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A virada demográfica

Redução da taxa de natalidade, acentuada a partir dos anos 80, gerará crescimento negativo das crianças e jovens em idade escolar nos próximos anos, abrindo a possibilidade de se investir mais por aluno

Publicado em 10/09/2011

por Rachel Cardoso

Antes de a mais grave crise financeira americana desde a Grande Depressão de 1929 estourar e colocar em xeque os pilares do capitalismo e da economia mundial, o Brasil retomou o ritmo de crescimento. Durante o recente processo de expansão, porém, deparou-se com um gargalo que escancarou a fragilidade desse progresso. No ano passado, não havia sequer uma empresa que não tivesse vaga de emprego em aberto, movimento que provocou tumulto nas consultorias especializadas em recrutamento e tornou comum a prática de importação de mão de obra mais qualificada de países como Chile e Argentina.

Esse cenário reflete o atraso educacional gerado ao longo de sucessivas décadas, resultante da falta de investimentos em nível adequado, afinal de contas o equilíbrio do desenvolvimento no plano socioeconômico está diretamente associado à velocidade e à continuidade do processo de expansão educacional.

Entre os anos 50 e 70 do século passado – período em que o país mais crescia, inclusive em número de habitantes  -, os recursos destinados à área não passavam de 2% do Produto Interno Bruto (PIB). Para se ter uma ideia, o PIB chegou a crescer a uma velocidade média de 10% ao ano na década de 70. De lá para cá, a população residente chegou a 187 milhões em 2007, segundo projeções do Instituto Brasileiro de Geo­grafia e Estatística (IBGE). Mas o dinheiro aplicado não acompanhou essa pressão demográfica e, nos últimos anos, o investimento em todos os níveis de educação tem variado entre 3,8% e 4,4% do PIB.

É um percentual que não se compara nem de longe ao de países europeus como a Espanha, que destina à educação atualmente 5,5% de todas as riquezas produzidas, segundo ranking da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no qual o Brasil figura entre os piores. Aparentemente, a distância é pequena. Mas é preciso levar em conta a realidade de ambos.

Os espanhóis têm uma população decrescente e alcançaram uma estabilidade em todos os níveis de ensino. Por aqui, há um déficit educacional que dificulta o projeto do governo de expansão do ensino superior. Simplesmente, não chegam alunos em número suficiente aos bancos das universidades.

 "A Espanha não precisa mais pisar no acelerador, pois está na banguela, enquanto o Brasil ainda tem uma ladeira íngreme pela frente", compara o professor Juca Gil, especialista em Política e Organização da Educação no Brasil da Universidade de São Paulo (USP). "Ainda temos de abrir vagas."

O representante da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil, Vincent Defourny, faz coro ao especialista: declarou recentemente que os países que obtiveram resultados efetivos em educação gastaram até 20% do PIB, pois os esforços de crescimento de tal índice são necessários na etapa de construção para depois então estabilizar o investimento.

O exemplo mais comumente citado é o da Coreia do Sul, que desde os anos 60/70 passou a investir cerca de 10% do PIB em educação. Se no início da década de 70 o país tinha 200 mil alunos no ensino superior (0,62% da população), em 2003 esse número havia saltado para 3,5 milhões (ou 7,5% da população). Um salto de 12 vezes, enquanto no Brasil, no mesmo período, o salto foi de 3,5 vezes.


Horizonte de distorções


Para se ter uma ideia, o gasto médio por aluno hoje no Brasil, em dólar pela paridade do poder de compra (PPP, da sigla em inglês), é de US$ 1,3 mil. É um terço do volume investido pelo Chile. Na Espanha, o montante chega a US$ 6 mil e em países como Suíça e Estados Unidos, US$ 12 mil. A média dos países da OCDE é de US$ 7,5 mil.

O Brasil não só gasta menos do que deveria como gasta muito mal. "Nós erramos no passado ao investir pouco e continuamos errando agora, pois o uso desse maior volume de recursos tem se mostrado ineficiente", diz o pesquisador Samuel Pessoa, do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Não que o acesso à educação não tenha sido ampliado. As estatísticas dão conta dessa melhora. O ensino fundamental está praticamente universalizado, o que não garante que os alunos que entram na escola saiam com o aprendizado ideal. Para se ter uma ideia, em 1950 havia 2,1 milhões de alunos no ensino fundamental. Em 2001, esse número beirava os 36 milhões, contra 28 milhões agora.  "Essa curva é decrescente por duas razões: a queda da fecundidade e o aumento do fluxo escolar, ou a redução do total de reprovações", explica a pesquisadora do Inep, Fernanda da Rosa Becker.

Outra questão é o abandono. Nem todos concluem o ensino fundamental, etapa que não consegue responder adequadamente às demandas de aprendizagem de uma população que se diversificou, tornando-se mais complexa. Além disso, é preciso ainda expandir o acesso à educação infantil e ao ensino médio. Nessa toada, o ensino superior que hoje deixa a desejar pode ficar ainda pior. De fato, os custos desse atraso na educação estão cada vez mais altos e são os responsáveis pelo aprofundamento da vala da desigualdade social.

É um ciclo de fácil compreensão. Estima-se que cada ano de escolaridade eleva em 10% a produtividade do trabalhador e, consequentemente, os salários, mesmo que não nessa proporção. Esse impacto no mercado de trabalho, por sua vez, provoca um maior investimento das famílias em educação.  E, quanto maior o nível de escolaridade, menor o tamanho das famílias e maior a renda per capita. Ou seja, um cenário que pode agravar as assimetrias socioeconômicas e culturais.

De acordo com o estudo "Demografia e Educação no Brasil: As desigualdades regionais", há uma correlação inversa entre o tamanho relativo da população em idade escolar e o gasto por estudante nas escolas públicas. A pesquisa de Fernanda Becker para a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) mostra que famílias menores não só destinam uma fatia maior de renda para cada membro, como também, na maioria dos casos, seus filhos estão menos sujeitos à competição por recursos nas escolas, o que pode levar a uma melhora do desempenho escolar.



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Inflexão favorável


Não à toa, a dinâmica populacional – que diferentemente da análise conjuntural econômica trata o horizonte temporal de 30 anos como relativamente previsível – é determinante para a prática de políticas públicas de educação. E essa dinâmica é regulada por dois componentes: a fecundidade e a mortalidade. "Vivemos hoje um movimento reverso ao dos anos 70", observa o economista Marcelo Cortes Neri, chefe do Centro de Pesquisas Sociais do Ibre da FGV.
 
 
No caso brasileiro, embora a mortalidade venha caindo, o fator preponderante e a maior incógnita da projeção populacional brasileira é a fecundidade. Em 1980, a taxa era de 4,4 filhos por mulher. Esse número caiu para 2,3 filhos por mulher em 2000, e 1,8 filhos em 2006, graças ao acesso ao mercado de trabalho e à maior escolaridade.
 
"A queda da fecundidade que ocorreu nas três últimas décadas do século passado é aspecto importante da transição demográfica brasileira, mas a desaceleração neste século fez com que a mesma chegasse abaixo do nível de reposição, o que pode trazer implicações futuras, como impactos negativos para o equilíbrio previdenciário e positivos para o mercado de trabalho e a educação", avalia o pesquisador Eduardo Rios Neto, coor­denador do Comitê Demografia da Educação da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep).

São justamente essas consequências da estrutura etária que resultam no dividendo demográfico, o que os especialistas chamam de bônus. Isto é, quando uma sociedade registra queda na população dependente infantil e idosa – de 0 a 14 anos e de 65 anos e mais -, em relação à população em idade ativa (15 a 64 anos), obtém um ganho de produtividade que não depende dos parâmetros econômicos de crescimento.

No Brasil, a maior queda nessa razão de dependência foi verificada na década de 90.  Entretanto, o período que vai de 2005 a 2025 ainda deve apresentar um ligeiro decréscimo, embora muito menos acentuado. "O bônus demográfico também favoreceu a política educacional de toda criança na escola durante o governo Fernando Henrique Cardoso, muito embora a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) receba a totalidade do crédito pelo sucesso daquela administração", afirma Rios Neto.  Caso a economia brasileira tivesse crescido de maneira sustentada durante esse período, ele supõe que a janela de oportunidades teria potencializado uma expansão ainda maior.

Mas que tipo de bônus demográfico pode ainda ser conquistado nesses 15 a 20 anos favoráveis que as projeções apontam para o país? Cabe destacar que essa dinâmica só ocorre quando a fecundidade cai numa sociedade, sendo que, após essa transição, os problemas se agravam com o envelhecimento populacional e o crescimento zero.
 
Segundo Rios Neto, é um movimento que deve fazer diferença particularmente no caso da população infantil (de 0 a 6 anos), que apresenta crescimento negativo durante a quase totalidade do período, reduzindo a projeção de sua participação na população total de 12,2% em 2008 para 8,5% em 2022. A população infantil tende a cair em termos absolutos de 23 milhões para 17,7 milhões no período. "Sob a ótica do bônus demográfico, essa queda é uma oportunidade para o país resolver uma grande dívida social: o déficit existente na cobertura de creches e de pré-escola, a partir de um pacto com os municípios", afirma Rios Netos.

Conforme a pesquisa, no caso da população de 7 a 17 anos – parcela em risco para o ensino básico (fundamental e médio) não defasado -, as projeções indicam um pequeno crescimento até 2011 e, depois, uma variação negativa até 2022.  Ao colocar esse grupo como alvo para ficar prioritariamente na escola, em vez de trabalhar, esse cenário abre uma brecha para a correção do fluxo escolar (redução da defasagem idade-série) e melhoria da qualidade educacional. "Alguns analistas apontam o ensino médio como o grande ponto de estrangulamento da Educação Básica brasileira, mas esta é uma análise equivocada."

Para Rios Netos, parte do problema de matrícula no ensino médio decorre da defasagem idade-série, que faz com que aqueles que deveriam, em função de sua idade, estar cursando o ensino médio, se evadam ou ainda estejam no fundamental, ao lado de crianças com outro perfil etário.

Os próprios números do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) mostram que a repetência na 5ª série e a relação entre fluxo e proficiência na segunda metade do ensino fundamental são fatores essenciais, que devem ser corrigidos para uma melhoria na quantidade (escolaridade média em termos de número de anos de estudo concluídos) e na qualidade (medida em termos de proficiência nos testes nacionais e internacionais).  "Há uma chance ímpar para a Educação Básica de modo a aumentar o capital humano dos jovens que, posteriormente, ingressarão no mercado de trabalho", destaca.

Como o grupo de pessoas com 61 anos ou mais cresce acima de 3% ao ano na totalidade do período projetado, essa parcela da população saltará de 8,8% em 2008 para 13,6% do total dos brasileiros em 2022. Trata-se, portanto, da faixa etária que apresentará maior pressão por gastos públicos, segundo o estudo. "A adoção de uma política com foco no bônus demográfico gerado pelo crescimento da população ativa permite o maior financiamento da sociedade", diz Rios Neto. Na prática, esse ganho com mais gente trabalhando no país vem da maior arrecadação gerada pelo incremento da população ativa, dinâmica que permitiria redimensionar os investimentos não só em previdência, mas também em educação.

Além da dinâmica demográfica, só há outra maneira de aumentar a capacidade de pagamento da população em idade ativa, que é o aumento da base contribuinte da sociedade, ou seja, das pessoas economicamente ativas que pagam contribuição previdenciária. Duas formas de se aumentar o salário ao longo do tempo são o crescimento da renda média da população e o progresso técnico (dos indivíduos e da sociedade em geral). Essas duas maneiras viabilizam a expansão econômica. E o investimento em capital humano – educação, saúde e nutrição integrados – é uma forma de se gerar o crescimento da massa salarial da população em idade ativa. 

Exemplo: se o aumento da escolaridade permitir dobrar o salário esperado, então um crescimento de 100% no salário dobra o efeito observado no crescimento da população em idade ativa. Ou seja, se a população estiver crescendo a 1% ao ano, então um salário dobrado viabiliza um crescimento de 2% na arrecadação. 
 
Para Rios Neto, a busca de uma solução para os problemas da previdência social e dos gastos de saúde com os idosos só pode ocorrer por intermédio da elaboração de um pacto intergeracional, no qual o Estado gaste agora com o objetivo de causar uma revolução educacional.  "O Ministério da Educação tem no Plano de Desenvolvimento Educacional (PDE) o carro-chefe para essa transformação. Entretanto, os desafios do governo nessa área não são triviais e não há lugar para bravatas e soluções mágicas", diz.

Ele destaca que mesmo um alvo certeiro pode enfrentar sobressaltos.  Nesse sentido, reconhece a importância de atacar todas as séries e níveis de ensino de uma só vez como essencial, mas sem descartar a ideia de que a educação segue um fluxo escolar, uma trajetória ao longo do ciclo de vida de uma criança.

Sob o ponto de vista demográfico e do planejamento de longo prazo, o foco mais importante de atuação é a sensibilização para o investimento escolar na primeira infância (0 a 3 anos) e no ensino infantil (4 e 5 anos). 
Tanto o atendimento à primeira infância, com políticas de creches ou de educação às mães no que diz respeito à nutrição, saúde e estímulo verbal, quanto a oferta de pré-escola são atribuições municipais.  E, geralmente, os municípios não estão preparados para isso.

No estudo, Rios Neto conclui que apenas uma política orquestrada pela União, em parceria com os governos estaduais, poderá estabelecer os padrões de qualidade necessários para que se faça uma revolução nessa área.  "As creches e a pré-escola são as áreas com menores metas atendidas no Plano Nacional de Educação (PNE)", diz. Aprovado em 2001 com metas até 2011, o PNE lista mais de 300 metas para a educação brasileira. No caso das creches, a meta era de aumentar a cobertura dos 9,4% registrados para a população de 0 a 3 anos em 2000 para 30% em 2006 e para 50% em 2011. No entanto, até 2008 a oferta havia sido ampliada apenas para cerca de 16% da população do segmento.

Experiências internacionais como as dos Estados Unidos com o
Perry School Program

 comprovam que o investimento nessa fase do ciclo de vida escolar é aquele que gera maior taxa de retorno social.  Mais ainda, as evidências da neurociência mostram que o desenvolvimento cerebral pós-parto é crucial para a formação da inteligência individual.  "Se realizado no pós-parto, esse desenvolvimento cerebral é mais social do que genético, algo que abre uma oportunidade para a política pública, na oferta da igualdade de oportunidades que servirá de base para uma sociedade que tenha a meritocracia como objetivo maior."

A observação, no entanto, vale um parêntesis que provavelmente seria endossado por qualquer educador: sem questionar os evidentes benefícios da vivência em creches e pré-escolas, sobretudo para as populações economicamente mais carentes, é preciso suavizar essa visão excessivamente econômica para que não se incorra no risco de moldar uma educação infantil produtivista, que não leve em conta que se trata de uma etapa de atendimento à criança e à infância, e não diretamente a necessidade do Estado e das empresas de formar indivíduos mais aptos ao trabalho.


Evolução do perfil das mães


O momento, efetivamente, constitui uma boa oportunidade educacional, pois também o contingente de mães com maior nível de escolaridade aumentou. Para se ter uma ideia, no início da década de 80, 56% das mães de crianças de 0 a 4 anos tinham três anos ou menos de estudos, sendo por isso consideradas analfabetas funcionais. Já em 2006, esse perfil de escolaridade foi reduzido a 15,5% do total das mães de crianças da mesma faixa etária, contra 42,1% que estudaram de quatro a oito anos e 42,3% que estudaram mais de nove anos (contra 10,5% em 1983). Isso significa que é possível desenvolver ações com foco na primeira infância, não só porque o número de crianças está em queda, mas também porque o montante delas que demanda cuidados do Estado como substituto da baixa escolaridade da mãe está caindo. "Não há mais desculpas para deixar de fazer uma administração ativa nessa área", conclui Rios Neto.

O desenho de uma política de primeira infância que faça o MEC se articular com o Ministério do Desenvolvimento Social e coloque os prefeitos como agentes da revolução pode ser uma alternativa de sucesso, prevê. Nesse sentido, sugere o pesquisador, o Programa Bolsa Família pode ser uma ferramenta bastante útil, pois é de implementação municipal e o cadastro único registra a maior parte das famílias que poderiam se beneficiar desse tipo de política nos municípios. Mais importante do que gerar uma porta de saída, suas diretrizes quebrariam o ciclo intergeracional de pobreza.



Clique na imagem para ampliar (Ilustrações: Alex Silva)


Autor

Rachel Cardoso


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