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Afinal, como e para que pensar?

Reincorporadas ao ensino médio após a edição da Lei de Diretrizes e Bases de 1996, filosofia e sociologia ainda são objeto de incerteza entre educadores e escolas

Publicado em 10/09/2011

por Beatriz Rey

A sala do segundo ano do ensino médio está lotada. O professor de sociologia mal entra na sala e é interrompido por uma aluna, que mostra a ele e aos colegas o vídeo do movimento "Cansei", liderado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). "Pensei em organizar um movimento nosso, para mostrar que também cansamos de crise área, corrupção e violência", fala. Todos começam a discutir o assunto, mas são interrompidos pelo professor: "antes de qualquer coisa, vamos nos organizar. Todo movimento social necessita de estrutura e planejamento".

A cena acima faz parte do cotidiano semanal de uma escola particular paulistana. Ali, filosofia e sociologia são disciplinas como matemática ou língua portuguesa. O que há um ano era diferencial para essa e outras escolas hoje nada mais é do que cumprimento da lei. Depois que a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) decidiu pelo ensino de filosofia e sociologia no ensino médio, a resolução nº 4 do Conselho Nacional de Educação (CNE), de 16 de agosto de 2006, trouxe a regulamentação: as secretarias municipais e estaduais de educação tinham até o dia 21 de agosto deste ano para implementar as disciplinas.

Apesar de as manobras legais já estarem em andamento, ainda há muitas questões sem resposta. Ainda não há consenso sobre o conteúdo a ser ensinado, nem sobre metodologia de ensino e muito menos sobre a carga horária das aulas. Entre os professores de filosofia e sociologia ouvidos pela reportagem, há uma opinião comum: essas dúvidas serão resolvidas na prática. "As escolas que já têm as disciplinas partem com alguma concepção. As que não têm, vão ter de se virar", prevê Renata Aspis, professora de filosofia da rede privada de ensino de São Paulo e integrante do grupo de estudos e pesquisas Diferenças e Subjetividade em Educação (DiS), da Unicamp.

Mesmo as escolas que já têm as disciplinas no currículo enfrentam dificuldades para definir o conteúdo. Um exemplo concreto disso acontece na Escola Estadual Fernão Dias Paes, zona oeste de São Paulo. O ensino de filosofia no Estado é obrigatório para primeiros e segundos anos do ensino médio, e optativo para os terceiros. Há dois anos, a professora Paola Jacobelis leciona filosofia para oito turmas de 1º ano e duas turmas do 2º ano. O conteúdo é definido por ela e pelos outros professores no início do ano letivo, quando o planejamento é elaborado. Segundo Paola, a escola não recebeu diretrizes da Secretaria Estadual de Educação. "Não temos um currículo tão definido como em outras matérias.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais são genéricos", relata. Já a SEE afirma que disponibiliza suas diretrizes básicas por meio da Coordenadoria de Normas Pedagógicas (Cenp). O conteúdo ficaria, então, a critério de cada professor. No caso de Paola, a aposta é no ensino temático, ou seja, os pensamentos e biografias dos filósofos são ensinados a partir de temas como ética, lógica ou conhecimento. Se o método não atinge o resultado esperado, ela se reúne com os professores no ano seguinte para avaliar outros caminhos. "Discutimos conforme damos as aulas", continua.

Os PCNs citados pela professora foram elaborados em meados dos anos 90. Após discussões promovidas pelo atual governo, foram atualizados em dois documentos: as Orientações Curriculares do Ensino Médio (Ocem), instruções preliminares realizadas em 2004, que resultaram, em 2006, nas atuais Orientações Curriculares para o Ensino Médio (Pcnem). Segundo o MEC, os documentos fornecem diretrizes aos professores das novas disciplinas. "Nosso propósito era não fechar um conjunto de conteúdos para o Brasil inteiro, mas dar um tempo para que as coisas se organizem a partir de experiências concretas, o que acontecerá em cinco ou dez anos. Só então teremos conteúdos mais consistentes", explica um dos relatores dos Pcnem de sociologia, o professor da Faculdade de Educação da USP Amaury Moraes. Opinião diferente têm os professores e especialistas que participaram do 1º Encontro Nacional sobre Ensino de Sociologia & Filosofia, realizado pelo Sindicato dos Professores do Ensino Oficial de São Paulo (Apeoesp) em julho. No documento de conclusão do evento, a criação de um programa de caráter nacional para o ensino das disciplinas é uma das primeiras sugestões. Para Lejeune de Carvalho, vice-presidente do Sindicato dos Sociólogos, os Pcnems são insuficientes e ainda há necessidade de um programa que sirva de referência para todas as escolas e professores, como existem para outras disciplinas. "Se você pegar livros de geografia para o ensino médio de diferentes editoras, o conteúdo será o mesmo. Em filosofia e sociologia, não. O Pcnem dá mais diretrizes do que programas de aula", questiona. E alerta para o perigo de deixar essa decisão nas mãos do professor: "Se não tivermos um programa, as próprias editoras vão fixar o conteúdo", desabafa. Outra proposta do Encontro diz respeito à carga horária: a sugestão é que cada uma das disciplinas seja objeto de, no mínimo, duas aulas semanais de 45 minutos, nas três séries do ensino médio.


Filosofia e experiência

Há quem veja a escolha de conteúdos como um equívoco. "Independe do conteúdo. Antes de determinar qual filósofo ensinar, você tem de saber o porquê de escolher aquilo. A primeira pergunta é: para que insistimos tanto em colocar filosofia na escola?", indaga Renata Aspis. Para ela, as justificativas-padrão – formar um pensamento crítico ou um cidadão – apareceram quando a disciplina deixou de ser obrigatória, durante a ditadura militar. Hoje, não há um consenso sobre os motivos do ensino da filosofia. "Como a disciplina virou obrigatória, temos de ter uma idéia que a embase, além de saber como ensinar. É o mínimo", continua. Renata é autora, junto com Silvio Gallo, professor da Unicamp, e Celso Favaretto, da Feusp, da coleção de DVDs "Filosofia no Ensino Médio". O material orienta o ensino da disciplina como uma experiência filosófica. "É a idéia de que o aluno possa, por meio dessa experiência, criar uma disciplina filosófica no seu pensamento", diz.

Na prática, o primeiro passo é sensibilizar os alunos para o tema a ser tratado. Para fazer isso, a professora sugere o uso de filmes, poesia ou música. Num segundo momento, cria uma discussão livre sobre o objeto escolhido. É nessa etapa que os alunos aprendem a fazer perguntas sobre o que viram – é dever do professor ensinar o aluno a elaborar as questões essenciais, que o ajudarão na sua investigação filosófica. Com as perguntas elaboradas, parte-se para o estudo.

"Vamos supor que escolhamos o tema liberdade. O professor traz dois ou três textos com visões diferentes do tema. E os contextualiza na história da filosofia: quais eram as grandes questões na época? E a que aqueles textos respondem?", explica. O resultado final, obtido com muitas aulas, é um aluno que não sabe dizer apenas os conceitos de liberdade para cada filósofo, mas sim aplicá-los à sua realidade. "Nós desterritorializamos um conceito e o territorializamos na questão dele: como é a minha liberdade?", termina.

Como há sugestões de metodologia e concepção para aulas de filosofia, há para sociologia. Para a secretária-geral da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp), Ana Flávia Guimarães, a maior dificuldade é identificar o significado prático da disciplina. "O debate que vamos iniciar agora é: que professor é esse?". Para a Fespsp, lecionar sociologia é sinônimo de resgatar e estimular o "ser protagonista" que existe dentro do aluno. Em outras palavras, mostrar o papel que ele pode exercer como ator de uma sociedade. Ana exemplifica. "Todos sabem que faltam pessoas para integrar os júris populares no Brasil. Seria interessante que o professor falasse sobre isso em sala, e depois levasse a turma ao local", aponta. Para ela, a já conhecida união de teoria e prática é um elemento fundamental, assim como a interdisciplinaridade com história, geografia e língua portuguesa.


Formação deficiente


Para a secretária-geral da Fespsp, Ana Flávia Guimarães, a união de teoria e prática é um elemento fundamental no ensino de sociologia, assim como a interdisciplinaridade com história, geografia e língua portuguesa

A formação docente é outro ponto crítico. Questões como a obrigatoriedade de as matérias serem ministradas exclusivamente por docentes formados em filosofia ou sociologia não são consensuais. Muita gente critica o tipo de formação oferecida pela universidade. "O professor bem formado não precisa de diretrizes, de lista de conteúdos para dar aula. Quem lê e não entende o Pcnem de sociologia não vai dar aula de nada mesmo, já que sua formação é deficiente", opina o professor Amaury Moraes. Moraes leciona Metodologia de Ciências Sociais na Faculdade de Educação da USP e tem, anualmente, uma amostra dos professores que ingressarão nas redes de ensino. Seus alunos freqüentam um estágio de 120 horas em escolas públicas, têm conhecimento das diretrizes de aula propostas pelo governo e, ao final do curso, entregam propostas de trabalho. "Eles saem com capital inicial para lecionar. É a formação máxima que consigo dar, mas não a ideal. O bacharelado não basta. Precisamos investir mais na licenciatura", diz ele, para quem as seis disciplinas oferecidas no curso da USP não são suficientes.

Renata Aspis concorda. "Paralelamente a toda essa reflexão do quê ensinar está a formação do professor. No curso de licenciatura, fazemos algumas disciplinas pedagógicas, que estão absolutamente desconectadas do universo da filosofia", relata.



Esgrima entre conselhos

O Ministério da Educação terá outro obstáculo para implementar filosofia e sociologia como disciplinas obrigatórias: a resolução publicada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) não foi acatada pelo Conselho Estadual de Educação (CEE) de São Paulo. No dia 18 de agosto deste ano, o CEE publicou parecer no Diário Oficial do Estado de São Paulo que considerava ilegal a norma do CNE: "ao fazer esta imposição, o órgão federal avançou além dos limites de sua atribuição legal e, mais do que isso, para além das fronteiras que a própria Constituição Federal estabeleceu ao tratar dos serviços de educação no país".

Pedro Salomão Kassab, presidente do CEE, explica: "Pensar que existe essa hierarquização é um equívoco. O CEE não manda nos municípios, por exemplo", diz. O documento também diz que "cada escola é autônoma para decidir, dentro das balizas postas pela legislação, o melhor modo de organizar o currículo a ser ministrado aos seus alunos".

Do outro lado do embate está o advogado Salomão Ximenes, da ONG Ação Educativa, que encaminhou em março uma representação ao Ministério Público do Estado de São Paulo, que resultou na abertura de um inquérito civil. "Cabe ao CNE emitir normas sobre o sistema de ensino e regulamentar a implementação de leis. Isso vale para todo o território nacional", afirma. Segundo Ximenes, a resolução do CNE tem força de lei porque é um exercício de atribuição, previsto pela LDB. "A LDB delega regulamentação para os Conselhos. Estados e municípios têm, sim, sistemas autônomos de ensino, mas é uma autonomia regulada. Eles não podem legislar sobre diretrizes e bases. A Constituição Federal diz que isso é atribuição da União", continua.

Para o relator da resolução, César Callegari, a decisão é reflexo da resistência das mantenedoras de escolas particulares, que não querem ter aumento de custos. Além disso, ele identifica uma aversão político-ideológica do CEE ao ensino das disciplinas. "Existe uma tentativa ultraconservadora de vetar o progresso da formação dos jovens brasileiros. É surpreendente que o Estado com melhores condições no país seja o primeiro e, até agora, o único, a resistir a isso", diz.

Para o professor Amaury Moraes, São Paulo tem poder de questionar, mas não de decidir. "Isso não é federalismo, é soberania", aponta. O motivo para a posição contrária do CEE também vem, para ele, das escolas privadas. "No conselho, há muitos representantes das escolas privadas laicas, que não querem deixar de pensar no vestibular". Moacyr lembra que o CEE poderia questionar a norma do CNE no Superior Tribunal Federal. "Todos os dias, os Estados entram contra a União no STF. É a primeira vez que algo assim acontece. Imagina se a moda pega!", questiona.

Segundo Callegari, o ministro da Educação, Fernando Haddad, encaminhou a questão para a consultoria jurídica do Ministério, que analisará as bases legais do parecer do CEE de São Paulo.

Autor

Beatriz Rey


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