico na Alemanha não é somente incentivada, como também obrigatória. Só que, em contrapartida, o Estado é obrigado a assegurar a oferta de capacitação.

Os cursos dessa fase da formação acontecem em institutos estabelecidos pelos estados, porém subordinados ao Ministério da Educação. As escolas também precisam organizar eventos. Há grupos de estudo, seminários, colóquios e cursos de formação a distância, em geral com conteú­dos que abordam novas tecnologias, atualização pedagógica e mudança de currículos.

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As áreas abrangidas pelo ensino técnico são bem variadas, indo da indústria pesada à saúde

Formação do instrutor
No caso da formação do instrutor não há exceção de ordem alguma. Todos são obrigados a ter diploma universitário. Mas, dependendo do tamanho da empresa responsável pela contratação do estudante, esse profissional pode ter mais de uma função.

Em empresas pequenas, que contam com poucos estagiários, geralmente há um profissional que adquire também a função de instrutor. Já em grandes empresas, há departamentos e profissionais específicos que são responsáveis somente pelo treinamento.

Só que, seja primeira ou segunda função do profissional, o caminho para ser instrutor também é bastante restrito. Conforme o Ato de Educação Vocacionada e Treinamento, uma lei federal, instrutores precisam ser considerados competentes na área em que atuam e na capacidade de ensinar.

E para que essa qualificação seja atestada, é necessário ser aprovado em um exame que avalia tanto a competência específica, formal, na área quanto o conhecimento de teorias educacionais. Como muitos instrutores começam atuan­do em outra função, é comum as próprias empresas pagarem pelo treinamento para que eles passem a dominar os conteúdos voltados ao ensino.

Já a formação continuada não é uma obrigação prevista em lei para os instrutores. Porém, como eles estão diretamente ligados ao mercado, onde sempre há grande demanda por inovação, a atualização acaba se tornando inerente ao ofício, especialmente quando trabalham nas grandes empresas, que costumam organizar cursos nos próprios departamentos.

Treinamento de qualidade
E para os que pensam que dessa maneira os alunos do ensino técnico alemão podem ficar relegados a maior parte do tempo a um docente sem tempo para ensinar com competência, ou que empresas aproveitam a brecha e acabam colocando jovens estagiários no lugar de profissionais com mais tempo de estrada, a diretora de projetos de cooperação do Instituto Federal de Formação Profissional (Bibb, em alemão)Diana Cáceres-Reebs garante que essas possibilidades não estão no horizonte da educação germânica.

De acordo com a diretora, há vários motivos que sustentam o interesse das empresas em fornecer o melhor treinamento possível (leia texto na pág. 45), mas a supervisão formal é feita pelas Câmaras de Indústria e Comércio (IHK, na sigla em alemão). Essas câmaras são responsáveis por monitorar a qualidade do treinamento nas empresas, seguindo as diretrizes do Treinamento para Aptidão do Treinador.

Diana Cáceres-Reebs ressalta ainda um ponto que acredita estar entre as chaves para que o sistema dual alemão tenha há tanto tempo o êxito que vem tendo. “Competência na Alemanha é vista como uma ação integral que se refere à capacidade e vontade de todos em comportar-se de forma atenciosa e socialmente responsável”, explica. Ou seja, trata-se de uma engrenagem que, para funcionar, precisa assegurar-se de que todas as peças que a compõem estarão devidamente preparadas para desempenhar sua parte.

Tranquilidade para lecionar
Benjamin Döhler é um professor do sistema dual da Alemanha. Formado em economia, foi aluno do próprio sistema e trabalhou em um banco enquanto era aprendiz. Atualmente ele dá aulas de negócios e inglês na FLB na cidade de Bonn, antiga capital do país, posto que ocupou até a reunificação das duas Alemanhas.

A escola tem 2.700 alunos e Benjamin ministra oito aulas por semana, em classes que têm entre 20 e 25 alunos. Suas horas-aula, assim como as da maioria dos outros professores, não ultrapassam 20 horas semanais. O restante é para organizar conteúdos e outras atividades.

O professor está bastante satisfeito com a carreira. Sempre mesclando tranquilidade e animação em sua fala, ele afirma que o salário é bom e que não vê motivos para um segundo emprego. “Na realidade, acho que aqui se quisermos um segundo emprego precisamos pedir autorização do governo. Mas não lembro de nenhum colega que tenha ou queira isso”, comenta.

Suas aulas são sempre baseadas no que os alunos podem encontrar no ambiente de trabalho, para tentar tornar a teoria mais atraente, algo nem sempre tentador para alunos do ensino técnico.

Para Benjamin, é exatamente o fato de oferecer ao aluno a possibilidade de teorizar na escola sobre aquilo que coloca em prática em suas imersões no trabalho que faz do dual um sistema único. “Gostava muito disso quando era estudante. Por exemplo, se aprendia sobre os detalhes dos cheques em um dia, no seguinte os estava processando no banco. É isso que faz a diferença”, conclui.

Um sistema diferente
Diferentemente do que ocorre no Brasil, na Alemanha nem todos os caminhos do ensino secundário permitem aos alunos o ingresso posterior em universidades. Com pequenas variações entre os 16 estados, cujos sistemas educacionais são autônomos, as crianças ingressam em um dos três tipos de escola do secundário por volta dos 12 anos. Para a definição de que escola frequentará, o aluno depende de seu desempenho no ensino fundamental e de uma avaliação conjunta entre família e educadores.

Nas Hauptschulen, porta de entrada para o futuro ingresso no ensino profissionalizante, os alunos recebem uma formação mais geral, durante um período de cinco a seis anos; nas Realschulen, que não existem em todos os estados, essa formação básica é mais sofisticada, dando acesso a cursos tecnológicos ou a centros universitários; finalmente, nos Gymnasien, o aluno permanece por mais anos, ao final dos quais pode ter acesso às universidades, sendo que aqueles que têm melhor histórico escolar conseguem frequentar as melhores escolas.

Autor

Filipe Jahn


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