NOTÍCIA

Políticas Públicas

O limite da representação

Adiamento da Conferência Nacional de Educação escancara as limitações da participação da sociedade na definição e gestão das políticas públicas

Publicado em 28/02/2014

por Cristina Charão

 

Paulinho Menezes
Conae 2012: propostas aprovadas naquela ocasião já vinham sendo desconsideradas pelo Executivo

 
Prevista para ocorrer em fevereiro, a etapa final da Conferência Nacional de Educação (Conae) foi adiada faltando pouco menos de um mês para sua realização. A decisão do Ministério da Educação, responsável pela realização da Conae, foi apresentada como uma questão administrativa. Na breve nota oficial divulgada pelo MEC, os custos para realização do evento apresentados pela empresa que organizaria o encontro mostraram-se “incompatíveis com o padrão de austeridade” adotado pelo Ministério. Os custos da decisão, no entanto, tendem a ser ainda mais altos. Criticado unanimemente pelas organizações envolvidas na preparação da Conae, o adiamento da etapa nacional para novembro não apenas esvazia esta edição da conferência, como também deixa evidentes os limites impostos pelo Executivo federal aos processos participativos de construção de políticas públicas na área da educação. Além disso, pode ter um impacto negativo sobre instâncias de participação nos níveis estadual e municipal.

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Esvaziamento paulatino
A medida pegou de surpresa até mesmo o Fórum Nacional de Educação (FNE), órgão associado ao MEC formado por entidades de diversos setores da área da educação e da sociedade civil responsável pela coordenação do processo da Conae. Quando o adiamento foi anunciado em 24 de janeiro, todas as etapas municipais e estaduais haviam sido realizadas, os 3,5 mil delegados, eleitos, os cerca de mil convidados, escolhidos e as propostas encaminhadas por cada estado estavam em fase final de sistematização.

Porém, a notícia não é de todo surpreendente. Para Romualdo Portela, professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a trajetória da conferência já estava marcada por um esvaziamento paulatino, fruto do descompromisso do Executivo federal com as propostas aprovadas na primeira Conae, realizada em 2010. “Agora, em função desse acontecimento, ficou absolutamente evidente que a participação não é um elemento do programa deste governo”, afirma.

O principal sintoma dos limites do processo da conferência é a própria tramitação do Plano Nacional de Educação (PNE) – cuja história não pode ser separada da Conae. Em 2010, o objetivo da Conferência foi traçar o PNE 2010-2020. O documento final era, pode-se dizer, uma proposta completa de plano, construída e negociada coletivamente e chancelada pelo Executivo federal, que, afinal, convoca e realiza as conferências. Porém, o texto do projeto de lei apresentado pelo MEC ao Congresso Nacional já não incorporava a proposta na íntegra e, ao longo do debate que ainda se arrasta no Legislativo, muito do texto original foi ficando pelo caminho.

Note-se que o comprometimento do Executivo com o cumprimento das metas e ações aprovadas pela Conae é político. A conferência é propositiva, ou seja, as diretrizes para uma política nacional de educação que saem do longo processo de debates podem ou não se transformar em medidas efetivas. Este caráter propositivo e o peso da União na efetivação das políticas educacionais deixam o Executivo federal na posição de “dono da bola”, podendo escolher quando e com quem jogar. Além disso, a relação de dependência administrativa do Fórum Nacional de Educação – criado por decisão da primeira Conae – e o MEC abre brechas para que a vontade do ministério se sobreponha às decisões do colegiado.

Por outro lado, a amplitude e a representatividade do processo – que conta com etapas descentralizadas e eleição de delegados em cada estado – fazem da Conferência um reforço de peso às reivindicações da sociedade civil nos embates com o governo e, algumas vezes, entre os diferentes atores envolvidos no debate educacional. Ainda assim, a revisão do modelo da conferência e do Fórum é uma das reivindicações já apresentadas pelas organizações envolvidas na Conae.

Efeito cascata
A perda de legitimidade da Conae também abala a base de um sistema de gestão participativa das políticas educacionais, tema que há muito mobiliza educadores e ativistas pelo direito à educação. A participação é um direito previsto em normativas internacionais e na Constituição Federal. O mesmo ocorre com o controle público das políticas públicas. A realização das conferências nacionais da área social, o que inclui a educação, visaria justamente a garantia desses direitos.

No caso específico da Conae, o seu enfraquecimento é um problema simbólico, mas também tem reflexos concretos. As etapas municipais e estaduais da conferência ajudam a descentralizar os debates. Sem elas, perde-se uma grande oportunidade de mobilizar as comunidades em torno do tema da educação. Além disso, há uma relação direta entre a Conferência e a constituição dos Fóruns de Educação nos estados e municípios. “Esses espaços estão passando, hoje, por uma transição de papel: de organizar o processo da conferência para incidir na construção ou revisão dos planos de educação”, lembra Denise Carreira, da Ação Educativa. “É um momento muito frágil para eles e a notícia do adiamento da Conae fragiliza os processos, o FNE e, por consequência, os fóruns municipais e estaduais.”

Ainda o PNE
A realização da segunda Conae já era prevista desde o final da primeira edição. Se a Conae 2010 propunha as diretrizes do Plano Nacional de Educação 2010-2020, a de 2014 deveria acompanhar sua implementação e propor instrumentos para garantir a efetivação das ações. No entanto, o embate ferrenho entre governo e sociedade civil e entre diferentes setores da área da educação prolongou a tramitação do PNE. A segunda conferência acabaria sendo realizada sem que o PNE tivesse sido aprovado pelo Congresso Nacional, o que mudou consideravelmente o cenário dos debates.

Se realizada em fevereiro, a aprovação do PNE em uma versão mais próxima do previsto pelo processo de 2010 estaria no centro das discussões da conferência. As chances de a Conae transformar-se em um grande ato a favor do Plano e aumentar a pressão sobre o governo eram bastante grandes. Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e membro do FNE, acredita que a representatividade dos delegados e sua reunião em Brasília daria grande impulso ao lobby a favor da aprovação do PNE nos termos defendidos pela organização. “Usaríamos como um espaço de interferência no Congresso e dificilmente perderíamos a votação do PNE após a Conae”, afirma.

Embora o MEC não comente o assunto, a nota divulgada dá a entender que a tramitação do Plano no Congresso está envolvida na decisão. O Ministério fez questão de ressaltar no texto que a “nova data não traz prejuízos aos debates sobre as metas e estratégias do PNE, que deve ser votado até a rea­lização da Conae em novembro”.

Futuro incerto
De fato, é bastante provável que, até novembro, o Congresso finalmente aprove o PNE. Porém, não é simples prever qual será a forma final do plano. Além disso, é preciso considerar que a Conae 2014 agora será realizada após as eleições, cujo processo e resultados podem mudar drasticamente o cenário mais amplo para o debate de uma política nacional de educação. Daí poucos arriscarem dizer o que pode acontecer nesta segunda conferência.

Outra previsão difícil de ser feita é a possibilidade de a sociedade civil bancar a realização de um processo semelhante à Conferência sem o apoio do Estado. Na década de 90, o Congresso Nacional de Educação (Coned) e a Conferência Brasileira de Educação (CBE) cumpriram este papel, mas com representatividade bem menos ampla do que o processo da Conae. Voltar a este modelo poderia significar uma perda ainda maior de legitimidade dos processos participativos.

No entanto, há indicativos de que grupos de organizações estão trabalhando com o cenário de extinção da Conae e do Fórum Nacional de Educação. A ideia seria aproveitar a unidade construída entre os diversos setores da sociedade civil – sindicatos, instituições acadêmicas e ONGs – em torno da aprovação do PNE. Mas, novamente, os rumos do movimento serão definidos somente após o desenlace na longa e atribulada tramitação do Plano.

De qualquer forma, esta história já colocou em xeque o papel do Estado na promoção da participação popular na gestão das políticas públicas. Os próximos capítulos podem definir quem poderá participar das decisões sobre a educação no país, onde e quando.

Autor

Cristina Charão


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