NOTÍCIA

Edição 235

Sonhar é essencial para o aprendizado

Mecanismo nos ajuda a solucionar problemas e a ensaiar para situações da vida

Publicado em 15/12/2016

por Gilberto Stam

sonhos Foto: Shutterstock

Sonhar é essencial para o aprendizado

Foto: Shutterstock

Procure lembrar-se da última vez que você sonhou e de qual foi o sonho. Embora costume ser difícil lembrar os detalhes, duas coisas provavelmente aconteceram. Primeiro, elementos do seu sonho faziam parte de coisas que aconteceram no dia anterior. Segundo, é bem provável que o que aconteceu tenha sido algo significativo para você, especialmente alguma situação nova que envolvia algum tipo de dificuldade ou desafio.

Essas duas observações simples estão na base das descobertas recentes da neurociência sobre o fenômeno. “Os sonhos usam informações da memória recente para simular situações que serão vividas no futuro, ajudando assim o indivíduo a se adaptar ao meio”, explica o neurocientista Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Ou seja, é o momento em que o indivíduo elabora informações recebidas e se prepara para usar esse conhecimento no futuro. Na prática, isso significa que o sonho é um momento crucial para o aprendizado.

Essas descobertas determinam que os sonhos têm uma função biológica, resolvendo um mistério que perdurou até anos recentes. “O sonho havia sido banido da biologia, sendo considerado como um fenômeno impossível de ser testado cientificamente”, diz Sidarta Ribeiro. Por esse mesmo motivo, a teoria da psicanálise, baseada totalmente em observações clínicas e fenômenos psíquicos, também foi ignorada pelos biólogos. “Na verdade, essas descobertas confirmam aspectos da teoria psicanalítica, como a incorporação dos restos diurnos e o aprendizado, aproximando-a das neurociências.”

Treino para o estresse

O sonho foi reconhecido biologicamente só na década de 1950, quando foi identificado o sono REM (sigla em inglês para movimento rápido dos olhos), durante o qual ocorrem os sonhos. O sono REM acontece depois do sono profundo, e os dois tipos se alternam ao longo da noite. Conforme a manhã se aproxima, o sono REM se torna mais longo, até que a pessoa acorde.

Duas décadas depois, os cientistas perceberam que a privação de sono atrapalhava o aprendizado, e que a pessoa dormia mais após períodos de aprendizado intenso. “As pessoas que sonham mais são mais estressadas”, explica a neurocientista Paula Tiba, da Universidade Federal do ABC. “O sonho pode ter a função de ser uma espécie de treinamento para situações estressantes, uma tentativa de elaborar uma estratégia para lidar com essas situações.”

Curiosamente, esse fenômeno foi detectado também em ratos e aves canoras (distintas pelo canto), tendo duração proporcional ao conteúdo do dia anterior – ou seja, quanto maior o aprendizado, maior a atividade cerebral durante a noite. Até recentemente, porém, não se sabia que esse aprendizado ocorria especificamente durante o sonho. “Hoje sabemos que a reverberação das memórias, que Freud chamava de ‘restos’ do dia, acontece durante o sono profundo. Durante o sono REM, quando os sonhos acontecem, são ativados os genes que promovem a fixação das memórias”, diz Sidarta Ribeiro. A fixação de memórias acontece quando as memórias de curta duração, armazenadas no hipocampo (estrutura importante para a memória), são transpostas para o córtex cerebral, região mais exterior, onde são armazenadas as memórias de longa duração.

Relação com a escola

Na educação, as descobertas sobre sono, sonho e aprendizado têm implicações importantes. “O sono deve ser visto como algo relevante para os alunos, e não como mero problema de disciplina”, diz o neurocientista Fernando Louzada, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ou seja, quando um aluno dormir na aula, o professor deve lembrar que isso não é necessariamente falta de interesse.

Um dos problemas é que as aulas começam muito cedo e não respeitam o ritmo biológico dos jovens, diferente do de adultos e crianças. Embora entre os cientistas isso seja um consenso, o horário das aulas nas escolas não mudou. A principal dificuldade é reorganizar o horário de forma que seja bom para todo mundo: escolas, alunos e professores. Além disso, é importante perceber que o bom sono não serve só para manter os alunos atentos no dia seguinte durante as aulas, mas também para consolidar o que se aprendeu na aula do dia anterior. “A falta de sono na noite anterior pode fazer com que o aluno não aprenda direito. Se ele dormir mal no dia seguinte, porém, ele vai aprender, mas seu aprendizado será menos flexível”, explica Paula Tiba. “Em laboratório, observamos que ratos aprendem a se localizar em um labirinto, mas se dormem mal no dia seguinte, fazem sempre o mesmo caminho. Se você bloquear esse caminho, ele tem dificuldade em achar uma alternativa.” Dormindo bem e sonhando, o cérebro reativa redes neurais ativadas durante o dia e transforma memórias de curto prazo em longo prazo, que poderão ser utilizadas depois, aproveitando ao máximo as informações.

A falta de sono também pode estar por trás de problemas de aprendizagem. “Alguns alunos que parecem ter dificuldade para acompanhar a aula podem na verdade estar com algum distúrbio do sono, como a apneia, que diminui o fluxo de oxigênio e atrapalha o aprendizado”, diz a neuropsicóloga Camila Cruz Rodrigues, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Sonhar é essencial para o aprendizado

Foto: Shutterstock

Teorias do inconsciente

Por enquanto, a neurociência abordou aspectos periféricos da psicanálise. Mesmo assim, a aproximação entre duas áreas antes completamente apartadas é significativa. “Acreditamos que o pai da psicanálise, o austríaco Sigmund Freud, tenha deixado um verdadeiro plano de pesquisa que poderá inspirar os neurocientistas em descobertas futuras sobre o funcionamento da mente”, diz Sidarta Ribeiro. Para os psicanalistas, a aproximação não causa grande surpresa. “Freud começou trabalhando com neurociência, mas optou pela clínica porque percebeu que não havia instrumentos para avançar no conhecimento da mente”, diz Tales Ab’Sáber, psicanalista e autor do livro Sonhar restaurado (Editora 34). Explicar o significado biológico dos sonhos, no entanto, não explica qual o significado do conteúdo do sonho para as pessoas. Nesse ponto, a psicanálise ainda é a única ferramenta disponível. No início do século passado, Freud observou que os sonhos são formados de desejos reprimidos durante o dia, quando os mecanismos de censura estão mais ativos. Geralmente, esses desejos são suprimidos por questões morais. Mas, de noite, a censura afrouxa, e os desejos podem se manifestar mais livremente. Mesmo de noite, porém, a censura ainda mantém alguma força, distorcendo a forma como os desejos se manifestam nos sonhos. Por isso, os sonhos geralmente são tão enigmáticos. Embora o sonho seja parecido com um filme que é projetado na mente, em alguns casos é possível entrar nesse filme e viver o sonho de maneira quase consciente. O chamado sonho lúcido acontece quando a consciência desperta, mas a pessoa ainda está sonhando, ou seja, em sono REM.

Ao contrário do que muita gente pensa, o sonho hoje não é mais o elemento central da psicanálise, e o fato de a pessoa se lembrar do sonho também não é fundamental para a busca do autoconhecimento mediante essa técnica. “O sonho é algo feito para ser esquecido; por isso, raramente lembramos.” Por outro lado, aquilo que é esquecido são elementos do nosso inconsciente que de alguma forma tentam voltar. O que a análise faz é convidar a pessoa a tratar desses elementos inconscientes”, diz Tales Ab’Sáber. “A análise não precisa se debruçar sobre os sonhos, porque ela segue a lógica do sonho.” Ou seja, assim como o sonho, a análise traz à tona aquilo que foi reprimido, para que a pessoa entre em contato com as próprias emoções. Uma vez feito isso, é mais fácil entrar em contato com a realidade.

Arte: Simône Maki

Arte: Simône Maki

Autor

Gilberto Stam


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